A imitação texto para escrita na paisagem

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a imitação «Pai, porque me abandonaste neste corpo, nesta cópia sem original?» Canção de Regina Guimarães para A IMITAÇÃO

O título deste filme de Saguenail (o segundo daquilo que o autor vê como uma trilogia centrada sobre esse local de vivência, portuense por excelência, que ‒ ainda... ‒ é o café, tratando cinematograficamente o espaço público como lugar de intimidade onde vidas, reais, fantasmáticas ou míticas, se constroem e desconstroem) pode induzir em erro, pois embora se trate de uma espécie de Auto da Paixão, encenado dentro de uma igreja ‒ para o efeito transformada em bar, durante a Páscoa do ano 2003 ‒, e não obstante a figura de Cristo ser claramente central, esta não é uma obra dirigida, como o famoso De imitatione Christi, àqueles que, por seguirem o filho de Deus crucificado, «não caminham nas trevas». Protagonizado por tantos actores quanto os dias do ano ‒ pois que, cada vez que se muda de plano e enquadramento, todas as personagens passam a ser interpretadas por outros actores-pessoas, A IMITAÇÃO, ao contrário de um livro de devotos preceitos, é um filme atravessado por interrogações (que de resto as duas longas canções formulam, em parte). Inspirado, à partida, pela visita a uma exposição de fotografia de Nan Goldin (em que artista ostenta centenas de imagens, frequentemente de foro muito íntimo, que são outros tantos retratos-em-situação do seu entourage) e tomando depois por referência a arte sacra (popular, pictórica e não só), Saguenail lança-se num feroz questionamento que incide sobre a própria densidade da noção de personagem ‒ pobre espantalho apenas reconhecível pela permanência do figurino que enverga. Sendo a cruz substituída pelo álcool, numa lógica que obriga o condenado a «beber o cálice amargoso», este filme de Saguenail desdobra-se em apontamentos sobre a solidão, abre-se e remata com «quadros» alusivos à condição humana ‒ gesto para o qual contou com a cumplicidade de centenas de pessoas, entre as quais actores a trabalhar no Porto, mas sobretudo anónimos que dão a cara e o corpo ao manifesto ‒, desaguando numa interrogação singela e incómoda: deixar-se morrer como Cristo ou trair cientemente como Pedro? Regina Guimarães


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