A ordem de despejo

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A ORDEM DE DESPEJO Já por uma vez tentei descrever a " montagem Pelechian" — cf. catálogo "O Olhar de Ulisses" nº 2: "O Som e a Fúria". O filme Os Habitantes, dada a sua curta duração, fruto da vontade de transmitir uma mensagem simples e directa, ilustra o processo de montagem do realizador arménio de uma maneira ainda mais evidente. O filme está dividido em sequências facilmente reconhecíveis, na medida em que cada uma corresponde a um andamento musical distinto — é a música que ordena o ritmo da montagem: 1 – Abertura: presume-se a harmonia, a existência de uma outra ordem da natureza grandes planos do bater das asas de um cisne, esvoaçar de pássaros. 2 – Sons de guerra: as sonoridades vão-se tornando cada vez mais precisas, até serem percebidas como tiros, passando depois a uma espécie de sucessão de metralha, como que num jogo vídeo avant la lettre. Fuga dos animais. Aqui o filme constitui-se simultaneamente como uma anti-arca de Noé — toda a criação, dos macacos aos elefantes, passando pelas focas, os veados e as feras, é arrastada num mesmo movimento do pânico e como um anti-"Natchalo" (O Início [Natchalo], o filme anterior de Pelechian): a corrida que traduzia o ímpeto revolucionário transformou-se em fuga desenfreada de uma fauna que não compreende os cataclismos anti-naturais provocados pelo homem. Os planos são curtos e apertados, logo a identificação dos objectos (dos animais) dilui-se na percepção abstracta do puro movimento de pânico. A sequência acaba com um grito e o olhar de um macaco que nos encara frontalmente. 3 – A ameaça: a imagem é tão desfocada que as silhuetas a caminhar se confundem com as chamas e nunca se tornam identificáveis (tentativa de câmara subjectiva dos animais?) O homem nunca é visível no filme: os bichos dirigem-se ao espectador sem o intermediário da sua figuração — olhares directos, fuga em todos os sentidos. O cinema de Pelechian quer-se conceptual, na medida em que a figuração não se focaliza nos objectos — "analogons" — mas antes nas formas e nos movimentos portadores de sentido. Não se trata de um cinema abstracto, trata-se de uma pesquisa liberta do sentido preconceituoso atribuído ao objecto e não à sua imagem, de um cinema musical em que a imagem significa plenamente e como um todo. 4 ‒ A migração: amplos movimentos descritos por tomadas de vista aéreas de rebanhos tresmalhados, de pássaros que levantam voo: os habitantes da terra são vítimas de despejo. 5 ‒ Retomada da sequência de abertura: mesma música, imagens idênticas — desta feita há pontuação de grandes planos, primeiro de uma girafa enjaulada, a seguir de outros bichos atrás de grades: a harmonia entrevista é uma memória dos habitantes animais privados da sua liberdade natural. A montagem "em pescadinha" desagua numa reinterpretação das imagens iniciais, que conservam o seu peso simbólico mas adquirem um sentido ideológico novo: a harmonia é, ao mesmo tempo, um possível concreto e o sonho de quem vive acorrentado. Aqueles animais olhamnos como os marinheiros do "Potemkine", gritando-nos "Irmãos!" Resta-nos disparar ou baixar as espingardas. Saguenail


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