A TORRE DOS DIAS E DAS NOITES Boris Lehman é porventura o único cineasta a ter colocado o cinema enquanto prática quotidiana de vida à frente da elaboração das obras — que por isso ficam endemicamente em estado de inacabamento. Às vezes, Boris comunica ao mundo um filme, quando a intuição lhe dita que as imagens armazenadas formam um todo completo e coerente e que é tempo de o ordenar. O cinema enquanto prática — encenação, enquadramento — é o seu modo de vida; os filmes enquanto obra — montados, acabados — são tão só a parte visível do iceberg Lehman. Por conseguinte, para cada filme, a massa de planos rodados e não montados é muito maior do que a dos planos efectivamente utilizados na montagem (não estou a falar das várias tomadas de vista de um mesmo plano: Bons Lehman a priori não repete as tomadas): os seus filmes constituem pouco a pouco uma imensa memória — um «inconsciente»? —, testemunho da passagem e do olhar dum cineasta do qual só podemos conhecer uma pequena parte — os sonhos? Se Boris Lehman está no centro de alguns dos seus filmes, não é tanto por narcisismo como por uma preocupação, no âmbito dessa recolha de imagens do mundo, de se debruçar sobre aquilo que conhece, que domina, que é capaz de restituir — do mais trivial (a abundância das refeições nos seus filmes) ao mais poético (a sensibilidade aos olhares interiores). Do seu quotidiano, Boris Lehman conserva apenas o maravilhoso — anda que possa ser necessário encená-lo: o cineasta rejeita a etiqueta «documentário» — numa atitude próxima da de Breton ao escrever «Nadja»... Nesta perspectiva, é significativo que Boris sempre tenha recusado o discurso «meta» que consistiria em mergulhar no «abyme» das imagens a serem fabricacas: Boris filmando Boris a filmar. Porque se trata de encontrar o objecto do filme ao filmá-lo, neste caso o mundo e, dentro do mundo, uma personagem improvável, Boris Lehman, que tenta definir a sua própria imagem copiando a que, reflectida, os outros lhe devolvem. Nesta prática, os amigos desempenham um papel fundamental: espectadores e actores, é sobre eles que age a libido de Boris por interposta câmara. Donde um certo parentesco com o «cinema de amador» e os «álbuns de família», com a correspondência e os diários íntimos. Mas essa «familiaridade» é apenas a aparência de um discurso profundamente violento e até desesperado: do seu retrato do cineasta materializado unicamente através da gestualidade do pintor perante a tela irredutivelmente branca — PORTRAIT DU PEINTRE DANS SON ATELIER — à impermeabilidade das famílias judias que matam, cortam e ingerem a carpa sem se aperceberem de que ela constitui uma imagem da sua própria história e da exterminação de que foram vítimas — MUET COMME UNE CARPE. O mais recente filme de Boris Lehman, LEÇON DE VIE, onde se interrogam artistas amigos filmados fora da sua actividade — o acto de criação está no centro do questionamento deste autor e passa pela abordagem do trabalho de pintores e escultores principalmente (L'HOMME DE TERRE), i. e. de criadores de imagens —, constrói aos poucos uma terrível ideia de paraíso, simultaneamente tão ao nosso alcance e irremediavelmente ausente, que os artistas talvez tenham entrevisto... No coração da obra de Boris Lehman, deparamos com um monumento cujas contornos só lentamente se desenham: a tetralogia de BABEL, hercúleo projecto do qual apenas a primeira parte se encontra acabada (LETTRE A MES AMIS RESTES EN BELGIQUE). A dimensão em si do projecto — que tenho de longe acompanhado nos últimos 15 anos — impede que lhe possamos conceber um fim. Mas, desde sempre, Boris Lehman filma essencialmente o tempo — todo o MAGNUM BEGYNASIUM BRUXELLENSE é uma reflexão sobre o envelhecimento e a ameaça que pesa sobre o mundo antigo ao qual nós pertencemos — e BABEL conseguiu coincidir com o tempo de vida do autor: pois enquanto o tempo social é uma mera convenção, o tempo existe apenas ao nível da consciência, i.e. é subjectivo. A obra de Boris Lehman é porventura a primeira a apresentar-nos uma imagem verdadeira — não-convencional — do tempo assumido na sua subjectividade. S.