A PENETRAÇÃO DO OLHO Buñuel é um cineasta quase mítico — realizou os dois únicos filmes emblemáticos da incursão do movimento surrealista no cinema: UM CÃO ANDALUZ e A IDADE DO OURO; rodou um número considerável de fitas no México (a maioria das quais consideradas obras menores, melodramas «comerciais», repudiadas pelo autor e sem distribuição na Europa; esta lacuna foi parcialmente preenchida na passada época pela RTP, após a retrospectiva completa organizada pela Cinemateca há oito anos atrás); calorosamente saudado pela crítica quando regressa à Europa (1961, VIRIDL4NA), é rapidamente rotulado de cineasta escandaloso, especialista da encenação das perversões sexuais (BELA DE DIA, TRUTANA); a partir de O CHARME DISCRETO DA BURGUESIA, aparece como derradeiro representante duma ética e duma estética surrealistas que a elite intelectual julgara ter enterrado definitivamente com Breton. O evidente parentesco de inspiração dos primeiros e dos últimos filmes é testemunho duma permanência do empenhamento de Buñuel através das diferentes «fases» da sua obra que tantas vezes tem sido reduzida aos seus aspectos mais superficiais — o erotismo, a blasfémia... Convém não confundir surrealismo e insólito ou absurdo. A agressão directa, lembra Breton, é apenas o acto surrealista mais simples e, por conseguinte, o menos interessante. A partir das análises de Freud, o surrealismo apontou como objectivo descobrir «o funcionamento real do pensamento», que as pressões sociais recalcam e que o racionalismo dissimula. Trata-se portanto de rasgar os véus da hipocrisia e da convenção com que ataviamos a pretensa normalidade e de abrir caminho aos fantasmas, desejos e imagens irracionais do inconsciente. As imagens surrealistas andam pois muito longe da pura fantasia e só aparecem como «nonsense» quando decifradas pelo olhar do racionalismo e do recalcamento reinantes. Acrescente-se que, a despeito duma intransigência e dum ostracismo notórios mas necessários enquanto armas contra a recuperação pela esfera cultural, o surrealismo nunca constituiu uma escola estética, como é fácil depreender das suas manifestações pictóricas — da figuração analógica de Magritte à figuração irreferenciável de Tanguy. Os filmes de Buñuel desiludem forçosamente quem neles procurar a fantasia desenfreada que não raro se associa à concepção vulgarizada e folclórica de surrealismo: a sobriedade formal e a encenação ficcional «clássica», baseada em personagens e numa narrativa linear, são constantes assumidas desde UM CÃO ANDALUZ e A IDADE DO OURO — mesmo nestes dois filmes evitou o recurso às trucagens que haviam sido objecto de censura por parte do grupo no caso de LA COQUILLE ET LE CLERGYMAN de G. Dullac, fita esta rejeitada pelos surrealistas. Os filmes mexicanos, em particular, que representam perto de dois terços da obra do realizador, têm toda a aparência de melodramas tradicionais. No entanto, já na fase mexicana encontramos certas figuras que serão reiteradas até aos últimos filmes: a personagem cuja presença por si só semeia a discórdia — com uma propositada equivalência dos critérios morais convencionais: SUSANA A PERVERSA é efectivamente uma personagem «vil» mas os distúrbios que ela provoca são idênticos àqueles que o NAZARIN desencadeia, conquanto este último seja indubitavelmente uma personagem «boa»; o amor que nasce de uma forma irracional e cuja eclosão surge como a própria negação das relações que o contexto estabeleceu entre os amantes — EL BRUTO é o assassino do pai da amante, o amor louco dos protagonistas de O MONTE DOS VENDAVAIS é de ordem incestuosa, etc. (esta temática do amor impossível é uma constante, de A IDADE DO OURO a ESTE OBSCURO OBJECTO DO DESEJO). Mas essas intervenções exteriores, situações ou personagens, são antes de tudo elementos perturbadores que derrubam a fachada da respeitabilidade da moral e da certeza das outras personagens ditas «normais». Mais do que retratar SUSANA, que aparece desde o princípio do filme como uma figura vinda do universo onírico (cena da tempestade), Buñuel pretende evidenciar a degradação da personalidade de cada membro da família que lhe dá guarida. SUSANA funciona como um revelador de desejos recalcados que se tornam compulsivos a ponto de varrerem todos os princípios morais: o capataz recorre à chantagem, o pai está pronto a repudiar a mulher, o filho a matar o pai e a mãe, ao perder as estribeiras, não hesita em chicotear a culpada... Em EL ou A VIDA CRIMINOSA DE ARCHIBALD DE LA CRUZ, o propósito de Buñuel não é de facto ilustrar pela ficção casos clínicos de monomania, mas sim encenar esquemas comportamentais latentes por