A PINTURA AMERICANA Acto I Dispositivo cénico: Uma praia de areia muito branca iluminada por uma luz solar intensa e vertical. As sombras são violetas. Pelo ruído, sente-se que o mar está muito perto, concretamente do lado esquerdo do ponto de vista do público. Todas as personagens estão extremamente bronzeadas. Cena 1 Toni e Fred olham o mar fora de cena. O primeiro está descalço, mas completamente vestido, com fato violeta claro, estilo balnear, de passeio. O segundo só traz um maillot verde fluo muito colante, mas usa sapatilhas de ténis e meias, irrepreensivelmente brancas, de felpo. Toni (arregaçando cuidadosamente as calças, com receio de ser salpicado...) A temperatura subiu. E parece que não vamos ficar por aqui... (Limpando a testa com um lenço pérola.) Depois da casa dos trinta, a coisa aperta, aperta... Fred (sacudindo o cabelo comprido como um cocker molhado) Não sei. Ainda não cheguei aos vinte e cinco. (Olhando o volumoso relógio de mergulho.) Elas costumam chegar mais cedo. Toni A Gina ficou entregue ao enfermeiro. De resto, ela não gosta de vir cedo. Só vem de manhã por causa do iodo. Ordens do médico. Ultra-violetas. Fred (à queima-roupa) É um grande peso para si, não é? Toni (não sem pesar as palavras) Não... pelo contrário. Uma mulher torna sempre tudo mais leve. Sobretudo se não for a nossa. Fred (agitando-se como um ginasta que não pode estar parado) Depende... depende... Toni (apanha uma concha rósea e examina-a como se fosse muito interessante) A Gina diz: a praia só se aguenta quando está muita gente. Preciso de anonimato... É uma mulher notável. Fred (saltitando) Tudo o que ela diz você assina por baixo? Toni (irónico) Claro. Ela só passa cheques em branco. (Percebendo que o outro não percebe.) Topas? Fred (sacudindo improvável areia do maillot) E a Kate onde andará? Ainda a dormir com certeza. É esquisito. A praia dá-me sono e tira-me o sono... Toni (pousando cuidadosamente a concha) A Kate combinou uma partida de ténis com o velho. Vai chegar coradinha e de candeias às avessas. Por ter perdido... O Nick é bom jogador, graças a Deus. Fred (insinuando) Você anda a escutar as conversas de toda a gente. Toni (displicente) Mero acaso, mero acaso. O Nick, com os copos, levanta um bocado a voz. (Reflectindo.) O Nick é bom jogador. Acho que falou alto para os outros ouvirem. Se uma pessoa não consegue planear o dia com alguma segurança, morre de pasmaceira neste sítio. Fred Os outros? Que outros? O preto que serve copos no bar do hotel? Chegada de Nick, vindo do fundo do palco. Veste casaco e calções coloniais dum amarelo ocre que fere a vista; fuma charuto; traz um jornal de cor rósea debaixo do braço com o qual depois acena aos dois outros.
Fred (gritando) Hei! Toni (estendendo a mão a Nick) Empresta-me as páginas da bolsa? Nick entrega-lhe o jornal inteiro. Fred (para Nick) O Toni diz que você ontem contou a vida inteira ao preto do hotel? Nick (interdito) O único preto na minha vida é o meu carro e está velho. Toni (escondido pelo jornal aberto) O Fred acredita em tudo o que ouve para não ser obrigado a acreditar naquilo que vê. Fred, incapaz de responder á letra com a rapidez necessária, abana a cabeça como um cocker e vai dar um mergulho. Toni (ainda escondido pelo jornal róseo) Este rapaz deve ter um músculo muito rijo no cérebro. Nick (enciclopédico - fútil) Rigidez dos mortos, rigidez da mocidade. Isso é um dado adquirido nos quatro cantos do mundo. Mas nem por isso a moleza parece mais apreciada. As lesmas metem nojo às miúdas. As minhocas idem. Bicho curioso, a minhoca. Programado para se defender das pulsões que desperta. Cortam-me ao meio? OK, o meu corpo sabe lidar com isso. (Ligeiramente agastado com a indiferença de Toni que continua mergulhado na leitura do jornal.) Então? A bolsa ou a vida? Toni Onde é que deixou a Kate? Nick Debaixo do chuveiro. Isto é... quase. A malta nova tem o culto da água. Sinal dos nossos tempos... informes, não acha? Toni (voltando a mergulhar na leitura do jornal róseo) A Kate é dos «Peixes». Aqueles olhinhos esbugalhados não enganam ninguém. Fred, completamente encharcado, regressa do banho a correr, abanando a cabeça como um cocker. Nick (para Fred) E você é «Leão» ou «Virgem»? Fred (por candura ou por excesso de sol na cabeça) Leão a caminhar para Virgem. Virgem, virgem. O meu aniversário calha depois das férias. Nick baixa-se para apanhar um búzio enorme, duma tonalidade próxima do coral, e encosta-o ao ouvido. Nick (calculando o efeito) Estou a ouvi-la chegar. Fred e Toni viram a cabeça para o fundo do palco. Kate e Ben caminham lentamente em direcção ao grupo. Bikini exíguo sob uma espécie de "négligé" semi-transparente, ambos rosa-salmão, capeline branca e excessiva. Kate avança com o langor estudado de uma personagem felliniana. A seu lado, Ben enverga um inconcebível fato de banho amarelo às bolas vermelhas que parece saído do guarda-roupa de um palhaço. O seu passo trôpego convém mal ao papel de cavaleiro-andante de Kate. Traz debaixo do braço um guarda-sol azul turqueza, que vai abrir e colocar num sítio indicado pela companheira. Fred (contrariado) Meio-dia. Isto não são horas de aproveitar a praia. Toni (entregando abruptamente o jornal a Nick) Que chatice! A Gina vai-me rogar pragas... Até já. Sai precipitadamente de cena atravessando o palco, não sem lançar um olhar negro a Ben que mostra alguma dificuldade em segurar convenientemente o guarda-sol. Kate (para Ben)
És um amor! Não queres ir provar a água por mim? Fred Está salgada. Desde sempre. Kate Ai está? Não me diga... Ben fica a segurar o guarda-sol sem saber o que fazer. Nick, com o jornal róseo a proteger-lhe os cabelos grisalhos, observa a cena. Kate Nick, pode-me emprestar o seu jornal? Nick (espirituoso) Olhe que foi comprado às nove da manhã. As notícias já não são frescas. Kate Eu não vou ler nada, ia embrulhar as minhas sandálias. Para elas não ficarem a escaldar. (Começando a espalhar bronzeador nos braços.) Tenho uma tarefa árdua a cumprir. Prometi ao Ben contar os sinaizinhos todos que ele tem nas costas. E tem muitos sinais o Ben. Fred (solícito) Eu posso ajudar... e espremer-lhe umas espinhas que ele também tem muitas. Costumava fazer isso à minha mãe e ela pelava-se... Kate Não quer antes ir dar um mergulho para afugentar as alforrecas? Bolas, você não consegue ficar quieto um minuto. Até me canso só de olhar para si. Nick (paternalista) A esta hora o Freddie, aos banhos que já tomou, deve ter o oceano inteiro na alma... (Fala como se Fred não estivesse presente.) É raro haver alguém com tanta energia... animal. A Kate, que gosta tanto de sol, não aprecia a energia do Fred? Fred não sabe onde se meter. Ben embrulha as sandálias de Kate no jornal róseo. Kate (enxotando invisíveis insectos) Gosto, gosto, gosto de tudo. Enfim... de umas coisas mais, de outras menos. Mas as coisas de que gosto cansam-me com muita facilidade. Ó Ben, põe as sandálias debaixo do guarda-sol. De outro modo o embrulho não serve de nada... E agora passa-me creme nas costas. Bem espalhado, sim? Nick Eu faço isso. Deixe o Ben ir ao banho que o rapaz está todo suado. Você trata o seu amigo como um cão. Fred (totalmente a despropósito) É uma mulher notável. Nick E notada. OK, Fred, tu passas creme no ombro esquerdo e eu no ombro direito. Ficas com o lado do coração e eu com o da cabeça. Esta menina tem tudo no sítio... dentro da cabeça. Fred saca a Ben o boião de creme que ele segura aberto na mão e atira-o a Nick que o apanha em vôo, in extremis. Ben (de gatas, enrubescido e fulo) Pára com isso, pá! A praia é um lugar público mas as costas da Kate são um sítio privado. Nick, surpreendentemente divertido, devolve o boião a Fred, fintando Bem como numa partida de basket. Kate (sorridente) Querem brincar um bocadinho? OK. Não sejas tão sério, Ben. (O jogo de bola com o boião prossegue.) Olha, estou a morrer de sede. Não te importas de ir buscar meia grade de bebidas geladas? Eu consigo lidar sozinha com estes senhores... Ben levanta-se num pulo e tenta interceptar o objecto volante que lhe roça os dedos esticados. Desviado da trajectória, o boião cai na areia. Kate (perdendo o tom de langor infantil)
Fo... go, Ben! Não se encontra deste creme nesta parvónia. Achas que qualquer merda serve para untar as minhas costas? Ben corre para o mar como uma flecha, sem olhar para nenhum dos presentes. Fred (triunfante) Se tirarmos a primeira camada com uma colherzinha, ainda salvamos a situação. Vou pedir uma à vendedora ambulante. E trago as bebidas. Corre para fora de cena, no outro sentido, como se fosse tratar de um assunto de vida ou de morte. Nick (medindo o impacto) Você dá-lhes a volta ao miolo. (Um tempo.) A temperatura está a subir... e parece que não vamos ficar por aqui. Nunca acendas um fogo que não consigas apagar. Provérbio africano. Kate (afectando curiosidade) O Nick já esteve em África? Nick (mordendo o anzol) Ui! Conheço aquilo de lés a lés. Negócios. A África é o último negócio. Pelo menos que mereça esse nome: os lucros igualam os riscos. Nunca ouviu falar do chamamento de África? O chamamento é esse. Kate (o tom é de convite implícito) E quando é que lá volta? Nick Já respondi ao chamamento. (Resposta ao convite implícito.) Estou à espera de outros chamamentos. Do lado oposto do palco, jorra a voz feminina e quente de Gina que ainda não entrou em cena. Gina Nick! Nick! (Entra em cena de cadeira de rodas, empurrada por Toni.) Dê aqui uma mãozinha ao Toni para ele levantar a cadeira. Nick queda-se uns instantes a saborear o sorriso recheado de dentes brancos com que Kate o presenteia e depois vai ao encontro de Gina e Toni. Este último enverga agora uma camisola de algodão às riscas azuis e brancas e calças a condizer; o ar de gigolô fica-lhe a matar. Gina vestida de roxo -calças de corsário, blusa com gola em barco, chapéu de palha italiano - vem envolta em véus da mesma cor que ora camuflam ora revelam o gesso no braço direito, as ligaduras no braço e no pé esquerdo. Tem algumas equimoses no pescoço esbelto e uma mancha violeta debaixo de um dos olhos. Gina (enquanto avança a 20 cm do chão, transportada por Toni e Nick) Ai, obrigada Nick. Que seria de mim sem os homens? (A cadeira é pousada junto ao estendal de Kate.) Que seria de nós sem os homens, Kate? Kate (inexplicavelmente mal-disposta) Seríamos melhores. Acho eu. Toni abre um segundo guarda-sol, amarelo limão, para proteger Gina. Gina (segurando a mão de Nick) A nossa Kate acordou de rabo para o ar, estou a ver. Kate A praia dá-me sono e tira-me sono. Falta-me a televisão para adormecer. Em casa adormeço sempre com a televisão ligada. No mínimo, mas ligada. Parece que fico ligada à terra. Toni Tenho um televisor no quarto. Se a Kate quiser... (apercebendo-se a tempo...), se quiser, eu trato... eu procuro saber onde se pode alugar... Gina Ó Toni, a Kate está num parque de campismo. Ben regressa do banho. Cabisbaixo, estende meticulosamente uma toalha cor-de-laranja e fica a fitar o firmamento, de olhos piscos. Gina A maré está a subir. Não sei se será boa ideia ficarmos por aqui.
Toni Você precisa de iodo, Gina. Quanto mais perto das rochas... Gina Toni, seja um santo, não me repita o que eu faço por esquecer. Vá-me buscar uma bebida gelada. Mas uma coisa forte, um veneno qualquer que me ponha atordoada. Níck (sacando uma garrafinha metálica do bolso do casaco colonial) Gin. É a minha receita para salvar o mundo líquido da insipidez. Gina no masculino. Em caso de afogamento é ideal. Kate (pretendendo voltar a ser o centro das atenções) O Freddie deve estar a chegar com as bebidas. Coitado, a bicha que uma pessoa é obrigada a fazer para comprar seja o que for nesta terra. Eu perco logo a vontade de tudo. E nem um bar decente. Não voltam a apanhar-me aqui. Nick (sentencioso) Fazer férias é uma canseira, Kate. Quase pior do que trabalhar porque nos pedem o maior dos sacrifícios: mudar de hábitos. Hora incerta de despertar, companheiros desconhecidos e em número muito acima do tolerável, escolha de jornais condicionada... Sete cães a um osso por toda a parte. Ben (tentando entrar na conversa) Poluição sonora... Gina Sobretudo o barulho do mar. Não acham insuportável este marulhar constante. Ainda falam na tortura da gota. O que pode uma gota comparada ao oceano? Ben (obscuro) Transforma um ser normal num criminoso... Kate dormita, sorrindo ao sol como uma criança. Olhando para ela, Toni despe as calças e a camisola de algodão. Obsceno maillot cor-de-rosa carne. Fred entra em cena a suar em bica, carregado com uma grade semi-repleta de latas de refrigerantes vários. Ninguém se mexe para o ajudar... Fred (em voz baixa, pousando a grade sob o guarda-sol) À sua sombra e à sua guarda, Gina! (Dá um murro na barriga de Toni.) Vamos beber o Pacífico antes de ressacar em terra firme? Fred e Toni saem de cena. Nick abre uma lata de água tónica, despeja metade, verte um pouco de gin no gargalo e entrega-a a Gina cujos olhos brilham estranhamente. Ben (prosseguindo pensamentos em voz alta) Mas um criminoso embalado pelas ondas pode voltar a ser inofensivo e adormecer como uma criança. Um dia, o lobo do mar deixa de ouvir as sereias e vira cordeiro do mar. Gina (num tom maternal que lhe fica mal) Por que é que o Ben parou de estudar? Você é um rapaz esperto... (Olhando de relance Kate adormecida)... a sua cabeça vale muito mais do que um rabo de saia. Fred, fora de cena, chama pelos outros aos gritos. Kate acorda estremunhada. Fred (com entusiasmo infantil, off) Aí vai uma bola perdida. (Gritando.) Venham jogar à bola. Aqui dentro está uma sopa... Uma bola insuflável e transparente, de cor vermelha, vem parar às mãos de Nick que a chuta para fora de cena. Ben e Gina não reagem ao apelo. Kate levanta-se, sacode os caracóis louros e avança para a água como se caminhasse numa passerelle. Nick acompanha-a, a uma certa distância. A chegada de Kate à água provoca uma explosão de risos e comentários. Fred (off) Está boa! Até os tubarões ficam mansinhos com a água assim Kate (esganiçada; off) Há tubarões? Toni (off) Claro que há tubarões. Olhe para mim. Kate (esganiçada; off)
Não me morda a barriga da perna que eu tenho má circulação. Ai, não! não! (Splash!) Nick (off) Acho que não resisto ao chamamento! O casaco colonial e os calções de Nick voam para junto de Gina e Ben que parecem hipnotizados pelo alegre espectáculo dos outros. Risos. Braços a chapinhar. Gritinhos. Gina (rompendo o silêncio) O Ben não tem sede? Ben Não. Eu sou um camelo. Gina Ah!... Pois, ela transformou isto num jardim zoológico. Ben (quase triste) Não é ela... Gina (muito devagar) Não? Então quem? Ben Há demasiados predadores... abriram as jaulas. Kate (zangada; off) Freddie! Freddie! Eu não quero andar às cavalitas. Tenho tonturas. (Splash!) Gina O tratador mostrou a carne mas não deu de comer. Um truque velho como o mundo. A carne é mais forte do que o espírito. Kate (zangada; off) Tenho fome! Larga-me! Deixa-me sair da água... Ben (tristemente irónico) Sabe, eu sou vegetariano... Kate irrompe pela cena dentro, encharcada e perseguida por Fred. Corridas à volta do palco, com pretensas fintas e outros jogos de corte Ben (erguendo-se e olhando Kate) E ela é como o mel. Gina O mel que os deuses derramaram na face da terra. Os deuses não dão ponto sem nó. Kate precipita-se para a grade de bebidas pousada à beira da cadeira de rodas. Tira uma lata de coca-cola e bebe um golo com sofreguidão. Escorre-lhe espuma nos cantos da boca. Fred, no seu encalço, estaca a um metro dela. Kate (oferecendo-lhe a garrafa) Queres? Está um bocado choca. Fred (vai sentar-se na toalha de Ben) Espera. Acho que me magoei. (Olhando a perna esquerda que sangrou abundantemente.) Não sei como fiz isto... Kate Foi um tubarão dos pequeninos... A bola vermelha volta a entrar em cena, vinda do lado do mar. Risos masculinos. Kate agarra nela e volta a correr para a água, seguida por Ben. Fred faz menção de se levantar mas não se atreve a deixar Gina sem companhia: Gina (rindo) Eu não me perco. Há-de perder-se você antes de mim. Fred (fazendo-se mais bronco do que é) A terra é pequena. Não vejo como. Gina As feras só perdem a cabeça dentro da jaula. Fred Fera? Eu? Gina É a presa que faz a fera. Fred (desviando a conversa)
E a esta hora a fome já aperta. Kate (off) Até ao último rochedo e voltar. Sem parar. (Splash.) Nick (off) A Kate quer dar cabo de mim. (Splash.) Gina (sibilina) Mas a presa não pertence a nenhuma fera em particular. Enquanto vive, divide-se entre todos os bichos que a cobiçam. É uma forma inferior de liberdade. Inferior, insuportável, a liberdade dos fracos. Fred (olhando a perna ferida) Dizem que a água do mar ajuda a cicatrizar. Gina No meu saco de ráfia, há tintura de iodo e algodão. (Rindo.) Ou está à espera que a sua presa lhe lamba as feridas? A bola vermelha volta a entrar em cena. Cai aos pés de Fred. Gina (solene) É a vossa presa a chamar por si, Freddie. Fred, perturbado, não toca na bola. Risos off. Kate (off) Toni, vá lá buscá-la. O Fred está magoado. Gina (rindo) Vê como a presa pode ter a força do domador? (Prática.) Estou em jejum e preciso de tomar o meu anti-inflamatório. Fred Vou arranjar umas sandes. A escolha é pouca, mas enfim... Não consigo ficar quieto durante muito tempo. Estes pulgões brancos enervam-me quase tanto como os turistas. (Rindo.) E comigo a rapariga do carrinho engana-se nas contas. Fred enfia uma camisa cor de tabaco, enrodilhada na areia, e sai de cena pelo lado oposto ao mar. Toni, encharcado, vem buscar a bola. Está visivelmente exausto. Risos off. Kate (off) Mergulha, Ben, mergulha. Se deixares as costas ao sol, vais ficar cheio de sardas. Gina (dura) Estás à espera que os juniores a comam antes de ti ou que o sénior a aqueça em banho-maria? Se fores lento a saltar-lhe para a espinha, só te hão-de deixar os restos. Toni (sem convicção) Ela é uma miúda... Gina Queres uma colherzinha? Toni vira costas a Gina, pega na bola e dirige-se de novo para o mar, tentando equilibrá-la na ponta do nariz como uma foca. Nick que vem no sentido inverso, cabisbaixo como um touro vencido, lança-lhe um olhar atónito. Gina (suspirando, para Nick) O que um rabo de saia consegue fazer numa praia... Nick (maillot preto) Sobretudo quando tira a saia. Kate (esganiçada; off) Vou fazer o pino debaixo de água. Toni, segure-me os pés. (Splash.) Gina Não me quer servir a dose gémea da que me deu há bocado? Nick (tirando dum bolso do casaco colonial uma garrafinha metálica) Com rum sabe melhor... (Mistura o rum com coca-cola depois de ter esvaziado metade do respectivo recipiente; bebendo um gole de rum puro.) Ao reinado do rabo! Abaixo a saia! Viva a praia...
Gina (insinuante) Você tem tudo planeado desde o início. Nick (falsamente modesto) Isto é como uma refeição: o mais saboroso fica para o fim. Gina (temível) Gosta das sobremesas nuas e desgrenhadas? Nick (douto) A sobremesa, na versão canibal, será mais picante do que o prato de resistência. Gina (abrindo um sorriso) Ainda bem que nesta parvónia se encontra um sujeito... viajado. Nick Em todas as minhas viagens, nunca fui parar a um lugar tão morto. Gina A pintura engana muito. Alguma vez reparou que os pintores nunca representam os gafanhotos nos campos de alfazema, o cheiro a esturro nas queimadas africanas, o fedor a estrume nas pradarias? Na pintura falta sempre o espírito do lugar... Kate (off) Estou a ficar arrepiada. Esfrega-me as costas, Ben. Nick E qual é para si o espírito deste lugar? Gina (reflectindo) O oceano... é o grande caldo de cultura... O lugar odioso onde tudo começa. Os animais ainda não têm pernas para andar, nem cabeça para pensar, mas já rabiam, já se devoram, já copulam porque a vitória da espécie é mais importante do que o triunfo do espírito. É esse o preço que pagámos pela vida e só pagámos as primeiras prestações... (Noutro tom.) A maré está a subir. Fred entra em cena com um cartucho de papel amarelo debaixo do braço. Nick (para Gina) O Senhor Músculo perdeu algumas penas em combate... Fred (afogueado) Trouxe-lhe uma sande de atum. Esgotou tudo. Ontem não havia dinheiro na caixa automática, hoje não há comida. Uma pessoa sai da cidade e cai na selvajaria. Gina (examinando a sande que Fred lhe trouxe) Nem um tubarão esfomeado comia isto... Está estragada... que fedor, Freddie. Nick O Toni conhece um pronto-a-comer. Eu levo-o de carro e alguma coisa se há-de arranjar. (Aproximando-se do lado do mar.) Toni! Toni! Gina Não se esqueça do gelo. E do álcool. Ração de combate, não é Freddie? Fred Eu sou anti-alcoólico, não tenho vícios... Gina Grande virtude. Embora a virtude seja um sintoma de privação... Fred não percebe. Kate entra em cena acompanhada por Ben que vai buscar uma toalha para a friccionar e por Toni que a mira com um ar lúbrico. Kate (olhando em redor) A léguas em redor não existe um bar, uma pista de dança, um juke-box. Gina Apetece-lhe dançar? Kate Sempre. Na escola faltava às aulas da tarde para ir sozinha à danceteria. Conheço os homens pela maneira como dançam. (Rindo.) E nunca me engano. Os que não dançam têm alguma coisa a esconder.
Nick (para Toni que olha embasbacado para a miúda) É preciso ir buscar víveres. Talvez àquele pronto-a-comer que fica na entrada da auto-estrada. Ben (tiritando, para Nick) Posso provar um gole do seu medicamento? Nick entrega-lhe a garrafinha de rum. Sumariamente vestidos, os dois homens mais velhos afastam-se no sentido oposto ao oceano. Kate A Gina não gosta de dançar? (Apercebendo-se da gafe.) Agora não, claro. Dantes. Antes de ter o seu... o seu acidente. (Silêncio.) O que é que... como é que isso aconteceu? Gina (sibilina) Acidente urbano. Hora de ponta. À minha hora, a escola estava sempre fechada. Ben Há quem nasça com a escola toda... Gina (à letra) Outros há que se cagam de medo nos exames. Fred (completamente a leste) A minha mãe tirou-me da escola para fazer de mim um homem... Ben (irónico) Uma mulher notável. Gina (para Kate) O Freddie e o Ben devem ter sido irmãos noutra vida. Kate A Gina acredita na reincarnação? Gina (sibilina) Acredito no triunfo da carne. E nas facilidades de pagamento. Kate Eu pago tudo a pronto. E fazem-me sempre grandes abatimentos. Ben (sombrio) Mas nunca pagas pelo que fazes, pois não Kate? (Duro.) Quanto pedes por uma queca? A pronto? Kate dá-lhe um violento safanão com o pé nas costas. Gina (jubilando) É preciso merecer uma menina como a Kate. Fred Uma rapidinha é sempre mais barato. Atrás dum rochedo. Ben Sim, irmão. Gina Estou a ouvir o motor de um carro. Que alívio o motor de um carro neste deserto! Kate amuou para disfarçar o seu crescente mal-estar. Fred (para Ben) E dentro de água, já experimentaste? Ben (forçando-se à cumplicidade) Sonhos molhados... são os melhores, irmão, são os melhores. Fred (pegando no saco de Kate) Vamos ver se ela precisa de nota. Ben Esvazia tudo. Fred (exibindo o objecto) Lenços mentolados, Ben (exibindo o objecto) Pastilhas elásticas. Sabor a mentol.
Fred Cigarros king size. Mentolados, claro. Ben (pintando a cara com o bâton) Bâton. Cheira a morango. Falta de coerência. Fred (exibindo o objecto) Aspirina. Efervescente. Pouco original. Ben E ganza? Não tem ganza? Fred Não. Ganzada já ela é. Ben Duas notas de 100. Meia dúzia de moedas. Fred Não dá para mandar cantar um cego. Ben Mas chega para o juke-box. Fred Afinal é pobrezinha... Ben Só é pobre quem quer, irmão Fred Quando a maré sobe Ben E a fome aperta Fred Uma rapariga esperta Ben Só precisa de escolher Quem a vai foder... Kate (furiosa) Arrumem tudo no saco. Fred Porquê? Fica tão bem tudo assim espalhado. Ben Parece um supermercado. Toni e Nick entram em cena, do lado oposto ao mar, carregados com pacotes multicolores. Fred Vamos ajudar os velhos. Ben Não. São os velhos que nos vão ajudar. Toni e Nick pousam os sacos debaixo do guarda-sol de Gina. Toni Maionese de marisco em pão integral. Nick E sandes de tomate para o Ben. Gina E o reforço líquido? Toni Sumos... Nick O resto eu providencio. Gina (abanando a cabeça com fingida desolação) A Kate está a precisar de um estimulante. Estes dois galfarros não têm tento na língua.
Nick (esvaziando meia lata de sumo de laranja e completando com vodka contido numa garrafinha metálica que saca dum bolso do casaco colonial) Beba isto, Kate. Uma onda mais forte salpica levemente o grupo. Kate, enrubescida, engasga-se com o forte cocktail. Risos. Toni (com voz de tenor) Vinde a mim ondas do mar Ide ao mar ondas de mim... Kate (semi-atordoada) Canta muito bem, o Toni. Gina E tem outros talentos. Filho de talhante, corta a direito. Toni O meu pai não era talhante, Gina. Tinha uma rede de câmaras frias. Fez-se a pulso. Fred e Ben devoram as sandes e a conversa. Nick, emproado como uma ave de rapina, aguarda. Gina (para Kate) Óptimo partido, o Toni. Carne de primeira, bem conservada. (Para Nick.) Nick, para mim a lei é seca? Uma onda fortíssima salpica o grupo. Nick prepara um gin tónico a Gina e segunda dose de vodka com laranja para a miúda. Kate (aceitando a lata) O papá também é sócio de uma rede de frio. Fred e Ben escangalham-se a rir. O pedaço de areal que o grupo ocupa começa a ficar juncado de sacos gordurosos e latas vazias. Ben Entregas a domicílio? Fred Centenas de trenós puxados por brancas matilhas... Ben Ou por renas como o Pai Natal. Fred Quem diria que uma coisinha tão quente podia vir do frio? Ben Mas veio bem embrulhada como uma prenda. Fred (de gatas, aproximando-se de Kate) Vamos desembrulhar, irmão? Ben Sempre foi a minha parte preferida. Fred tenta desapertar o soutien de Kate. Kate debate-se. Uma onda fortíssima rega o grupo. Toni (olhando os detritos acumulados na areia, como se a agressão contra Kate lhe parecesse natural) Não vamos deixar este lixo aqui? Gina (inebriada) O mar leva tudo. Ben (puxando por uma perna de Kate) Jingle bells Jingle bells Jingle all the way... Fred (puxando pela segunda perna de Kate e começando a arrastá-la pela areia com a ajuda de Ben) Que prazer Cavalgar Numa égua à beira-mar... Ben (para Kate)
O Freddie canta muito bem. É um galaró. Kate (ébria, berrando com dificuldade) Canta desafinado. Larga-me, Freddie! Fred (largando a perna) Não te apetece brincar connosco? Ben (para Fred) Só quer brincar comigo. Tu és um bruto. Fred (para Ben) Mas somos irmãos. (Imitando Kate.) Ó Ben, não sejas tão sério. Ben (para Kate) Este rapaz deve ter um músculo muito rijo... no cérebro. Kate está prestes a chorar. Porém, na adversidade, não quer dar parte fraca. Desgrenhada, vai buscar uma sande que se põe a mordiscar na esperança de ser esquecida. Nick (servindo vodka com laranja a Kate) Isto ajuda a passar. Tudo passa, minha linda, tudo passa. O mar vem, o mar vai. A gente só se molha e logo seca. Toni O meu pai diz que até os montes abrem as pernas para deixar passar o comboio do progresso. Kate (com a eloquência do desespero) Eu odeio a natureza. Montes, dunas e essa merda toda. É tudo feio e sujo. Uma casa pode-se aspirar, limpar, lavar. Nos montes cresce mato ao desbarato, nas dunas há plantas que picam os pés. Ninguém pode fazer uma limpeza geral. A terra borra os sapatos, a areia mete-se pelos olhos dentro. Só gosto de água. Água, água, água. Já viram como eu estou suja? (Escorre-lhe líquido alaranjado pelos cantos da boca.) Meto nojo aos cães. É por isso que as mulheres mais bonitas morrem numa grande banheira branca. (Dá mais um gole na lata.) Com quilos de espuma branca. E uma toalha branca na cabeça. E há milhares de borboletas brancas e flocos de neve e nuvens de pó de arroz e algodão em rama para tapar as frinchas. (Ameaça vomitar.) E frasquinhos cheios de pastilhas, de talco, leite de beleza, leite desnatado, gelado de baunilha, corredores de néon, batas, mordaças, luvas, penas, penas, penas cada vez mais pequenas... (quase desfalece) e um livro sem letras. Gina (tom de sacerdotisa) Levem-na. Date, atordoada e entorpecida pelo álcool, ergue-se e tenta fugir. Os quatro homens ocupam os quatro cantos do palco para impedir a fuga da miúda que corre em todas as direcções como um bicho encurralado. Kate (gritando) Nick, quero ir para casa. Nick (encolhendo os ombros) Eu não sou ama-seca. Por fim os homens formam uma barreira e obrigam Kate a avançar para o mar. Gina (quando fica sozinha em cena) A maré vai descer. Acto II Dispositivo Cénico: Café-bar nocturno. Ao fundo, um balcão arredondado. As mesas à frente. À direita, um juke-box e a porta dos sanitários. À esquerda, uma montra envidraçada que dá para a rua. O interior é parcamente iluminado, com lâmpadas de néon no bar e sob as mesas. Toda a luz parece emanar de baixo. Lá fora, chove. Sente-se o halo dum lampião na esquina. As personagens são extremamente pálidas. Cena única Toni, atrás do balcão, impecavelmente penteado, enxuga copos com um pano de duvidosa brancura. Gina, sentada a uma mesa perto do balcão, saboreia um gin tónico. O café-bar está
vazio. Um ruído de chuva persistente e o longínquo barulho da circulação sugerem que o local é um refúgio nos confins da cidade. Toni (arregaçando as mangas com alguma elegância profissional) Continua a chover. E parece que não vamos ficar por aqui. Gina (no tom familiar de quem é cliente habitual) Olhe, eu daqui não arredo pé. Isto (apontando para as paredes do recinto) é a minha jangada. E não sou a única náufraga, fique descansado... Foram todos dar a outra costa. Toni (tirando cerveja para um copo alto e estreito e bebendo um longo gole) Com a chuva eles não gostam de vir cedo. Quando aparecem é já, de facto, em último recurso. (Rindo.) Tem o ar culpado de capitães que abandonaram o barco. Gina (suspirando) Não é fácil escolher a tábua a que nos vamos agarrar. Há muitos destroços por essa cidade fora e muitos faróis que parecem luzir em terra firme... (Silêncio.) Outro. Com menos gelo e mais gin. Eu, mal sinto a terra firme, tenho náuseas. Só acontece a certas horas do dia, sempre as mesmas. (Toni vem servir-lhe o gin à mesa.) Obrigada. Toni (sentando-se à mesa dela) Você está em maré negra. Gina (vestida de vermelho, rindo) O negro é a minha cor. Jogo no negro. Se perder, volto a apostar no negro. Nunca tenho pena de perder, se jogar no negro. (Silêncio.) Não gaste conversa comigo. É mau investimento. Você precisa de palavras para vender copos e eu preciso de silêncio para os beber. Toni (levantando-se e dirigindo-se para o juke-box) Então diga-me o seu disco preferido... deve conhecer a colecção tão bem como eu. Gina Não ponha música. Odeio música. É como pôr açúcar para disfarçar o sabor das coisas. A música sobe-me à cabeça, asfixia-me, não me deixa pensar. A música só mostra um caminho que é o dela, obriga-me a ficar à tona. Abaixo a ditadura da música. A música é o pensamento único. Eu quero perder-me nos meus pensamentos. Aliás, se aqui venho quase todas as noites é por raramente haver um disco a tocar. Toni (levantando os braços em sinal de rendição) Ok! Ok! Bolhas de ar e silêncio como num aquário. E, no meio do aquário, uma mulher perdida. Belo quadro. Muito sugestivo. É pena eu não ler nos seus pensamentos. O café mergulha num silêncio aquático. Alguns instantes depois, Nick, de fato negro, gravata, camisa azul e chapéu, entra em palco vindo da direita da plateia. Traz consigo um guarda-chuva encharcado mas está perfeitamente enxuto da cabeça aos pés. Aproxima-se do balcão, senta-se virando-se ostensivamente para Gina. Nick (para Toni, olhando Gina) Uma imperial. Sem gravata. (Desfazendo o nó da gravata e metendo-a no bolso do casaco.) As morenas não vão à bola com gravatas. (Gina descruza as pernas e vira-se para o público com um ar enfadado.) A minha teoria sobre as mulheres é a seguinte: quase todas as da raça branca, que é o grupo que nos interessa, nascem loiras. Depois a maioria escurece e fica morena. As verdadeiras mulheres são as morenas. As loiras são mulheres que não cresceram. Os tipos que gostam de loiras, no fundo, são pedófilos. Basta falar dois minutos com uma loira para topar que a gaja é infantil. Por isso é que as loiras gostam de soldados, de polícias e de yuppies. Adoram fardas e adoram gravatas. (Virando-se para Toni.) Não é, Toni? Toni faz rebrilhar os copos sem se sentir obrigado a responder. Nick Depois há as falsas loiras. Perigosíssimas. Agentes infiltradas. Jogo duplo. Mentem como as loiras e usam a verdade como as morenas. E você, Toni, gosta de morenas? Toni (com displicência) Gosto, gosto, gosto de tudo. Enfim... de umas coisas mais, de outras menos. Nick
Não lhe conhecia essa abertura de espírito. Toni (seco) É deformação profissional. Nick aproxima-se lentamente de Gina, com o ar descomprometido de quem precisa de esticar as pernas. Nick (arrastando a cadeira e sentando-se à mesa de Gina) Dá licença? Silêncio. Nick (insistente) Gosto de beber em companhia de alguém. Beber sozinho não é um acto civilizado. Silêncio. Toni deixa cair um copo atrás do balcão. Gina não se mexe. Nick A bebida pode ser um diálogo de corpos. E a presença de um corpo estranho dá mais corpo à bebida. Gina (entre dentes) Que lapa! Nick Para mim, a cerveja condiz com o frio. Beber para matar a sede não é um acto civilizado. O frio torna as pessoas mais inteligentes em tudo, até no beber. É um grande negócio, o negócio do frio. Quando existir uma tecnologia que permita arrefecer as terras quentes, o planeta muda de figura. Um dia deixarão de falar de irrigação para se preocuparem com arrefecimento controlado. (Pausa. Acaba o copo de cerveja.) Você, por exemplo. Já percebi que você é um caso exemplar de arrefecimento controlado. Somos feitos para nos entendermos. Gina (ladrando em voz baixa) O café é um lugar público mas a minha mesa é um lugar privado. Nick (em tom de galanteria) Reparou que a sua mesa agora também é a minha? Não somos linhas paralelas visto que nos cruzámos neste ponto. Gina levanta-se, vai sentar-se na mesa mais distante da que abandonou. Nick acompanha-a de copo vazio na mão. Nick Nunca ouviu dizer que cão que ladra não morde?... Gina É disso que eu não gosto nos cães. Nick Eu não estava a falar de mim. Gina E eu não estava a falar consigo. Toni, que não perdeu uma palavra da conversa e foi dando mostras de crescente impaciência, aproxima-se de Nick e apanha-o de costas. Toni (segurando na gola do casaco de Nick) Deixe a senhora em paz. Ela não lhe pediu conversa. Nick (virando-se lentamente) Que bicho lhe mordeu, Toni? Você é barman, não é cão de guarda. Ben entra no café vindo do lado direito da plateia. Vem molhado como um pintainho. Sacode-se sem cerimónias, escolhe uma mesa isolada a um canto e senta-se; não saúda os três presentes. Silêncio. Ben (limpando os olhos) Uma imperial, por favor. Toni larga Níck e vai servir Ben. Nick (em pose)
Mais uma! Para ultrapassar a barreira da sede. Por pura solidariedade masculina. Para apoiar a indústria nacional. Por submissão ao consumo obrigatório. Para brindar ao dilúvio. Por companheirismo diurético. Traga duas. Três. O nosso amigo (aproximando-se de Ben), caído do céu no momento exacto, vai-me ajudar a dispersar as nuvens negras que impedem a rainha de copas, aqui presente, de brilhar em sociedade. Como se diz em francês: ménage à trois. O Toni não conta, só toma conta do negócio. O amigo conhece a França? A França é uma ilha deserta rodeada de franceses por todos os lados. Meia hora de praia e duas de casino chegam para tirar o pulso ao país inteiro. Antes e depois da digestão, naturalmente. O resto, a treta toda que vem no guia azul, serve para despistar os turistas indesejáveis. Autêntica estratégia militar. Se um tipo não se põe a pau acaba sentado numa esplanada a escrever postais ao papá e à mamã. (Pausa. Olha Gina de relance.) O amigo tem pais? Vivos? Se ainda for esse o caso, convém matá-los o mais rapidamente possível. Basta mudar de cidade. Verá como eles morrem a bem, sem você mexer uma palha. Você tem cara de quem atura pai e mãe. É essa sombra, esse véu de vergonha que leio nos seus olhos. Eu sou a favor dos orfanatos. Banir a maternidade e a paternidade. Libertar o sexo fraco, aliviar o sexo forte. (Virando-se para Toni que se dirige para a porta dos sanitários.) Queremos cerveja, não queremos mijo. (Apalpando com a mão um dos copos.) Arrefecimento controlado. Nesta cidade deviam aprender a tirar cerveja antes de começarem a bater punhetas. Ben (para Nick, duro) Você foi despedido? Posto no olho da rua? Nick, desarmado com a pergunta, não responde. Ben Isso é diarreia de vagabundo. Só os sem-abrigo falam assim: "o amigo isto, o amigo aquilo". Só os desgraçados que sabem do mundo através dos jornais velhos... sem notícias frescas. E como os jornais dizem quase sempre a mesma coisa, os gajos passam a vida a ruminar ideias com barbas. Nick (encontrando uma pose) O meu amigo ‒ não me obrigue a tratá-lo mal, eu um homem muito bem mal-educado ‒ o meu amigo engana-se. Sabe, a vida tem-me tratado bem, muito bem até. Por isso é que posso dizer mal de tudo com tanto à vontade e sem ressentimento... Ben Um pulha de salão. Nick O amigo chama ao café do Toni salão? Toni volta a entrar em cena, abotoando a braguilha. Ben Todas as espécies precisam de um salão para reunir. Inclusive os ratos. E as pombinhas que são os ratos voadores das cidades. Nick (aproximando-se de Gina que parece bastante divertida) O que é que eu lhe fiz? (Olhando para Toni.) Você deixa um cliente ser insultado dentro do seu estabelecimento? Gina (rindo) Porte-se como um cliente. Sente-se, beba e cale. Nick (virado para Ben) Ela mostrou os dentes. Bravo! Ben Quanto é que paga para ela mostrar o resto? Nick Ela já mostrou o que vale. Ben (tom de desprezo) E só vale o que mostra? Silêncio. Gina (erguendo-se, dirigindo-se ao balcão atrás do qual se encontra Toni, muito alto para toda a gente ouvir)
Este rapaz é como pão de forma. Miolo: a mais. Côdea: zero. (Pausa.) Você nunca tira férias, Toni? Toni (encolhendo os ombros) Não estamos em tempo disso. Gina Os melhores momentos gozam-se fora do tempo. Ben (abrindo os braços) Eis as flores líricas da pequena burguesia urbana! O expoente lírico da pequena burguesia urbana encontra-se no grupo das mulheres altamente alcoolizadas. O álcool confere-lhes o toque de despudor pelo qual os seus parceiros se pelam. E mesmo o álcool que lhes solta a língua pode nimbá-las da castidade sem a qual os mesmos parceiros se sentiriam presos a reles putas. Ratos e pombas. Cinzento em cima de cinzento. Toni (tentando ignorar Ben) Sabe, Gina, eu fui grande frequentador de cafés antes de abrir o estaminé. O balcão era a minha cama de rede e o néon a sombra da minha bananeira. Julgava que viver dentro de um bar era ter a ilusão de estar sempre em férias. Agora que me meti neste negócio, é difícil sair daqui. (Pausa.) Estou à espera de ser raptado. Nick, ligeiramente despeitado por Gina preferir a companhia de Toni, vai sentar-se à mesa de Ben. Nick Não os acha muito pálidos? Ela, mal se equilibra nos tacões, foge-lhe o chão debaixo dos pés. Ele, mal pousa os olhos nela, parece uma vela a derreter. Ben O céu caiu dentro do esgoto. Pluf! Nick (alto) Toni! Duas imperiais para aqui. Toni, nada de intimidades com os clientes. Ben (alto) Nesta altura, já devem ser clientes um do outro. Cheira-me... Toni (alto) Em volume de vendas, ela fica a ganhar... Ben (alto) Mas atenção: o álcool que ele vende hoje é sensivelmente igual ao que ele venderá daqui a dez anos, enquanto o corpo não perdoa. Há que descontar o desgaste do material. Felizmente, o nosso patrão, não sendo de pau, também é de carne e osso. Quando a dama não tiver mais nada para saldar, os padrões de consumo do cavalheiro estarão assaz diminuídos. Nick (abanando a cabeça) Como é que você se chama? Ben Ben. Nick Benny. O nome é mais confortável do que o dono. No fim de contas, qual é o seu problema, seu e da gente da sua idade? Não conseguem viver no presente. Viva no presente, amigo, viva no presente. Devore o pão de cada dia como se lhe soubesse a bolo. Não cuspa naquilo que lhe cai no prato. E nunca olhe para uma mulher pensando na múmia que ela vai ser. Isso tira o apetite. Fred e Kate entram no café de braço dado, vindos do lado direito da plateia. Fred, de fato verde garrafa, impecavelmente passado a ferro, vigia os passos da companheira que se serve dele como de uma muleta. Kate, de vestido cor de vinho muito curto, tem uma perna engessada e um braço ao peito. Usa óculos escuros para esconder os olhos pisados. O par, que arvora um ar relativamente sereno debaixo de um enorme guarda-chuva amarelo, surpreende as últimas frases de Nick. Ambos estranham a tensão que reina no café. Kate Que caras de enterro! Ficamos à beira do juke-box. Quero dançar. Fred E vais poder dançar como? Kate
Tu tens músculo para quê? Hoje quero voar, Freddie, faz-me voar. Fred Tem juízo, Kate. Nem devias ter saído de casa. O médico receitou repouso absoluto. Kate E o médico também receitou praia. Acaso me levaste para a praia, meu pelintra? Se não tens nota para me levar ao paraíso, põe ao menos esses músculos a trabalhar, querido. Fred (capitulando) Que disco queres? Kate (quase grave) Uma coisa que mexa. Que mexa comigo. Que me ponha atordoada... Fred De que género? Kate (quase a gritar) Bolas, Freddie! Às vezes és mesmo bronco. Uma música daquelas que cobrem tudo o que vem de fora e a pessoa só pode ouvir a voz do corpo. Toni (em tom de desculpa) Música, esta noite, não. Há clientes que precisam dum ambiente calmo... Gina (como que acordando) Quem? Eu? Acho uma excelente ideia. Música para acalmar os ânimos. Silêncio. Toni, despeitado, vira-se para o pano de enxugar copos. Nick Toni! Toni! A próxima rodada é minha! Kate Tequilla bum-bum! Servem tequilla bum-bum? Fred (para Kate) Não podes beber, tu. Kate E tu, não te podes calar? Gina (para Toni) Gin. Puro. Fred Eu não bebo álcool. Gina Abra uma excepção. Nick Para mim também é gin. Igual à senhora. Ben Um bourbon. Duplo. Gina Bourbon é bom para principiantes. Traga dois. Nick aproxima-se do juke-box e escolhe um disco: «Fever» cantado por Peggy Lee. Depois vai convidar Gina para dançar. Surpreendentemente, ela não se faz rogada. Fred ajuda Kate a erguerse e tenta conduzi-la. Não podendo fazer-se leve, Kate deixa-se arrastar. O par esbarra contra uma cadeira, derrubando-a. Entretanto Toni, muito tenso, avançou lentamente até ao juke-box, observando os dançarinos com um sorriso misterioso. De repente, puxa pelo fio que liga o aparelho à corrente. Bruscamente a música pára. Nick e Gina separam-se boquiabertos. Kate (tentando disfarçar o mal-estar) Vamos embora. Isto é uma seca. Toni (regressa ao balcão, virando-se para os clientes) As bebidas estão prontas. Nick vai buscar os copos colocados num tabuleiro e serve os presentes. Nick (galante, para Gina) Primeiro as senhoras.
Kate (falsamente à socapa) Senhora? Ok, abra-lhe uma excepção... Nick (para Kate) Bum-bum! Kate (rindo) Eu não estou na bicha. Nick (servindo Fred) Tudo o que ela diz, você assina por baixo? Kate Não sabe ler nem escrever, o Freddie... Nick (para Fred) Freddie, está na hora de você surpreender a sua amiga. Fred afasta-se, vai brindar com Gina. Gina Ao principiante... Tudo tem um princípio. Fred choca o seu copo com o de Gina e engole dum só trago o conteúdo. Nick (servindo Ben) Ela está a abrir. Como as folhas do chá dentro da água a ferver. Beba o seu antes que arrefeça. Ben (bebendo) As mulheres, enquanto espécie, não me interessam. São incapazes de me surpreender. Nick Que seria de nós sem as mulheres? Ben Seríamos melhores, acho eu. Toni dirige-se para os sanitários. Kate, abandonada pelo seu companheiro que parece rendido aos mudos encantos de Gíria, aproxima-se de Nick e Ben, coxeando e apoiando-se nas mesas e cadeiras. Kate (afectada) Bum-bum. Caí de propósito. Nick O álcool é bom conselheiro. Faz as vezes de pai, de amante, de amigo... Kate Mas não faz as vezes do sol, da areia e das palmeiras. Maldita cidade. Apetece-me entrar numa garrafa e ser levada pelo dilúvio. Ben (curioso) O que é... como é que isso lhe aconteceu? Kate Até os anjos caem, não é verdade? Níck afasta-se de Ben e Kate, dirigindo-se para a porta dos sanitários. Ben (pensativo) Apressar o fim do mundo. Certo. Kate Pôr a terra a girar tão depressa como a cabeça. E agir sempre a pensar noutra coisa. Tens um cigarro? Ben Não fumo. Kate Então não és coerente. Desejar o fim: ok. Mas o teu fim não podes desligá-lo do resto. A verdadeira força nasce de desejares arrastar o mundo inteiro na tua queda. Nick (off, berrando no sanitário dos homens) Se não ligas a máquina de dança, parto a casa toda. Liga a máquina. Eu pago para que a máquina funcione. Quando aqui entrei vi uma máquina. Tornei-me cliente dessa máquina. Meto uma moeda.
A máquina funciona. Nesse instante a máquina é minha. Topas. O meu par dança. Os meus convidados dançam. O mundo gira. Tu não és dono do mundo. Topas. Kate (gritando, grosseira) Ei, Freddie, não te apetece aliviar os colhões? Da próxima vez escolhemos uma esplanada com vista para um lar de terceira idade. Tens cá um jeito para velhas. É tiro e queda! Ben (rindo e aplaudindo) Belíssimo crescendo! Você nem precisa que lhe dêem corda. Kate (moderando o grito) Continua a surpreender-me, Freddie. Agora que encontraste uma vocação, não largues mão da tua presa. Nick (off, berrando no sanitário) Reservado o direito de admissão? Não me gozes, Toni. Isto é um país democrático e aqui dentro os clientes estão em maioria. O teu negócio não são quatro paredes e umas dezenas de copos. Somos nós o teu negócio. E tu, ouviste, não sabes amar aquilo que é teu. Ben O nosso sedutor virou filósofo... Kate Qual deles? Ben O pregador de latrina. Eu bem vi que o gajo tinha uns ares de vagabundo disfarçado... Nick (off, gritando no sanitário) Foda-se, Toni, ninguém veio aqui para te fazer a cama. Isto é um país civilizado. Chove! Chove a cântaros. Queres melhor prova de que estamos num país civilizado? Kate (alto, esforçadamente grosseira) Ei, Freddie! Nem fodes nem sais de cima. Os outros também têm direito a um naco. Chegaram antes de ti e ficaram a ver navios. Ben (para Kate) Uau! Quem te deu lições de cortesia? Kate Isso é uma história muito comprida. Lembras-te do dia em que, por acaso, totalmente por acaso, aprendeste a dar um nó cego? Daí a quereres experimentar a coisa nos humanos vai um passo. Ben Não te entendo. Kate Desiste. Eu também não. Toni e Nick saem dos sanitários, o primeiro com um ar acabrunhado, o segundo arvorando uma expressão de desprezo. Gina (para Toni) Um bourbon. Toni (duro) E duas palhinhas? Kate Traga quatro. Vamos fazer um sorteio. Ben E onde haverá uma mão inocente? Kate Há a minha. Nick Mas as palhas têm todas o mesmo tamanho! Kate (com brilho no olhar) Partem-se. Fred (para Gina)
Preciso de apanhar ar... Gina (sarcástica) Porquê? Ela fechou as portas todas e tu ficaste encerrado para obras? Fred A Kate está doente... parece virada do avesso... Gina E tu não tens avesso? Não deitas por fora? Fred não sabe que responder, tenta agarrar a mão de Gina. Gina prega-lhe uma estalada. Toni chega à mesa deles com um copo de bourbon. Fred pega no copo e atira o conteúdo à cara de Gina. Toni solta uma gargalhada satânica. Ben Patrão, a menina pediu quatro palhinhas. Gina enxuga a cara com um lenço de papel e prepara-se para sair. Nick agarra-a por um braço. Nick Dançamos? Gina (tentando manter-se serena) Noutra noite, talvez... Nick Não me dês música. Gina Odeio música. Nick Nunca acendas um fogo que não consigas apagar. (Para Toni.) Música, patrão! Toni volta a ligar o juke-box e põe a tocar o disco que anteriormente interrompera: «Fever» interpretada por Peggy Lee. Nick puxa Gina a si e, colando-se a ela obscenamente, obriga-a a dançar. Toni vai entregar quatro palhinhas a Kate que as parte de diferentes tamanhos. Kate Quem tirar a mais comprida tem a primazia. (Para Ben.) Concordas? Ben A regra é irrelevante. Só conta o jogo. Kate (colocando as palhas entre os dedos da mão direita de maneira a só ficarem de fora quatro extremidades alinhadas) Tiras tu primeiro. E escondes. Depois o Freddie e a seguir o Toni. Por exclusão de partes o filósofo fica com a última. Gina (tentando desesperadamente manter o sangue-frio) Largue-me. Largue-me. Preciso de ir à casa de banho. Nick (sarcástico) Só tens estômago para o álcool. Não tens tripas para isto, querida? Ben tira a primeira palha e esconde-a, radiante como uma criança. Fred Cedo o lugar ao Toni. O dois é o meu número de azar. Toni tira a segunda palha e coloca-a atrás da orelha. Freddie, contrariado, escolhe a terceira palha e entrega-a logo a Kate como se dali lavasse as mãos. Kate (abrindo a mão direita) O velho sabia que ficava em boas mãos... Ben Bourbon para todos! Esta rodada é minha. Viva a terceira idade! Nick larga Gina que corre para a casa de banho. Ben O filósofo vai à frente para dar o exemplo.
De repente a luz é cortada. A música também pára abruptamente. Só resta a iluminação do lampião. Gina (off; muito alto) Toni! A luz foi abaixo... Estou às escuras. Toni (às escuras) Não precisamos de luz para nada. É tempo de fechar. Ruído de passos. Uma porta que se abre violentamente fora de cena. Gina (off) Saia daqui. Toni, põe-me este gajo no olho da rua... (Aos berros.) Fora daqui! Kate Tranquem a porta. Já não são horas. Ruído de passos. Vindo da casa de banho, um grito lancinante, seguido de barulho abafado de um corpo que se debate. Kate Com esta chuva, nem Deus tem coragem de sair de casa.