A mais de um título A inteligência é uma tara. A lucidez é um veneno. A felicidade, tal como o amor, precisa de um mínimo de cegueira. Como o vidente em terra de cegos, o homem inteligente está votado ao ostracismo e ao desprezo. Como Édipo depois de Tirésias, é obrigado a vazar os olhos. A conformar-se ou a apagar-se. Não pode tomar nada no primeiro grau, está condenado à ironia. Mas como o riso de Melmoth analisado por Baudelaire, que «é a expressão mais elevada do orgulho», que «provém da ideia da sua própria superioridade», que «é explosão perpétua da sua própria cólera e do seu próprio sofrimento», o humor que pratica acaba por se virar contra ele: «os seus órgãos já não suportam o seu pensamento». F
Em última instância, toda a criação mima e comenta a sua génese: os heróis homéricos passam o tempo a contar suas aventuras, D. Quixote e Madame Bovary são fábula acerca dos perigos da leitura, etc. Na pintura, a mise en abyme começou com a representação dos espelhos – amiúde deformadores – e cumpriu-se com os cabinet d’amateur holandeses, assumindo uma função simultaneamente reveladora – as testemunhas secretas denunciadas pelo reflexo, tanto no retrato dos Arnolfini como no das Meninas – e publicitária, literalmente: passa-se da promoção das colecções particulares à do acervo do marchand – o letreiro de Gersaint. FIN
Nos primeiros quadros da série «Museu» de Álvaro Lapa, a mise en abyme é dada como sinal – representação e significação – auto-suficiente. Os rectângulos na parede remetem para um estado da arte exactamente como a presença da mesa nos seus quadros nos seus quadros antigos expunha o seu fabrico, entre a meia cortina da distanciação brechtiana e a inclusão do observador na análise dos fenómenos observados em antropologia e sociologia. A prática da pintura por Lapa incorpora sempre o seu comentário e a sua crítica visíveis – ele fazia disso o critério distintivo da «modernidade»: os quadros são uma materialização da teoria, a sua tradução gráfica, o seu manifesto estético. FINNN
O último «Museu» reproduz a sua própria exposição. Os quadros pendurados são reconhecíveis e todos de sua autoria, reconstituindo o seu percurso pictórico. Ora o narcisismo aparente camufla uma ambição e um desespero mais desmedidos – e menos egocêntricos. Exactamente como Álvaro Lapa compreendeu os autores do seu panteão pessoal de cabeceira e os assimilou a ponto de poder sintetizar iconicamente o seu pensamento em «Cadernos», também interiorizou a história da pintura enquanto fenómeno individual de criação e social de exposição – sem necessidade, como Van Gogh ou Picasso, de voltar a pintar as telas de mestres anteriores: compreendidos todos eles em cada um dos seus quadros, ele é o seu embaixador. F A inteligência de Lapa desemboca, ao cabo de um percurso marcado pelo sofrimento e a amargura parentes dos de um Baudelaire, na consciência da comunhão e da irrisão. Grande leitor de Benjamin, sabe que a arte perdeu o seu «valor cultual» e que o seu «valor de exposição» assenta num malentendido – e no snobismo: pasta e presunção. O último «Museu» consagra simultaneamente a sua inscrição na História – assumindo simbolicamente toda a pintura, os quadros expostos são substituíveis por quaisquer outros – e o fim da História: o elemento humano está ausente, a exposição não tem visitantes, ela consagra-o inutilmente num mundo doravante deserto. A pintura como vanitas. FF