A PRETO E CINZENTO O TURISTA ACIDENTAL de Lawrence Kasdan varreu os écrans com uma lufada de humor arrepiante. Desde que a estrela aguçada de Buñel se apagou, o cinema perverso tem vindo a perder seriedade, daquela que costuma cair com os dentes de leite... A temática — substituir o morto — não constitui novidade por parte do autor, mas a encenação realiza, desta vez, prodígios de equilíbrio na corda bamba do argumento. O artifício formal que em OS AMIGOS DE ALEX encabeçava o filme de maneira algo inconsequente — as palavras sobrepunham-se às tensões, resolvendo-as em lugar de as problematizar — funciona aqui como «âncora» de toda a invenção estética da obra. Com efeito, ambos os filmes abrem com muito grandes planos de vestuário masculino (o derradeiro trajo de Alex, a indumentária de viagem de Macon). Porém, em O TURISTA ACIDENTAL este tipo de enquadramento intervém como leitmotiv polarizador e, conquanto não constitua uma chave nem se apresente como uma cadeia autónoma de produção de sentido, pontua estrategicamente a ficção desorganizando os planos de leitura. Em OS AMIGOS DE ALEX a descrição do fato festivo sugeria uma pista de coerência apenas no quadro ficcional: o «anti-luto» dos amigos aparecia como um meio de se autoconvencerem de que ainda estavam vivos, i. e., tinham a vida pela frente que não a morte (neste outro filme, o falecimento do filho dos Leary vai paradoxalmente instalar a vida no plano do acidental). Em contrapartida, a maleta que ocupa a totalidade do campo (e muitos outros objectos excessivamente detalhados pela câmara) bem como os corpos enquadrados de modo a eliminar o espaço do esquema corporal (este tipo de planos insinua a imobilidade das personagens) exprimem o peso da realidade atribuído às coisas e um «preenchimento» todo ele físico. Assim, nesta fita Kasdan encena o combate (desigual, como se verá) entre o real e o fabuloso. Cenas como a arrumação dos géneros alimentares por ordem alfabética (perturbante na medida em que a maioria dos humanos civilizados classifica isto ou aquilo segundo o mesmo critério) ou como a recusa sistemática de atender um telefone que toca estridente (excelente emblema da protecção consciente contra as solicitações do mundo) ou ainda como a desobediência do cão (simétrica da surdez voluntária de Macon que declara «não ter necessidade de conversar» — o bicho espelha o comportamento do dono tornando-o a seus próprios olhos insuportável) deveriam içar, a priori, a ficção ao nível da pura metáfora. Ora o alegórico não se realiza porque, pelos enormes poros que são as outras imagens de «lupa», Kasdan cava na esfera da fábula crateras de matéria, feridas por assim dizer. A utilização do comentário off controla mais um comando desestabilizador. Trata-se de excertos, monocordicamente lidos, do guia que Macon redige, supostamente dirigido aos seus duplos: todos aqueles que, arrancados ao conforto uterino do lar, se aventuram por inóspitos cenários. O destinatário dos conselhos é naturalmente o espectador, cujo esforço de interpretação vai ser guiado. O desconhecido que se teme (exemplos: WCs e fast-foods em terra alheia), o alhures são espaços banais mas mitificados pelo banho de voz off (observe-se a importância em número dos elementos ligados às necessidades básicas — lavar, comer, defecar — que contribuem para sublinhar a atmosfera amniótica do filme). As acções quotidianas (sair de casa, regressar a casa) viram simbólicas por uma mais-valia de significados. Rose perde-se na rua a ponto de não encontrar caminho que a devolva ao lar. Uma desorientação fortuita basta para pôr em perigo a pele das personagens: Macon quebra uma perna ao transformar um brinquedo (conotado com o perigo) num objecto utilitário. Entre a pele e o planeta hostil as figuras masculinas de Kasdan (dos quais Hurt se destaca como o feto perfeito e monstruoso) tentam interpor camuflagens (o fato cinzento para todo o terreno), mediações (soníferos best-sellers, doses de detergente) e códigos (o código que, na partida de cartas, substitui a conversa e, por conseguinte, a linguagem enquanto forma de comunicação). Desfocados nas suas líquidas redomas, auto-destituídos de personalidade (de pessoalidade) resguardamse (na fratria tirânica, no matrimónio falhado e sobretudo na orfandade) das convulsões do nascer. Pelo contrário, as mulheres (biológica ou biograficamente marcadas pela vocação de dar à vida) inclinam-se para um programa diferente, a reboque do medo de nunca experimentarem o