A martingala

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A MARTINGALA Vindo de um longo passado de cinema «experimental», Greenaway abordou a ficção desrespeitando de imediato as regras narrativas quando não o próprio estatuto da forma ficcional: com efeito, a ficção nos seus filmes encerra outras construções abstractas que obedecem a critérios de progressão estritamente formais mas que arquitectam o conjunto da trama. As impressões formuladas por uma franja do público e da crítica — em torno da «frieza», do «esteticismo» e da «gratuidade» ou da «confusão», da «riqueza» e do «jogo» — constituem o reflexo fiel do próprio método de composição que Greenaway adoptou para os seus filmes, e do desfasamento destes em relação ao modelo narrativo convencional; por não se apresentar como uma intriga resumível, o discurso elaborado pelo cineasta não é descodificado para além do plano das sensações. Apesar da diferença entre os enredos, os cenários e as escolhas formais ao nível da imagem, todos os filmes de Greenaway ostentam uma identidade de estrutura que reduz essa diferença a uma variação. A construção de cada obra alicerça-se ela própria numa acção que se repete ao longo de todo o filme — o desenho em DRAUGHTSMAN'S CONTRACT, a decomposição dos corpos em A ZED AND TWO NOUGHTS; as refeições e a construção das maquetes em THE BELLY OF AN ARCHITECT; o assassínio dos maridos em DROWNING BY NUMBERS; as refeições em THE COOK, THE THIEF, HIS WIFE AND HER LOVER —, primeira acção na qual se enxerta uma acção segunda, constante absoluta: o acto sexual. Este tipo de estrutura retoma e explora os princípios desenvolvidos no domínio da música pela tendência dita «minimal-repetitiva» — à qual pertence Michael Nyman, autor de todas as partituras musicais dos filmes de Greenaway — acrescentando-lhes um comentário — a repetição não é tentativa de esgotamento mas impotência de engendrar — e orientando a sua aplicação no sentido de uma morte acelerada, adiantada. A repetição é dada como figura da condenação e tende para a circularidade — à volta da casa em DRAUGHTSMAN'S CONTRACT, à volta da barriga em THE BELLY OF AN ARCHITECT: em torno das rodas infantis em DROWNING BY NUMBERS — cujo fecho é a morte, embora vários indícios sugiram que a morte possa estar na origem de outras formas de existência (para além do humano e prescindindo do humano) por assim dizer objectais — a estátua em DRAUGHTSMAN'S CONTRACT— ou larvares — a bicharia em A ZED AND TWO NOUGHTS e em THE COOK, THE THIEF, HIS WIFE AND HER LOVER. A estrutura minimal-repetitiva desenvolve as suas variações a partir de um acorde inicial, o qual, abstendo-se de construir uma linha melódica, prolifera, e cuja repetição se transforma gradualmente em vertigem — é isso que acontece justamente com as personagens de Greenaway, todas elas arrebatadas, levadas por um frenesi «compulsivo», insaciável, transgredindo as normas conhecidas do sentimento ou do desejo. Porém, esta «lei de composição» utilizada por Greenaway preside à própria escrita dos seus filmes. O núcleo inicial é geralmente mantido nos títulos: «draughtsman» desencadeia o motivo actancial — os desenhos —, mas também a intriga e a oposição visual entre o preto e o branco (e ainda a divisão da imagem em quadrados) — «draughtsman» no sentido de tabuleiro de xadrez onde se deslocam os peões; a decomposição da palavra «zoo» indica o lugar — o jardim zoológico — e a acção central — a putrefação —, mas também as personagens — simultaneamente dois gémeos e duas «nulidades» — e o sentido do seu percurso — o acto derradeiro tal como o «Z» é a última letra do alfabeto; é o nome de um arquitecto que existiu historicamente, Etienne Boullée, que determina não só a problemática em THE BELLY OF AN ARCHITECT — a barriga redonda, por obesidade e por gravidez — como os espaços — colunas redondas, abóbadas — e até os mais pequenos pormenores de posição, de atitude — «se mettre en boule» (fúria e posição fetal) citado pelo cineasta; o guião de DROWNING BY NUMBERS foi, segundo parece, modificado no decorrer da preparação da rodagem (visto que o título anunciado era THE BRAIN OF THE FUNCTIONARY, provavelmente rejeitado devido a um paralelismo demasiado óbvio com a obra anterior) e o centro da acção passou do juiz para as três mulheres, da cegueira para a pulsão assassina — associada a todas as extensões de água suficientes para afogar um homem, da banheira inicial ao rio final —, enquanto os números invadiram o filme desligados da noção de cálculo propriamente dita; por fim, o título THE COOK, THE THIEF, HIS WIFE AND HER LOVER é inspirado no modelo de «le boulanger, la


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