A invenção da morte

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A INVENÇÃO DA MORTE Toda a criação, toda a actividade humana, uma vez analisado o seu sentido profundo, equivale sem dúvida a uma manifestação daquilo que F. Alquié definiu como «o desejo de eternidade», ou seja a uma negação da morte, ou antes ainda do facto da vida poder ter um fim. A morte é já um conceito cheio, cujo carácter «definitivo» implica uma perenização em contradição com a sua realidade puramente negadora. Ora o questionamento levantado por este conceito imaginário permite ocultar o consenso em torno da definição da vida. A vida é negada, não só no seu carácter de efemeridade, única justificação pertinente para o valor que se lhe atribui, mas no seu carácter «momentâneo» de sucessão descontínua de momentos — cf. H. Bergson: «O funcionamento cinematográfico da consciência». A vida tem o tempo instantâneo por espaço, a morte tem a duração, a tentação ou a tentativa de eternidade. A vida é carne, combustível, a vida é chicha, comestível; para além da sua consumação pelas chamas ou do seu consumo pelos vermes — não será decerto descabido considerar os vermes como a última manifestação da vida, com a qual partilham a faculdade de «pulular», e a sua presença parece justificar a escolha da macieira como símbolo da árvore da vida, e não o duvidoso valor erótico intrínseco do seu fruto; a serpente, no fundo, não passava de um grande verme... — já não há nada. Quando os vermes abandonam a carcaça, tudo está consumado. Ora, o homem tem horror ao vazio. Para rechear o nada, o homem inventou a morte, qualquer coisa para tapar o nada: não se tem medo da morte, tem-se medo de nada. A quase totalidade das actividades humanas visa assim prolongar a duração de um instante privilegiado, no ideal pará-lo — e, ao parar o instante, parar o tempo. A abolição do tempo pode aliás obter-se tanto através de um aumento da velocidade — abolição das dimensões espaciais — como através da repetitividade — abolição da unicidade. Contudo, uma grande percentagem destas actividades é abertamente consagrada à invenção da morte. Ao longo da História, esta foi-se operando em dois planos simultâneos: o material e o simbólico. O primeiro plano é uma via-sacra de insucessos: da conservação dos corpos (a morte-proveta) — o embalsamamento egípcio só conserva a pele e os ossos, a congelação moderna só assegura um adiamento — à presença orgânica da alma (o improvável por provar) — quem se lembra da glândula pineal? — passando pelas manifestações sobrenaturais (os espantalhos reprovados) — fantasmas, mesas de pé de galo e toda a fraude espírito-mesmeriana: Em contrapartida, o segundo abriu um dos mais fecundos domínios da produção humana: a arte, a realização de imagens. Limitar-nos-emos a descrever algumas das etapas mais marcantes do processo da criação da morte, enquanto conteúdo ab nihilo, cujo sentido perpassa toda a teoria estética, definindo os campos e os fins da arte — até à aparição do cinema que inverte os termos da equação. O «nascimento da arte» está convencionalmente associado às pinturas rupestres da gruta de Lascaux. Georges Bataille desenvolve duas teses (estamos, infelizmente, condenados a simplificar): a arte representa uma transgressão em relação às interdições da morte e do matar; os animais são pintados pelo carácter sagrado que lhes é atribuído em razão da liberdade, sobretudo da liberdade sexual, que manifestam. Pela nossa parte propomos, pelo contrário, inverter as relações de causa: a interdição ligada à morte não passa da negação da sua realidade material negativa e é justamente este acto de positivação pela arte que sacraliza os animais pintados — e não os animais reais. A única certeza é que todos os personagens figurados, homens ou animais, estão mortos (aliás, as teses mais antigas, ao interpretarem estas pinturas como actos mágicos com o fim de garantir o sucesso da caça, admitiam que os, animais representados estavam, consequentemente, «potencialmente» mortos. A estatuária, que se desenvolve na Antiguidade, é essencialmente funerária. Porém detectam-se duas formas hegemónicas: a representação dos homens no poder — bustos e estátuas de corpo inteiro dos imperadores — e a comemoração de feitos gloriosos — arcos do triunfo. Nos dois casos trata-se de imortalizar (mas aqui é a própria linguagem que instala a falsidade, dever-seia dizer: mortalizar) personagens e eventos, de os perpetuar para além da memória dos


contemporâneos, de os perenizar para a posteridade. Por um lado a filosofia idealista, ao desenvolver-se, fixa as qualidades que a arte deve exprimir enquanto modelo intemporal, enquanto que a estética aristotélica, por outro, aprofunda o campo das «técnicas do gesto», orais e dramáticas — as quais nesta perspectiva estarão ligadas ao vivo, por oposição às «técnicas do rasto» que constituem o objecto deste artigo. As primeiras figuras imaginárias aparecem; a sua similitude com as «cópias» de seres reais evidencia claramente não a «ilusão de realidade» para a qual a arte tende, mas pelo contrário a especificidade — técnica, semiológica, etc. — da imagem, da representação mortuária. A arte na Idade Média, totalmente dominada pela figuração religiosa, não faz mais do que acentuar estas tendências: carácter sagrado dos personagens e das cenas representadas em regra absoluta pertencentes ao passado, à morte. Contudo, as finalidades da arte vão-se revelando gradualmente: a expressão artística assume doravante uma função pedagógica e visa, por meio da informação, transformar o comportamento do seu público — os vivos. Esta estratégia consiste nitidamente numa tentativa de redução das propriedades do vivo, substituídas por regras de vida inspiradas na morte — todas negativamente definidas: com efeito, ligados à repartição distinta do espaço temporal entre a vida e a morte, ordenam-se os interditos relacionados com o sexo. Os mortos não reproduzem e não têm actividade sexual — características próprias dos vivos, cujo falecimento constitui o último dos orgasmos: é curioso observar que em francês o orgasmo é designado, em linguagem popular, por «pequena morte» («petite mort»). A igreja concede aos vivos a pertinência da necessidade de se reproduzirem, mas proíbe-lhes qualquer manifestação de actividade sexual doutra ordem. Os santos e a sagrada família caracterizam-se pela sua virgindade inequivocamente mortuária apresentada como modelo — os anjos não têm sexo. Ora, o conceito de morte também se altera com o cristianismo: a sobrevivência no outro mundo era até então decalcada sobre a dos vivos, constituía um prolongamento desta à escala da eternidade. Com a ideologia cristã passa-se da simples sobrevivência a uma sobre-vida (über-leben, como «über-mensch»), libertada do peso da matéria — ou seja da carne — que se distingue definitivamente da vida de sofrimento reservada a este mundo. E a morte começa a apresentar traços de vida autêntica : primeiro, o movimento; é o sentido das «danças macabras» pintadas em frescos num grande número de igrejas, mas também da aparição de monstros directamente oriundos da eternidade infernal que vêm perturbar os vivos — dos quadros de H. Bosch às gárgulas de Notre-Dame de Paris. No entanto, esta presença dos monstros — figuração dos sonhos — constitui a expressão de uma dúvida quanto à realidade da morte («to be or not to be... to die, to sleep; to sleep... perchance to dream»); fundamentalmente, a morte embeleza e santifica. Os vivos são condenados, os mortos são perdoados — ou seja resgatados da contingência corporal. Assim, a morte pode tornar-se desejável: a aliança do sabre e do hissope baseia-se nos encantos de uma «morte gloriosa». De facto é a partir do Renascimento que a arte se consagra a criar uma «ilusão de realidade». Esta tarefa implica antes de mais uma série de conquistas técnicas: perspectiva, modelado, claro-escuro, etc. A arte barroca dedica-se a recriar o movimento. Mas o traço mais importante da sua evolução até ao fim do século XIX é relativo à predominância esmagadora do retrato sobre todos os objectos representados. A acessão à morte individualiza-se. O tempo de pose permite experimentar antecipadamente a imobilidade cadavérica. A partir da fotografia o processo vai inverter-se, mas, numa primeira fase, a fotografia limita-se a tornar acessível ao homem a eternização da sua imagem — aliás, a maior parte das vezes os retratos têm uma tiragem limitada a um único exemplar. A fotografia revela a presença da morte no vivo, descobre no vivo «a imagem latente» (a segunda utilização da fotografia, quantitativamente falando, das chapas fotográficas foi, a seguir ao retrato, a radiografia: esta utilização apenas confirma a função das imagens fotográficas; os povos «primitivos» não se deixavam fotografar, porque reconheciam na câmara fotográfica um instrumento de morte). Porém, com a aceleração da velocidade da impressão da película, chega-se rapidamente à fotografia «instantânea» e a produção de imagens muda de função. Nessa fase a «arte» não desaparece totalmente mas perde o seu papel — ao tomarem consciência disso, após o curto episódio do «impressionismo» que tentou competir com a fotografia no terreno desta, os artistas abandonam a representação «realista» (no sentido de «ilusão de realidade») e depois a representação dita «figurativa». (Este papel é doravante assumido por aquilo a que se


chamará mais tarde técnicas de «comunicação de massas» e mais particularmente pelos «meios audiovisuais», cuja função «artística» é secundária se não totalmente incompatível com a sua natureza). Com efeito o instantâneo não só capta a imagem dos vivos mas também o instante; para além dos personagens fotografados, é a própria vida que é atacada. Antes da aparição da imagem animada, a multiplicação das imagens fotográficas assegura um embrião de vida ao retrato, uma evolução temporal. O modo de vida dos humanos vai-se aproximando da rigidez mortuária através de uma série de transformações técnicas e sociais que permitem simultaneamente um aumento da velocidade e do número das deslocações — abolição do espaço a que já aludimos — e uma crescente repetitividade gestual que favorece sobretudo a posição sentada. Mas, acima de tudo, a percepção das imagens modifica-se — essa mutação é descrita por W. Benjamin como passagem de um «valor cultual» a um «valor de exposição» da obra de arte. A. Leroi-Gourhan, etnólogo, acrescenta que se trata doravante de uma «participação figurada» — oposta à participação «activa», isto é em que a actividade já só se exerce ao nível da percepção e só pode exprimir-se de forma reificada. É este duplo movimento de mortificação dos vivos e de vitalização das imagens que se efectua definitivamente com o cinema que é nosso propósito descrever. A imagem animada, ao mesmo tempo que o movimento, adquire a temporalidade. Com o cinema dá-se a osmose das «técnicas do rasto» — mortuárias — e das «técnicas do gesto» — vivas; é destas últimas que a imagem cinematográfica tira a temporalidade. A antecipação de um momento futuro em que o comboio lhes passará por cima faz com que os espectadores do primeiro filme dos irmãos Lumière baixem as cabeças — a temporalidade garante à imagem cinematográfica a tal «ilusão de realidade», quer dizer, de vida. A imagem lançou-se na conquista das qualidades do vivo; W. Benjamin teve certamente a genial intuição deste facto quando fixou como critério de transformação da essência da obra de arte a sua reprodutibilidade — ou seja a propriedade fundamental que distingue o vivo do morto. Se bem que esta reprodutibilidade se situe num plano «técnico», o personagem no ecrã vai, precocemente, conseguir imitar o vivo a ponto de, por exemplo, morrer — ficticiamente. A sua reaparição numa outra fita, a dos seus traços, e o nome do actor no genérico, são os únicos dados que estabelecem, apesar de tudo, o carácter de simulacro. O culto dos actores confirma que o espectador sabe em que esfera se move, por isso os coloca num outro mundo, num sucedâneo do céu — os actores são «estrelas». Mas a própria ambiguidade do estatuto do actor na sua relação com os personagens que representa constitui um passo decisivo nesta inversão das propriedades da morte e da vida. A história privada dos actores mostra a que ponto a confusão os atingiu: vidas semeadas de suicídios, de abandonos de carreira a fim de não alterar a máscara e os epitáfios. (A eterna juventude, ultimamente publicitada, de uma certa geração de actrizes americanas, inscreve-se sem dúvida neste funcionamento, como testemunho da ambiguidade do ser dessas mesmas actrizes). O resto pertence à história da evolução técnica e estética do cinematógrafo: aquisição da palavra, do som «directo», da cor, etc.; paralelamente, abandono do estúdio em favor dos cenários «reais», contratação de actores não-profissionais, actualização temporal das ficções apresentadas, etc.. À medida que as características vivas das imagens cinematográficas aumentavam, os fenómenos de modelagem do vivo pela imagem — que a arte religiosa e barroca não haviam conseguido — operam-se naturalmente, insconscientemente: identificações, transferências dos espectadores sobre os personagens, difusão de um modelo de vida, ou até de um modelo de sonho. Uma das etapas mais recentes desta vampirização do vivo pelas imagens terá sido talvez o alargamento destas últimas à actividade sexual através do cinema pornográfico — com efeito, durante muito tempo o «código do pudor» em vigor em Hollywood atrasou esta aquisição essencial, o que aliás só prova que um processo histórico se desenrola geralmente fora do alcance e do controlo dos que julgam ser seus promotores. A última etapa cumpre-se com o desenvolvimento da televisão, que se torna rapidamente num dos mais importantes meios de difusão do cinema, mas que transforma irreversivelmente o estatuto da imagem ao colocar no mesmo plano as suas diversas funções — artísticas, ficcionais, informativas, distractivas, etc., encadeando-as num fluxo único e suprimindo enfim o último elemento de participação activa do espectador, a saber, a sua deslocação até à sala de cinema e a compra do bilhete. A televisão tanto apresenta assassínios verdadeiros como fictícios e reclama abertamente a


objectividade, a realidade das suas imagens — última etapa da instantaneização. A temporalidade da televisão tanto regula a temporalidade quotidiana do seu público como se deixa regular por ela. O traço distintivo deste último é doravante a imobilidade, ou pelo menos uma mobilidade extremamente reduzida em torno de uma acção única de contemplação, perenizada pela repetição; em suma: uma característica da morte. A escolha de uma perspectiva, logo à partida orientada, cria necessariamente uma deformação de tipo anamórfico; tal será provavelmente o caso deste artigo. Limitámo-nos contudo a seguir as pegadas tanto de A. Bazin — cf. artigo de A. Roma Torres intitulado «Truffaut, Bazin e o grande embalsamador» in «A Grande Ilusão», nº 2/3 — como de E. Morin, que se interessou pelo cinema ao prolongar um estudo sobre «O homem e a morte». Parece-nos sintomático que o último movimento estético a ter tentado reanimar as propriedades do vivo, a saber o surrealismo, se tenha visto obrigado a pôr em causa, num mundo de imagens, a própria noção de «realidade». A inversão dos pólos que acabámos de descrever parece basear-se na a passagem de uma função de memorização das técnicas do gesto — função essa assegurada pela sua perenidade — a uma função de esquecimento, a que se chegou na era televisiva pela acumulação das imagens. Enquanto o processo estava por acabar, o cinema contribuía para a criação da nossa memória, para nela fixar instantes — «atracções» — cuja força «patética» (mantendo a terminologia eisensteiniana), nos devolvia à nossa condição de vivos. O esquecimento é, pelo contrário, o resultado de uma equiparação desses instantes. É portanto impossível cair no logro, as características vivas da imagem não passam de uma ilusão. A imagem continua a ser um processo mortífero. A deslocação opera-se em torno do objecto, do vivo captado ao vivo a quem esta imagem é transmitida. A nossa mortificação insere-se num processo de evolução do qual a produção em massa da imagem é apenas um aspecto — secundário ou primordial, sobre isso não nos pronunciaremos. Constatamos porém que, seja qual for a sua «importância», contribuiu para afastar o «alhures» onde se encontra «a verdadeira vida». S.


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