A RESSACA O discurso de Olivier Assayas tem vindo a tornar-se mais preciso de filme para filme, com algumas constantes: a recuperação de uma certa marginalidade tipicamente parisiense, que constitui um modo de vida sem representar verdadeiramente uma opção utópica — dos músicos de DÉSORDRE aos três protagonistas de PARIS S'ÉVEILLE —; o legado duma geração desadaptada que contudo se reproduziu — de L'ENFANT DE L'HIVER à escolha de J. P. Léaud, ao qual está ligada uma imagem de eterno adolescente, para desempenhar o papel de pai no seu último filme. Se PARIS S'ÉVEILLE aparece um pouco como ponto de chegada, é porque quanto mais Assayas particulariza as suas personagens, mais os seus percursos se tornam paradigmáticos. Embora o título retome o refrão duma célebre canção de Dutronc dos anos 70 — criando logo à partida um efeito de desfasamento, como se se tratasse de actualizar uma descrição ou de indicar uma referência datada para avaliar o presente —, canção essa que enumerava uma longa série de actantes, dos noctívagos aos habitantes do subúrbio, passando pelas prostitutas cansadas e pelos lixeiros, o filme reduz Paris a dois ou três espaços e outras tantas personagens, subentendendo que o fracasso que lhes é comum tornava inútil a diversificação dos indivíduos. Esta redução do campo social corresponde a um enclausuramento das personagens viradas sobre si próprias, em ruptura com aqueles que dizem amar mas que só conseguem afrontar. O que se nos afigura especial em Assayas é o facto de que esta situação de impasse ideológico coincide tão perfeitamente com a opção formal de encenação que ela se torna visível em cada imagem, pelo que a narrativa se limita a desenvolver as consequências inelutáveis do contexto dado à partida. O salto temporal do fim da fita, que funciona como a moral das fábulas, ao substituir a incoerência suicidária pela integração social, revela-se duplamente negativo: por um lado, anula a luta e a revolta das personagens, por outro, alarga o habitus da sua alienação, do pragmático de uma margem despojada ao ideológico de uma situação social confortável. Interrogado por nós sobre o assunto, Assayas mostra-se pouco propenso a desenvolver este discurso. O seu pessimismo e a sua revolta parecem latentes mas não se manifestam na conversa em que ordenadamente reconstitui o seu trajecto da pintura à crítica — contactado por S. Daney para uma curta colaboração nos «Cahiers du Cinéma» que ele acaba por abandonar quando a revista renuncia às suas posições politicamente empenhadas —, da escrita do argumento de RENDEZ-VOUS com Téchiné à sua estreia como realizador. Contudo, Assayas confirma o primado da escolha formal: «É difícil gerir a herança de Godard, explorar as vias que ele deixou por desvendar. Eu escolhi trabalhar com actores. Trata-se de criar as personagens, de as viver. Quando escrevo o argumento, só há diálogos; aqui e ali, uma pequena indicação sobre o cenário. Filmo no limite da iluminação. Crio uma situação de tensão tão forte, ao filmar sem luz, com movimentos de câmara muito longos e complicados, implicando um foco ao milímetro por causa da falta de profundidade de campo, que todos os técnicos e actores ficam concentradíssimos e são obrigados a dar tudo por tudo. É uma entrega total. Cada plano é um feito heróico». A imagem resultante — em que o cenário desaparece na zona de desfocagem, em que os contrastes se atenuam numa escuridão parda que contagia as próprias personagens — reforça, pela mobilidade do enquadramento, a clausura das personagens num campo reduzido à medida dos seus sonhos minguados. Assayas, que de algum modo se aparenta a Nicholas Ray, surge cruelmente dividido entre o seu amor, real, das personagens e a condenação não apenas objectiva dos seus insucessos — a todos os níveis, sentimental, ideológico e moral. Paris, entorpecido, não parece prestes a despertar. S.