A VEIA SECA Os surrealistas exaltaram a vida; ao proclamarem a urgência de todas as vocações contrariadas, sagraram-na como excesso sistemático do sentido. Em «O meu último suspiro», Buñuel confessa que o fascínio sobre ele exercido pelo punhado de homens que encabeçaram o movimento surrealista se conservou intacto e perturbante para além do «afastamento» a que, na prática, a sua carreira de cineasta o «obrigou». Mas a aura do encontro com o surrealismo é claramente descrita sob o signo da memória. A derradeira provocação que consistiria, segundo o cineasta ateu, em chamar um padre na hora da morte e confessar-se na presença de testemunhas, parece-lhe um gracejo impossível. (Em veia de confidências Breton desiludido, a propósito da «exclusão» tardia de Max Ernst, declara ao autor da IDADE DO OURO que o escândalo já não existe.) Buñuel conta ainda que o pensamento da morte muito cedo se lhe tornou familiar — desde o tempo dos «esqueletos passeados pelas ruas de Calanda durante a semana santa...». A obra de Buñuel é moldada pela consciência do impossível e pela pulsão da destruição e, por isso, postula a insignificância dos actos, a exasperante falta de sentido dos acontecimentos e a irrisão do sublime. A vida gasta quase tudo e, sobretudo, gasta a morte. Subsiste a memória, ora enquanto pura ofuscação, ora objectivada em mania. Se alguma herança há a ver (a haver) na aventura surrealista, encontrá-la-emos talvez no «humor negro», esse negro estandarte do sobrevivente num mundo irremediavelmente obscurantista. As coisas ficaram «feias» e seria um caso «sério» se o impossível acontecesse (como em O ANJO EXTERMINADOR)... ora tal não acontece. Não me parece ilícito sugerir que para Buñuel o desejo (de comer, de dormir, de foder, de morrer...) se define e apura mais pelas formas de interrupção do que pela própria transgressão (cf. O CHARME DISCRETO DA BURGUESIA). O belo e os modos improváveis do sublime organizam o esquema de policiamento da sociedade (cf. ESTE OBSCURO OBJECTO DO DESEJO). Com efeito, é preciso morrer (interromper?) para manter vivo o mistério, «morrer com o mistério». Quando Buñuel tentou tocar a maravilhosa-rede-não-transcendental que os surrealistas adivinhavam, só sentiu os buracos. Foi nesses que instalou o seu cinema de convulsão e. ao espreitar por esses buracos, devolveu-nos a fragmentação de um mundo que já explodiu. O estado de guerra permanente em que vivemos de há umas décadas a esta parte desferiu um rude golpe nas paixões revolucionárias mas instituiu o recolher-emocional-obrigatório e o mercado-negro-das razões-de-força-maior. A visão de Buñuel libertou-nos do terror do apocalipse ao torná-lo absolutamente quotidiano, sugerindo contudo que a rotina não esgota o modo de emprego das coisas. Na relação com o banal pode eclodir uma grande saudade do OURO verdadeiro. R. G.