A nova babilónia

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É preciso começar por afirmar, para evitar qualquer malentendido, que «A Nova Babilónia» não é notável, nem do ponto de vista da estética cinematográfica – praticamente toda ela filmada em planos fixos, bem enquadrados mas sem audácia, numa época em que o cinema mudo, no seu apogeu, domina tanto os movimentos de câmara como os movimentos de multidão –, nem ao nível histórico ou ideológico – o espectador é suposto conhecer os acontecimentos de antemão (à excepção de uma barricada, não há por assim dizer nenhuma «reconstituição», os cenários do café e do palco predominam) e partilhar as opções políticas implícitas (as oposições são assaz primárias e desenhadas a traço grosso). O que é que faz então desta obra um filme memorável? Trata-se, antes de mais, de uma homenagem retrospectiva prestada por uma revolução conseguida a uma revolução «falhada» – nesse mesmo ano, Mardjanov realiza «La pipe du communard», baseada numa oposição igualmente simplista, a partir de uma novela de Ehrenburg, escritor oficial do regime. Na verdade, as qualidades do filme «A Nova Babilónia» prendem-se com: 1) os rostos A despeito de uma corrente realista dominante (depois de renegadas e eliminadas as inovações futuristas), Kozintsev e Trauberg optam – excepto na sequência quase caricatural da «alegria no trabalho», primeira conquista revolucionária da Comuna – por uma estética nitidamente expressionista, pictórica e teatral, mas suficientemente subtil para que as caras e mímicas adoptem «naturalmente» (isto é, sem distorções) a figuração de pintores como Grosz ou Dix (ou Júlio, para citar uma referência mais próxima do público português). E a frivolidade burguesa, no cabaret ou na opereta, revela visivelmente a sua dimensão de pura agressividade: toda a primeira sequência sugere que a «verdadeira» guerra, a única mostrada no filme, é quotidiana e tem como meta a compra de adereços e rendas em saldo. 2) a montagem Baseada no princípio de paralelismo e da contaminação por colocação, ela estabelece parentescos e oposições. O contraste entre o riso e o desgaste – a separação de classe entre burgueses e operários – adquire pleno sentido quando a guerra inicial, tradicional e nacionalista (que nunca se vê e se mantém sempre fora de campo), continua depois como guerra social: o mesmo canto, o hino nacional intitulado «A Marselhesa», é entoado contra os prussianos e contra os activistas da Comuna. Essa montagem sem comentários permite sugerir o risco de adesão do jornalista pacifista/reformista à causa dos burgueses, ou o motivo ligeiro subjacente à pressa, por parte do exército prussiano vitorioso, de chegar a Paris. Contrariamente à maioria dos seus colegas soviéticos, os autores utilizam muito poucos planos simbólicos – tirando a distribuição de leite aos soldados responsáveis pelos canhões, numa sequência assumida como tributo a Eisenstein: imediatamente a seguir, os soldados recusam-se a disparar sobre os operários, citação não velada do «Couraçado Potemkine». 3) a sua construção Toda a estrutura narrativa do filme é brechtiana embora anterior à teorização do «teatro épico»: o espectador é confrontado com um duplo não heróico, o soldado que não tem vontade de combater – ou seja, que ainda não compreendeu a necessária solidariedade de classe, porque, no seu entender, a guerra não lhe diz respeito, essa guerra que o obriga a afrontar (e cabe ao espectador perceber que a alternativa consistiria em juntar-se a eles) os «outros», prussianos ou parisienses (a ele que vem da aldeia e aos olhos de quem os interesses da cidade ou os da nação são estranhos). Dividido mas submetido à disciplina militar, levado a cavar literalmente a sepultura da rapariga que ama, insuficientemente consciente de ser apenas um figurante quando os partidários de Versalhes aplaudem a sua investida contra a barricada, condenado a defrontar-se tão-só com sombras quando é indevidamente felicitado pela sua valentia, ele é a figura central relativamente à qual o espectador deve demarcar-se constantemente. O filme abrira com o riso fútil e fatal da burguesa e fecha com o riso histérico e desesperado da operária ao dar-se conta do beco sem saída no qual o seu amante, transformado em carrasco, se enfiou – e a «última palavra» é proferida pela figura mítica da mãe que verbaliza a necessidade de transmitir a memória como se transmite a vida.


Gostaria, por fim, de sublinhar alguns «pormenores reveladores» das contradições emergentes da ideologia estalinista: desde a presença muito pouco marxista de uma estátua da Virgem Mãe com o Menino, em primeiro plano, no cemitério – para reforçar, através do argumento caritativo, a condenação da repressão levada a cabo pelos partidários de Versalhes – até à inquietante sugestão de uma confissão falsa e exagerada para escapar ao veredicto predefinido – antecipando uma prática que os «processos de Moscovo» virão a banalizar escassos dez anos mais tarde. Abril 2011 Saguenail


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