A impressão de irrealidade

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A IMPRESSÃO DE IRREALIDADE Há um pressuposto constante em todas as obras de Resnais: o «analogon» (1) não é a realidade. Não só lhe falta a materialidade como o facto de ser objecto duma tomada de vista implica — para além do enquadramento e do ângulo — uma distância. E, sistematicamente, uma vez estabelecida esta distância, uma vez constatada esta exterioridade, Resnais trabalha no sentido de a abolir. Porque a imagem é ao mesmo tempo criação e, tal como o escultor arranca uma forma ao bloco de pedra, Resnais assume o filme como uma realidade interior que é preciso arrancar ao real informe. Já no seu filme sobre Van Gogh, estes dois movimentos eram visíveis: o cineasta compara as botas gastas ao quadro; procura penetrar, recorrendo aos movimentos de aparelho, dentro da sala, mergulhada em fumo, onde estão reunidos os «comedores de batatas». Resnais começa por realizar documentários; porém, toda a descrição da Biblioteca Nacional se constrói em torno das primeiras imagens da cúpula envidraçada, i.e. do ponto de vista que ninguém pode ter excepto os pássaros. Assim, TOUTE LA MÉMOIRE DU MONDE transforma-se num documentário não apenas sobre a biblioteca como sobre o comportamento de insectos dos leitores humanos. A imagem, enquanto documento, é permanentemente questionada, porque os seus signos não são o acontecimento; os signos ficam aquém — enquanto marca — e além — enquanto realidade mental, emotiva, que ultrapassa a consciência registadora — da representação do acontecimento. O betão arranhado das câmaras de gás em NUIT ET BROUILLARD tem o valor duplo do grafismo e da expressão do horror inultrapassável. Quando aborda a ficção, Resnais tenta tornar patente o processo de irrealização do visível, transformação dos signos exteriores perceptíveis em indícios de uma verdade, de uma expectativa, de um medo — interior. Esta irrealização organiza-se em parte como uma onirização — por exemplo a violação em L'ANNÉE DERNIÉRE À MARIENBAD —, em parte como uma submissão a esquemas pré-estabelecidos a que as personagens se conformam — a demonstração de MON ONCLE D'AMÉRIQUE. Todas as imagens são portanto projecções — o encontro com a rapariga em LA GUERRE EST FINIE — que o «real» pode corroborar — o aparecimento das escadas no quarto de hotel de PROVIDENCE; o disfarce dos convidados em I WANT TO GO HOME — ou frustrar — a entrada do jogador de futebol no mesmo quarto em PROVIDENCE; os desencontros na galeria em I WANT TO GO HOME. O próprio «real» é uma ficção inventada por um escritor demiurgo (PROVIDENCE), por um combatente derrotado pela lógica da paranóia (LA GUERRE EST FINIE), por uma cobaia voluntária (JE T'AIME JE T'AIME), ou involuntária (MON ONCLE D'AMÉRIQUE). Somos assim confrontados com várias verdades simultaneamente presentes, cada qual sendo um reflexo — uma imagem — das outras: o apartamento atravancado de móveis materializa a necessidade de ocupar o espaço mental para conjurar o trauma da guerra da Argélia e ao mesmo tempo a impossibilidade de viver no meio daquela acumulação parasita (MURIEL); os heróis de MON ONCLE D'AMÉRIQUE julgam imitar os seus ídolos, mas, de facto, limitaram-se a responder, como ratos de laboratório, a estímulos, a condicionamentos, etc. É que o tempo de um filme, i. e. de uma ficção, não corresponde a nenhum tempo mensurável. O tempo de um «engate» pode dilatar-se (L'ANNÉE DERNIÈRE A MARIENBAD) assim como o de uma vida pode minguar. Com efeito, até L’AMOUR À MORT, cada filme de Resnais funciona como o cortejo mítico de uma vida inteira a desfilar antes do último mergulho: toda uma vida e até todas as contradições de uma época revelam-se necessárias para compreender os gestos fatais das personagens de Bernard (MURIEL), de Diego (LA GUERRE EST FINIE), do escroque (STAVISKY) ou de Clive (PROVIDENCE). O tempo «puro» corresponde ao da música em L'AMOUR À MORT e também à morte entrevista. Ao quebrar constantemente a «impressão de realidade» do «analogon», Resnais supõe sempre uma consciência projectiva das imagens — o cineasta recusa o refúgio na fantasia que, no fim de contas, reflecte apenas o universo da sua própria produção como as comédias musicais hollywoodianas: o filme não é uma ilusão, um mero espectáculo visto que existem actores e papéis. Mesmo a parte em


desenhos animados de LA VIE EST UM ROMAN é uma imagem paralela dos desejos das personagens reunidas num colóquio. Verifica-se, assim, por um lado uma coerência absoluta entre todas as imagens, por outro a preponderância de um trabalho de actor que consiste em criar uma imagem da personagem que encarna — a direcção dramática de Resnais faz com que cada filme seja de algum modo um «documentário» (cf. as restrições acima formuladas que o cineasta trouxe a este conceito) sobre os seus actores. O relativo «falhanço» de STAVISKY deve-se a que a consciência projectiva no filme não é a das personagens — nem mesmo da desempenhada por Charles Boyer — mas sim a do argumentista — Resnais caiu na armadilha do narrador omnisciente e da ficção ad hoc que até então conseguira evitar. A partir de MÉLO, Resnais embrenha-se no universo teatral, fixando as regras do jogo — cenário estilizado — e, posto que o teatro assenta na continuidade interna de cada acto, atribuindo a função de consciência projectiva à câmara — travelling desfocado sobre o tapete. O último passo dá-o com SMOKING/NO SMOKING: atrás da câmara encontra-se o espectador que doravante é convidado a fazer as suas escolhas face às hipóteses propostas. Contudo, o risco deste cinema é que a consciência passe a ser moldada pela ficção que adquire um acréscimo de realidade — toda uma gramática do enquadramento se organiza em torno do diálogo de MÉLO —, ou mesmo pelas rígidas imposições técnicas — em SMOKING/NO SMOKING só podem aparecer duas personagens de cada vez — o que leva o espectador a furtar-se à consciência e à ficção e a entregar-se ao puro espectáculo da proeza de encenação. S. (1)

«Analogon»: imagem enquanto reprodução icónica não codificada de um objecto real; o objecto e o seu «analogon» são visualmente passíveis de sobreposição. O termo vem de Peirce, é retomado por Mitry em Esthétique et psychologie du cinema e depois caucionado por C. Metz nos seus Essais sur Ia signification au cinéma.


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