A MATERIALIZAÇÃO DAS ILUSÕES Chamaremos ilusão ao trabalho (efectuado pela consciência) de percepção — i.e. de selecção — e de interpretação — i.e. de ficcionalização — do «real» que sempre nos escapa. Porém, a ilusão está incluída no real — J. Mayoux sintetizava: «O imaginário é uma categoria do real e reciprocamente». Isto significa que podemos perfeitamente viver na ilusão, que o real se ordena, até certo ponto, segundo as leis da ilusão construída. Assim considerada, a ilusão é por essência realista posto que não temos consciência do seu carácter ilusório — parcial nos dois sentidos e ficcional — bem como o sonho — durante o sono, o sonhador não tem consciência de sonhar. Chamamos pois ilusão ao real onde acreditamos que a igualdade permite a toda a gente chegar a presidente, onde todo o mundo pode acabar milionário se jogar à lotaria, onde é possível «ganhar uma guerra», etc.. Em contrapartida, existem ilusões que têm consciência do seu carácter ilusório. São vulgarmente chamadas «ficções» e o seu papel é reforçar, por contra-peso, a crença na ilusão socializada. Uma delas é o cinema. Contudo, a ficção que, por essência, deveria ser não-realista, na medida em que tem consciência da sua natureza, adoptou de há mais de um século uma estética realista mimética da ilusão. Assim, os «autores» — i.e. aqueles que se comprometem no discurso — no cinema ainda se confrontam com a necessidade de denunciar a ilusão no seio da ficção. Alguns, mais subtilmente subversivos, elaboram um discurso em defesa da ilusão lúcida. Daniel Schmid pertence a esta categoria. Em todos os filmes de Schmid, vemos penetrar num universo identificável — i.e. que só difere do nosso pela ressonância: para os protagonistas como para o espectador «soa a oco» — elementos, objectos ou personagens oníricos cuja presença por si só constitui um apelo irresistível a passar para o outro lado do espelho, a entrar voluntariamente na ilusão — mas numa ilusão diversa, pois se é que temos de viver na ilusão, mais vale construí-la: a ilusão socializada deve ser a mais pobre de todas. Todos os filmes de Schmid descrevem o falhanço dessa passagem. De ESTA NOITE OU NUNCA, em que o rito de inversão dos papéis entre senhores e criados presenciado pelos músicos poderia tornar-se irreversível, a JENATSCH, em que Michel é irresistivelmente aglutinado pelo passado para cumprir noutra era o papel que lhe foi atribuído, as obras de Schmid encenam a tentação de desmantelar a ilusão socializada onde vivem os protagonistas. Basta-lhes seguir as pistas que o acaso e a imaginação lhes fornecem. As testemunhas surgem de imediato — os músicos em ESTA NOITE OU NUNCA, o guizo em JENATSCH — aparecem como convites a prosseguir a demanda. Schmid constata que a maioria das pessoas já integrou excessivamente a ilusão socializada e o papel que nela lhes é atribuído; por isso recuam e preferem o seu medíocre desempenho social — criados, jornalista — à ilusão lúcida. Schmid é um cineasta fascinado pelas personagens que dão o salto e transfiguram o pseudo-real: todas as «divas» de O BEIJO DA TOSCA, o arqueólogo e a castelã de JENATSCH, a prostituta de A SOMBRA DOS ANJOS ou IA PALOMA. Todas essas personagens são condenadas pela ilusão socializada e pela sua moral, todas estão condenadas à morte; mas quem não está? A escolha de uma ilusão outra permitelhes justamente ultrapassar a angústia da morte e negar a mediocridade da vida. As divas de O BEIJO DA TOSCA representam constantemente, não distinguem o palco e o real. Transformam todos os espaços em palco e todos os interlocutores em espectadores. Todavia, não se pode dizer que vivam no engano e a sua memória obedece às intermitências, aos caprichos duma existência por elas transformada em digressão permanente. O trabalho de Schmid consiste em adaptar-se a essa transfiguração, em filmar o espaço do hospício — a «casa Verdi» — como um palco. Em O BEIJO DA TOSCA Schmid consegue organizar o real em função da ilusão das suas personagens — operação felliniana no espírito mas não no método: o realizador não precisa do estúdio para metamorfosear os lugares e os objectos. O resultado nem é mórbido — as personagens, votadas à morte vivem com apetite até ao fim dos seus dias contados — nem obscena — etimologicamente, «fora de cena». A transfiguração do «campo», do espaço perante a câmara, exige uma certa ritualização; essa transfiguração efectua-se inventando o seu próprio tempo. Com efeito, a ilusão é sempre uma negação do tempo. As personagens continuam em contacto com o passado que não corresponde
nem ao tempo socializado nem ao tempo convencional da narração cinematográfica. O alongamento do tempo, em relação aos hábitos do espectador, obriga a reconsiderar os elementos — cenários, objectos, personagens — do campo, filmados dentro de um tempo cerimonial em que cada acção, cada gesto se torna capital. A estranheza do espectador ao penetrar numa ilusão que, sem tentar passar por aquilo que não é, pretende contudo constituir uma alternativa à vida, à ilusão socializada e à visão do «real» a ela inerente, funciona plenamente na medida em que o próprio «real» aos poucos muda de estatuto, «desfamiliariza-se». Por isso mesmo, as incursões de Schmid no domínio da ficção — i. e., o real convencional do espaço diegético cinematográfico —, com o seu exotismo de trazer-por-casa — Marrocos em HÉCATE, a Idade Média em JENATSCH — não são totalmente bem sucedidas, embora as paisagens pareçam prestar-se «naturalmente» aos objectivos do autor — as montanhas de LA PALOMA e JENATSCH. Em última análise, a sinceridade de Schmid é um factor decisivo para a recepção da mensagem que os seus filmes vêm reiterando. Schmid ou a recusa da ilusão; Schmid ou a ficção vivida. S.