A RESPOSTA ÀS PERGUNTAS A dinâmica da aprendizagem de uma língua baseia-se no princípio de que cada palavra constitui uma resposta a uma pergunta implícita — quem? (sujeito) o quê? (verbo + complemento) onde? quando? em que circunstâncias, etc. —; todo o discurso deveria portanto apresentar-se como uma resposta a perguntas formuladas ou não pelo receptor. De facto, o próprio princípio da «comunicação de massas» é a unilateralidade e o autor da mensagem é obrigado a imaginar a pergunta. Na maioria dos casos — princípio da «distracção» —, trata-se de fazer esquecer as perguntas; no melhor dos casos, a mensagem é dada sob forma de pergunta —, apesar de se saber que a resposta está incluída na própria formulação da pergunta. De qualquer forma, no cinema para o «grande público», o cineasta dirige-se a uma entidade imaginária e o filme tem por única função a comercial — comunicação reificada — e por único valor o objectal — falta o «com» à comunicação. O «autor» poderia neste contexto ser definido como sendo aquele que aceita fazer perguntas a si próprio para procurar as respostas. Ao adoptar esta atitude, atribui ao público a capacidade de partilhar as suas preocupações e potencialmente de assumir o papel de emissor. Os «autores» existem em número reduzidíssimo no cinema e desta pequena minoria a maioria não consegue ultrapassar o estado do narcisismo primário. Para que a troca se possa efectuar é necessário que o autor seja também espectador sem que se crie um hiato entre as duas consciências. Neste «ano do cinema», a obra de Fellini parece ter sido reconhecida como excepcional, se bem que em Portugal a interiorização por parte do público do desprezo ao qual os distribuidores o têm votado pareça demasiado definitiva para que tal reconhecimento seja largamente consensual. A partir de OITO E MEIO, Fellini não renunciou a expor as suas interrogações íntimas; INTERVISTA, rodado muito antes do acabamento de A AMÉRICA, surge como um balanço, como fruto da necessidade de justificar as opções pessoais ainda que aparentemente contraditórias, de afirmar as respostas. A pergunta é: porquê fazer filmes? Mas para responder a isto, Fellini tem primeiro que definir o que é um filme, como é feito, quem o faz. A primeira resposta não parece satisfatória: um filme começa por ser uma imagem sonhada, mitificada, a motivação parte do fascínio; ora a realidade da prática, do fabrico das imagens à intimidade dos participantes, não corresponde à tal visão preconcebida. Nesta inadequação se radica o humor terno de Fellini e a vontade confessada de encontrar uma forma concilie os dois aspectos — reaparição dos índios no fim da rodagem de A AMÉRICA, espantados pelo facto da sua presença se dever a um mero «capricho». A justificação de um filme deve com efeito coincidir com a de um capricho mais ou menos assumido para a satisfação do qual todos colaboram. A prática define-se então como uma colectivização do capricho em que o profissionalismo é insuficiente, em que o resultado é directamente proporcional ao investimento pessoal de cada um. O filme é, no fim de contas, aquilo que sobrevive à rodagem. A segunda resposta surge no momento do visionamento. A emoção de M. Mastroianni e de A. Ekberg é de tal ordem e de tal maneira comunicativa que a cena visionada da LA DOLCE VITA escapa à ficção para aceder à magia através da evidência. Neste ponto encontrada a resposta, Fellini desaparece discretamente da INTERVISTA. É claro que a emoção foi encenada mas justifica-se enquanto verdade na medida em que foi partilhada. Fellini não distingue o real do imaginário, o documento do artifício. A memória inventada torna-se real, tal como aquele eléctrico com pneus que leva a imagem de Fellini jovem até aos estúdios — por intermédio de um trabalho que corresponde mais ou menos ao trabalho do sonho que Freud opunha ao trabalho de análise. Ao contrário de A NOITE AMERICANA em que o anedótico reduz sistematicamente à convenção ficcional suposta transbordar do filme e contaminar a vida, a rodagem, objecto de INTERVISTA, justifica-se pelo facto de criar a vida, uma vida caprichosa enfim liberta da convenção. S.