A IMPUREZA DAS ORIGENS Desde o seu nascimento, o cinema, dotado da capacidade de restituir imagens e movimento, voltou-se para a reprodução do espectáculo — espectáculo de ilusionismo com Méliès, «teatro filmado» com o «filme de arte». Na projecção cinematográfica, o «palco» foi substituído pelo ecrã, sem que de início o conteúdo do espectáculo tenha sido modificado: a permanência da posição do espectador, frente ao palco ou frente à tela, condicionava esta primitiva concepção do cinema, rapidamente condenada na medida em que, em relação à representação teatral, só trazia uma aceleração do movimento nos momentos de mudança de cenário e uma distanciação devida ao estatuto de mero reflexo dos objectos e personagens animados na pantalha, aliada à perda da palavra e das cores. O fascínio era então fruto não da ficção narrativa — de essência literária e teatral — mas do simulacro de vida — pela redução do vivo a duas dimensões e a um simples jogo de manchas de luz. E. Morin distingue esta fase, a que chama «cinematógrafo», em que a câmara tem como único papel representar o real que está perante a objectiva, da era do «cinema», meio de expressão que organiza o material filmado em discurso. A passagem duma fase para a outra opera-se quando, em vez de colocar a câmara no lugar do espectador, se começa a deslocá-la consoante a acção representada e a emoção que se pretende provocar. Ao modificar o ângulo de tomada de vista, inventa-se simultaneamente o enquadramento, a planificação e a montagem. Porém, no momento do visionamento, o espectador está sempre no lugar da câmara; sempre que a câmara se desloca, no meio da acção, o espectador participa nesta última: a câmara desempenha um papel, cria um ponto de vista. Em contrapartida, doravante o papel do espectador é, por assim dizer, negado; a sua participação continua a ser fictícia: não intervém na acção e está condenado a uma posição voyeurista. O desenvolvimento do cinema pode ser analisado a partir das escolhas efectuadas quanto à posição e ao papel da câmara. O princípio mais frequentemente adoptado é o da submissão à acção: a câmara é colocada onde melhor se pode ver tudo, atribuindo ao espectador um papel infantil — trata-se de guiar o olhar, de chamar a atenção para os pormenores, grandes planos e outros, de permitir até, ao público, uma certa antecipação — e omnisciente. Esta estética não chega verdadeiramente a assumir um ponto de vista, mas recorre aos processos didácticos do discurso do poder — indubitabilidade dos valores apresentados como factos, relações de causa e efeito, pseudoneutralidade do testemunho (a exemplaridade é encarnada pela personagem principal; esta, emissora do discurso verbal, poder-se-ia mostrar demasiado «subjectiva» nos juízos enunciados, donde a necessidade de se ficar no chavão). Os atentados contra este cinema estandardizado, não falando dos percursos individuais ao longo da história do cinema, consistiram em pôr em dúvida os objectos filmados, ora ambiguizando a acção através do jogo de enquadramentos deformantes e deformados, de ângulos insólitos, etc. — o expressionismo e todos os realizadores «barrocos», de Welles a Fellini —, ora «subjectivizando-a»: ao substituir uma personagem, a câmara regista o que ela é suposta ver, isto é, uma apreensão incompleta dos factos — este processo, muito radical, em geral só é utilizado duma forma muito pontual: LADY IN THE LAKE de R. Montgomery constitui uma excepção. Em todo o caso, o papel da câmara é reforçado; através dela, o espectador participa na acção numa postura ainda menos distanciada. O filme constrói um universo onde a sua materialidade — projecção — é anulada. Sabe-se que a narrativa cinematográfica estandardizada chegou ao estado de esclerose num escasso meio século, a ponto de ter conduzido ao questionamento da gramaticalização das suas figuras todos os realizadores que, apostados em conceber novas mensagens, se viram forçados a inventar uma forma original. As figuras do «campo-contracampo» foram sistematicamente rejeitadas por cineastas como Godard, Forman, Wenders, etc.; a prioridade do discurso verbal foi atacada de todas as maneiras e, por fim, a própria ficção. Urge compreender hoje que, se Manoel de Oliveira foi reconhecido pela crítica internacional, é porque pertence a esta linha de inovadores e, para além da sua «originalidade», convém avaliar a sua contribuição. Para sair do impasse, os cineastas — sobretudo europeus — que nos interessam, depois duma fase de denúncia dos chavões — tanto ao
nível formal como ao nível da moral veiculada — efectuaram incursões individuais na história do cinema em busca de elementos por explorar. Tendo em conta os fenómenos de moda, não é pois surpreendente que um certo número destes realizadores se tenham vindo a interrogar sobre as origens, situadas no teatro e na ópera — Godard, NOME CARMEN, O REI LEAR; Resnais, MÉLO; Antonioni, O MISTÉRIO DE OBERWALD, etc. Manoel de Oliveira será, também neste domínio, pioneiro: o questionamento da representação é encetado com O ACTO DA PRIMAVERA e coerentemente desenvolvido de BENILDE a O SAPATO DE CETIM, passando por O MEU CASO, e agora encenado em OS CANIBAIS. Não se trata de modo algum de «voltar atrás», mas de recomeçar a história à luz dos impasses constatados. Já em 1951, A. Bazin formulara tudo quanto a representação teatral podia trazer ao cinema. Ao adoptar uma colocação da câmara sistematicamente frontal em relação à cena em O SAPATO DE CETIM — colocação essa típica do cinematógrafo —, Manoel de Oliveira devolve um papel ao espectador enquanto tal. Este último deixa de ser o voyeur mergulhado numa acção em que não participa efectivamente, para entrar na pele daquele a quem as personagens se dirigem directamente. O espectador é chamado a tomar partido: o facto de a acção ser à partida apresentada como um espectáculo, impede-o de entrar comodamente nos processos de identificação e «défoulement» que lhe permitem sair da sala, impávido e sereno, «pois tudo aquilo que viveu não passava de ficção»; fora da cena, o espectador encontra-se perante uma acção a interpretar e a julgar; a ficção deixa de ser um alibi para o esquecimento e para o consumo passivo e torna-se um valor que passa pela interrogação do espectador sobre o lugar que ocupa e o papel que desempenha enquanto elemento exterior. O SAPATO DE CETIM abre com o acolhimento do espectador — ou antes, do seu duplo ficcionalizado — assim confrontando o espectador real com a sua imagem. Só depois de designados os elementos do rito — espectador, ecrã, projector de cinema, imagem — é que Oliveira faz a sua câmara transpor a tela e tomar a sua posição perante a acção teatral. A distanciação no teatro, formulada por Brecht, nunca constituiu uma «revolução», mas a restituição ao espectáculo dramático da sua dimensão de artifício e da sua função pedagógica; estes dois parâmetros, presentes na tragédia clássica e na comédia, haviam sido rejeitados no decorrer do século XIX, em favor de uma óptica naturalista que visava um efeito de real — da tragédia ao melodrama, como da comédia ao vaudeville, o teatro passara do exemplar ao anedótico. A visualização do artifício lembra que não se trata de fazer o espectador acreditar na verdade da ficção — o espectador nunca é tão enganado como se pretende — mas de provocar neste uma reacção e um juízo. A ficção só se justifica pelo seu carácter de exemplaridade mínimo, de fábula, e a emoção, para ser o mais forte possível, deve acontecer apesar do espectador, fora do seu mundo, num universo que ele só inconscientemente identifica, graças ao valor arquetípico da acção encenada. A emoção deve obrigar o espectador a sair dos seus esquemas de pensamento prontos a aplicar — que projectam antecipadamente a conclusão, ainda que esta, inconcebível na vida prática, seja peremptoriamente relegada para o plano da fantasia —; a surpresa e o enfeitiçamento serão os motores da emoção, proibindo o recurso aos esquemas conscientes, lógicos e banalizados. Esteticamente, o valor da ficção é proporcional ao seu grau de estilização. O desenvolvimento do cinema tem-se vindo a efectuar na linha do teatro naturalista e de «boulevard», servindo-se de meios técnicos e financeiros inéditos para reforçar o efeito de real. Ao pôr de antemão a acção sob o signo da representação dramática, Oliveira recria automaticamente a distanciação e devolve ao espectáculo uma função pedagógica. Os cenários são pintados; o texto, de uma riqueza inaudita, só pode ser declamado; a acção, totalmente irrealista e mesmo descontínua, só ganha sentido no plano metafórico. M. de Oliveira nunca foi um homem de teatro. Até a esta data as adaptações para o ecrã de obras teatrais, quando não sucumbiam à tentação de apagar pura e simplesmente os aspectos cénicos demasiado artificiais com vista a reduzira sua estilização específica aos códigos gramaticalizados da convenção cinematográfica, eram geralmente realizadas por gente de teatro que aproveitavam os recursos do cinema para acentuar a dramaturgia da acção — acrescentando pois o enquadramento e a montagem à performance dos actores —; é o caso tanto dos trabalhos de Lawrence Olivier como dos de Orson Welles. O recurso ao teatro, nesses casos, não modifica essencialmente o cinema; em
contrapartida, este último, ao introduzir novos elementos de encenação, elabora um discurso sobre o teatro. Isto será ainda mais verdadeiro para filmes como MÉLO de Resnais e OTHON de Straub, em que a acção e o discurso teatrais são objectos do filme que os decompõe. M. de Oliveira, pelo contrário, interroga-se apenas sobre o cinema. Em O SAPATO DE CETIM o cinema não alarga a encenação teatral — a escolha duma posição frontal da câmara alicerça e consolida a consciência que o espectador tem de só ver um lado das coisas; mas o teatro agudiza o exercício dos poderes do cinema: graças ao grande plano — um dos únicos no filme — da lua, desempenhada por M. C. Barrault, esta, de personagem, passa a imagem onde se cumpre o antropomorfismo do planeta com rosto humano. Do mesmo modo, a única infracção à regra da colocação da câmara — a altura em que a câmara atravessa a fronteira da cena (descrevemos apenas momentos em que os meios específicos do cinema intervêm na encenação) — quando o juramento de Prouhèze, que dá o título à peça, é visto do lado da Virgem, visualiza o valor simbólico da promessa e daquilo que através dela está em jogo, hierarquizando as posições dos intervenientes: Prouhèze, personagem na parte inferior do enquadramento, a Virgem, entidade abstracta, na parte superior, em primeiro plano — é de notar que a posição divina de receptor é formalmente atribuída ao espectador, que assumirá, até ao final da peça, o papel de juiz. A intriga de O SAPATO DE CETIM assenta na impossibilidade da função amorosa e na necessidade dum percurso individual, isolado, de cada um dos amantes. Esta temática é, com efeito, constante em Oliveira, de BENILDE a OS CANIBAIS. De uma forma mais lata, é a própria possibilidade de uma comunicação humana, que não passe pela mediação dum ideal comum (divino ou não), que está em causa. Esta situação, que faz com que o destinatário da comunicação esteja sempre ausente ou inacessível — donde o papel das trocas epistolares em AMOR DE PERDIÇÃO —, reflecte, além ou aquém de uma imagem da condição humana, os próprios dados da comunicação pelo cinema: o filme impede o contacto entre actores e realizador, por um lado, e espectador, por outro. A comunicação tem de se estabelecer sem contacto: os que estão em frente à câmara têm de imaginar os espectadores dos quais a câmara apenas substitui o olho; por sua vez o espectador só se confronta com substitutos dos actuantes que a ele se dirigem — o actor no lugar da personagem, a imagem do actor no lugar do actor. O filme materializa a barreira entre as consciências, ao mesmo tempo que a projecção estabelece ritualmente o espaço artificial e simbólico onde a comunicação se pode efectuar. O mal-entendido artístico parece sintetizar, para Oliveira, este espaço duma comunicação desejada. As referências pictóricas abundam, dos retratos de corte do séc. XVI às selvas do douanier Rousseau — a presença dos quadros, Guernica e a Gioconda, no fim de O MEU CASO confirmam o papel da «Arte» — mas a utilização de cenários pintados basta para formalizar a intenção de situar a acção num espaço artificial, isto é humano, acima do «real» que não passa de convenção socializada — a contiguidade de elementos «naturais» ou de cenários «reais» em AMOR DE PERDIÇÃO ou FRANCISCA esvazia-os do seu carácter de autenticidade: o artificial contamina o natural e assimila-o. O imaginário é, em Oliveira, o único lugar de comunicação possível — mas ainda por estabelecer, donde a necessidade dum papel activo do espectador. Em O SAPATO DE CETIM, o cineasta inicia um tratamento particular do discurso verbal — que, apesar de só permitir a ilusão duma comunicação, possui outras qualidades, em especial sonoras e musicais — que será prosseguido em O MEU CASO e OS CANIBAIS. O uso da palavra em O SAPATO DE CETIM é quase sempre empregue para levantar objecções — o único apelo é confiado a uma carta que, justamente, o desviará. A linguagem em si também é uma barreira, um exorcismo contra o outro, contra o desejo que ameaça a integridade da pessoa, ou melhor do «carácter» no sentido teatral ao qual ela se reduz. Simultaneamente, a linguagem é música — este aspecto é suficientemente marcante no texto de Claudel para que Oliveira não tenha que recorrer a uma manipulação sonora do discurso como fará em O MEU CASO ou, através do canto, em OS CANIBAIS —; enquanto música, contribui para a criação do tal espaço onde a comunicação, abstracta e sensual — isto é, que exige uma percepção pelos sentidos e não pela inteligência racional —, se pode estabelecer, não entre as personagens, mas entre estes, figuras dramáticas e simbólicas, e o espectador.
No teatro terá Manoel de Oliveira encontrado um meio de retomar a problemática da expressão cinematográfica, não a partir dum estado anterior mas, fazendo tábua rasa da evolução dum cinema mais palrador que falante, explorando metodicamente o sentido possível dum cinema sonoro — este trabalho só é aliás «naïf» ou «primitivo» (como alguns já escreveram) em aparência; trata-se de justificar a existência do cinema num mundo em que as imagens proliferam mas perderam o valor. É, no fim de contas, o teatro que concebe e reclama a contribuição do cinema, «peixa» que «emerge» do fundo da água quando «toda a frota inglesa foi parar ao fundo do mar», memória «indispensável», «meio de engarrafar o tempo», que os pescadores ibéricos entrevêem na cena 5 da quarta jornada — esta descrição de aparelho de projecção da autoria de Claudel é tanto mais surpreendente quanto o cinema, na época em que a peça foi escrita (1924), era mudo. O cinema não pode pois opor-se ao teatro — este continua a ser o protótipo de toda a representação da vida, porque só a dramatização confere sentido à acção — antes o fixa sem o paralisar — como as artes plásticas — sem lhe tirar a dimensão sensual — como a escrita. O cinema pode evidentemente prescindir dos elementos do palco — M. de Oliveira começou por realizar DOURO FAINA FLUVIAL — mas a intervenção deste, conquanto não seja ocultada, não altera a «pureza» ou a especificidade dos meios do cinema. Muito pelo contrário, sublinha o sentido — pedagógico — e a essência — estilização — da fabricação da imagem. Por outro lado, M. de Oliveira, apesar de ter recorrido, para as suas últimas ficções, a uma distanciação temporal, inscreve o seu discurso no quadro de uma actualidade — ainda que simbólica na última imagem de O ACTO DA PRIMAVERA, será claramente formulada no título de O PASSADO E O PRESENTE, visualizada nas projecções da terceira sequência de O MEU CASO, etc.; o que não quer dizer que o cineasta não se demarque dessa actualidade, rodando, por exemplo, BENILDE em plena revolução dos cravos — isto é, de um tempo que é resultado de uma história. A história escreve-se sempre a posteriori; é interpretação, é essencialmente mítica. Em O SAPATO DE CETIM, M. de Oliveira foi, sem dúvida, atraído pela interpretação, que Claudel propõe, das relações entre a Europa e o resto do Mundo, em especial a América, recentemente descoberta, e a África. Respeitando escrupulosamente a peça, francesa, dum autor francês, Oliveira realizou um dos filmes mais esclarecedores sobre a história de Portugal. Às vezes, o cinema também «escreve direito por linhas tortas». S.