acidente Chegada do público ao espaço cénico. Os intérpretes preparam adereços e lidam com objectos que vão ser utilizados ao longo do espectáculo. ESCURO UMA VOZ SOMBRA lê todas as didascálias, em tom neutro, radiofónico. BODY, o BOMBEIRO INVOLUNTÁRIO, vestido com roupagens fluorescentes e equipado com uma luz de mineiro no capacete, procura. Talvez corpos. Afã de busca. De súbito, BODY começa a falar num tom ofegante, como se manter a comunicação com os corpos presentes fosse uma questão de vida ou de morte. BODY para si mesmo e para o além Espalhados pelo espelho, pelo escuro. Uma perna escutando a sua irmã. Um osso perguntando pelo ofício. O fígado esperando pelo abutre. Ah………………. E o coração esconde as suas razões atrás do biombo dos pulmões. A nuca promete ao queixo que jamais se queixará. Um olho dente por dente. Cabelos longe do pente. Mamas pilas e colhões aos trambolhões. Entra a ENFERMEIRA YÓ-YÓ, arrastando uma maca como uma mula puxaria por uma carroça. E chama pelos vivos. YÓ-YÓ chama Hei! Oi! Hei! BODY pergunta Quem vem lá??? YÓ-YÓ responde Vem por bem quem aqui vem. Boca pronta ao boca a boca não apenas mas também… Compressas para estancar conversas e fio de suturar o olhar.
Pastilhas para dormir drageias para acordar. Seringas para injectar e muita pica. BODY replica Que genica! Infeliz ou felizmente aqui não escapou ninguém. YÓ-YÓ toma de novo a palavra Não me diga… E o senhor, quem vem a ser? Mirone, bófia ou carteirista? Paparazzo? Jornalista? BODY responde Bombeiro. YÓ-YÓ pergunta ainda Sapador? Franco-atirador? Celibatário? BODY não se deixa intimidar Involuntário. Bombeiro involuntário. YÓ-YÓ comenta Nem sabia que isso existia… Eu cá sou enfermeira. Primeiros e últimos cuidados. Yó-Yó para os mais chegados. BODY apresenta-se também Eu sou o Body. YÓ-YÓ faz conversa O prazer é todo meu… Agora não mexa em nada. Não mexa mesmo em ninguém. Faça como se estivesse num museu. Temos que esperar pelos reforços. BODY afirma Se lhe digo que quinaram todos… YÓ-YÓ constata Ah pois… São os danos colaterais. E outros que tais…
BODY realça Isto não é uma guerra, minha querida senhora! YÓ-YÓ espanta-se Essa agora? Então o que vem a ser? BODY explicita Estamos… estamos no teatro de um acidente. Rodoviário. Comovente. Um acidente rodoviário no sétimo grau. A partir daqui a VOZ SOMBRA vai enumerando outros desastres: ACIDENTE FERROVIÁRIO ACIDENTE CÓSMICO ACIDENTE LABORAL ACIDENTE CÓMICO ACIDENTE NUCLEAR ACIDENTE PESSOAL … TERRAMOTO EPIDEMIA CRISE SISTÉMICA MAREMOTO PANDEMIA CRISE ACADÉMICA … FURACÃO DESCARRILAMENTO INUNDAÇÃO DESABAMENTO CONTAMINAÇÃO EXPLOSÃO … YÓ-YÓ explica Nada mau… Mas quer frente de batalha mais sangrenta do que uma estrada? Na estrada a guerra eterna foi há muito declarada. Dispensa altos comandos, bastam-lhe os soldados rasos. Ao volante, soma e segue, roda livre… e a terra lhes seja leve. Obedece à lei da selva esta guerra… Troça dos códigos de honra. Aos generais quem lhes dera
comandar guerras tão clínicas, tão sustentáveis, tão trigo limpo farinha amparo. Só mesmo na finança se encontram exemplos comparáveis. BODY interrompe Desculpe lá interrompê-la, agora que ia tão lançada. Mas onde é que a senhora Yó YÓ-YÓ relembra Yó-Yó… para os mais chegados… BODY inquire Em que enfermaria é que a senhora enfermeja? Onde é que inferniza os seus enfermos, se me permite… YÓ-YÓ revela O meu hospital é o planeta, camarada. Ouvi estrondos de chapa. Peguei no carro e vim avaliar a situação. E dar apoio logísticoSão deontologias, sabe. As batas brancas têm muita deontologia. BODY indaga E latim, não é assim? YÓ-YÓ tem mesmo muito latim Claro… Eu sou enfermeira-cicerone. Não se trata de tratar. Trata-se de retratar. Sou uma ilha rodeada de mortos por todos os lados. Desfigurados ou não onde estão já não padecem. E até me espanta que um bombeiro, como o senhor, habituado aos fogos que comem as florestas, às crianças que caem da janela abaixo, aos velhotes que se esquecem de desligar o gás, não está mais habituado BODY clarifica Involuntário, lembra-se. Eu disse in-vo-lun-tá-ri-o.
Não em meu nome, está a ver? Em meu nome, NÃO. ESCURO PRIMEIRA RECITAÇÃO Um círculo de luz ilumina um sujeito semi-nu com os pés dentro de uma bacia de água verde fluorescente. Ele recita. SEMI-NU Era uma vez uma rua que desatou a crescer. Começou por crescer no sentido do levante para agarrar a luz do sol nascente. Depois ganhou-lhe gosto e esticou as perninhas de alcatrão na direcção contrária, lançando-se como uma louca na caça ao pôr-do-sol. Quando furou rumo ao norte foi acusada de se tornar transversal de si mesma. Mas a rua era muito senhora do seu nariz e estendeu a calçada até à estrela polar sem ligar ao diz-que-disse. Pela calada de uma noite de Verão, a rua elástica quis agarrar o sul com unhas e bermas. Já o sol ia no zénite quando encontrou pela frente guardas armas e fronteiras arame muito farpado filas, falas, fardas feias que impediam a gente criada na terra quente de fazer a travessia… Infelizmente, pensava a estrada vadia, na era da mundialização nem todos os caminhos vão dar a Roma. Livremente só circula a santa mercadoria. Os homens NÃO. ESCURO A luz revela uma grande mesa metálica, do género bancada de morgue, com N objectos expostos. Os objectos – porventura todos eles verdes? – parecem saídos da montra de uma drogaria. BODY e YÓYÓ, vestidos com fardas anacrónicas de vigilantes de museu, apresentam, com coreografias rápidas (do tipo demonstração de segurança a bordo de um avião), e designam objectos. Pela negativa. YÓYÓ mostrando um regador flashy Isto não é um fémur.
BODY mostrando um funil flashy Isto não é um pâncreas. YÓYÓ mostrando um alguidar flashy Isto não é um osso parietal. BODY mostrando uma uma flor de plástico flashy Isto não é uma vesícula biliar. YÓYÓ mostrando um espanador flashy Isto não é uma costela flutuante. BODY mostrando uma flor de plástico flashy Isto não é um duodeno. YÓYÓ mostrando um sapato tipo «croc» flashy Isto não é uma omoplata. BODY mostrando uma esfregona flashy Isto não é um esófago. YÓYÓ mostrando uma gaiola de grilo flashy Isto não é uma tíbia. BODY mostrando uma mangueira flashy Isto não é um figado. YÓYÓ mostrando um pente flashy Isto não é uma vértebra. BODY mostrando um capacete de operário flashy Isto não é um intestino. ESCURO A luz ilumina agora um CORO montado sobre andas. Vagamente bamboleante. O CORO canta. Os INTÉRPRETES vão buscar e começam a manipular as marionetas-luva.
CORO Agora já não vendemos A bela banha da cobra Nem figos do cu de Judas Nem figas da tia preta Nem patinhas de coelho Nem poeira de cometa Nem luz de abre-te sésamo Nem sombra de pé de cabra Nem cravo nem ferradura Nem sequer abracadabra Nem merda para calcar Nem chantagem da mais pura Já não temos nem vendemos Olhos contra o mau olhado Presunções e água benta Penas de ave agoirenta Plumas de anjo mal guardado Dentes de rato amestrado Nem rezas das milagrosas Nem mezinhas de avó torta Nem teias de aranha morta Nem espinhos de quatro rosas Nem avessos de vestido Nem pêlos do inimigo É pouca a mercadoria Falta ao trevo a quarta folha Faltam sortes à moeda Faltam cruzes ao canhoto Varinhas ninguém as compra Condão já ninguém o leva Nem mascote que proteja Nem boi reduzido a rã Nem peso de talismã Nem chazinho de hortelã Nem zunido de vareja Nem rabinho de cereja Falham gramas nos arcanos Peidinhos à Branca Flor E traques a Satanás Fim ao cabo das vassouras Encantos às velhas mouras Bruxedos zás catrapás Asas aos ases de trunfo Louros gritando triunfo Coxas mochos coxos machos
Falta boca a mestre sapo Mariposas ao morcego Cornos ao bode já cego Porém ainda se arranjam Canivetes da Suíça Navalhas de ponta e liga Obuses à moda antiga Catanas matracas tanques Canhões e mísseis distantes Revólveres fardas e balas Machados metralhadoras Minas gases e fuzis Granadas e espingardas Anonimato de bombas E até bombas assinadas… Os INTÉRPRETES constroem uma trincheira com sacos de areia e manipulam as marionetas-luva. ESCURO Ao longe, muito ao longe, um círculo de luz intensa ilumina o SEMI-NU que está sentado a uma pequena secretária, com uma pilha de papéis à sua direita e um carimbo à sua esquerda. A cada frase que profere, em tom burocrático-ministerial, carimba energicamente um papel. Os gestos devem ser rápidos, como que pontuando o peso das palavras. SEMI-NU privatize-se o acesso aos jardins públicos privatize-se o acesso às passadeiras privatizem-se os ossinhos dos defuntos privatizem-se as perninhas das rameiras privatizem-se os soldados e as bombeiras privatizem-se governos e embaixadas privatize-se o controlo das fronteiras privatize-se o controlo das estradas privatize-se o direito à gravidez privatizem-se as barrigas escorreitas privatize-se um bebé em cada três privatizem-se as mamocas mais perfeitas privatizem-se palavras quando caras privatize-se o silêncio se arrogante privatize-se a pessoa quando rara privatize-se a beleza quanto antes privatize-se o direito a envelhecer privatize-se o direito a reunir privatize-se o acto de foder
privatize-se o dever de consentir privatizem todo o ar que respiramos privatizem o que vem da natureza privatizem o chãozinho que pisamos privatizem toda a água portuguesa ESCURO Uma vítima moribunda profere, muito a custo, o texto intitulado «O rendimento per capita», primeiro na ordem exacta da enunciação, depois desordenada e fragmentariamente. BODY segura um microfone para que se oiça o discurso e o estertor da vítima agonizante, enquanto YÓYÓ, usando marionetas-luva. manipula os seus membros inertes, fazendo rolar o corpo e construindo a evidência do «homem saco», desenhado pelos sacos de areia que anteriormente serviram para construir a trincheira. O RENDIMENTO PER CAPITA forçar o confessado à confissão e logo injectar um grão de areia o modesto desgaste de uma ideia na engrenagem que chia e geme e range e assobia sempre que alguém me retorce recordando quanto vale ser não ser recordação vestir a pele tão lisa da pessoa de sua epidérmica existência parecida ao padrão da parecença em vez de me instalar na bancarrota negar convictamente o que me ulcera fazer de cada não a minha crença doença reduzida ao seu sintoma ESCURO YÓYÓ e BODY instalam uma enfermaria de hospital de campanha e acomodam dois pacientes. Os pacientes manipulam os colchonetes de modo a alterarem a sua aparência corporal, adquirindo um carácter físico híbrido, mutante. ESCURO A luz revela de novo a grande mesa metálica, do género bancada morgue, com N objectos expostos. BODY e YÓYÓ, vestidos com fardas anacrónicas de vigilantes de museu, apresentam, com coreografias rápidas (do tipo demonstração de segurança a bordo de um avião), os objectos expostos, um após o outro. YÓYÓ mostrando um regador flashy O livro de cabeceira de Celina Tavares, aberto na página 366.
BODY mostrando um funil flashy Uma carta, não aberta, dirigida por Amadeu Ventura a Miguel Tavares. YÓYÓ mostrando um alguidar flashy O espelho de mão de Marieta Tavares. Estilhaçado. BODY mostrando uma uma flor de plástico flashy Uma máquina de enrolar cigarros. Quase nova. Não havia fumadores na casa. YÓYÓ mostrando um espanador flashy O roupão japonês de Celina. Descosido do lado esquerdo. BODY mostrando uma cruzeta flashy A bicicleta todo o terreno de Miguel Tavares. Último modelo. Nunca usada. YÓYÓ mostrando um sapato tipo «croc» flashy A boneca espanhola de Marieta. Chamuscada. BODY mostrando uma esfregona flashy Uma fotografia do casamento de Miguel e Marieta. Encaixilhada e datada. YÓYÓ mostrando uma gaiola de grilo flashy A máquina de barbear de Miguel Tavares. Em funcionamento. BODY mostrando uma mangueira flashy O despertador de Celina. Estridente. YÓYÓ mostrando um pente flashy A caixa de costura de Marieta. Herdada de sua avó. BODY mostrando um capacete de operário flashy O ferro de engomar da casa Tavares. A vapor. FUMARADA ESCURO Sobre fundo sonoro de colisãoes, os INTÉRPRETES executam uma sequência rítmica de saltos, quedas, piruetas, cambalhotas, etc. Sente-se a emergência de um espírito competitivo que, em crescendo, roça a rivalidade agressiva e, por fim, a mutilação.
ou Os INTÉRPRETES rastejam (lenta e ordeiramente ou, pelo contrário, desordenada e precipitadamente) como se tentasse escapar à perigosidade que a banda sonora sugere. ESCURO O SEMI-NU, a distância razoável dos espectadores, empunha duas lanternas de bolso suficientemente potentes para poder executar um jogo de dupla designação, remotamente inspirado na figura do polícia sinaleiro. O SEMI-NU apontando com as lanternas para cima e para baixo, e falando energicamente Quanto mais por conseguinte posto que como também. apontando para a esquerda e para a direita Além e aquém como também ao passo que consoante apontando em diagonal Nem por isso apesar de segundo alguém mas desde que apontando na diagonal contrária Por enquanto até mais não de modo que forçosamente apontando para os espectadores e para trás Não obstante assim assim de cada vez ou talvez sim apontando para cima e para baixo Ao fim e ao cabo tão-somente nem tanto assim mas como e quando apontando para a esquerda e para a direita Só por acaso ainda não porém contudo então aí apontando em diagonal Por menos que até à data sempre que não e se e se apontando na diagonal contrária Depois de tudo embora agora a ponto de não pelo contrário apontando para os espectadores e para trás Mas se calhar a bem dizer em todo o caso de antemão ESCURO Mergulhados numa penumbra metálica, dois INTÉRPRETES manipulam casinhas de papelão, com formas modernaças. Num primeiro tempo, tentam equilibrá-las sobre o próprio corpo (ombros, cabeça, braços esticados, etc.) ou sobre o corpo do parceiro. As casinhas caem sistematicamente. Num segundo tempo, constroem uma cidade colocando as casinhas sobre o corpo de um terceiro INTÉRPRETE que jaz inanimado. Povoam os contornos, as dobras, os altos, os baixos desse corpo território a «colonizar». ESCURO O CORO montado em andas entoa a PEQUENA PEÇA PARA COIRO ENDURECIDO. Lá ao longe, perdidos na luz como uma pequena hoste de gafanhotos. CORO Onde quer que vás pequeno soldado soldado da paz verás choques em cadeia e danos colaterais
porque esse estado de choque é sinal da nova ideia da nova ordem da morte que governa os mortais. Capitalismo sem ismo diminui à providência escudando o capital contra as regras da decência. O dinheiro faz turismo mas à escala mundial engrossando o cabedal de quem gere os acidentes os percalços do percurso e as crises consequentes. Segue as pegadas do urso ó soldadinho da paz e verás que gota a gota o sangue vem do suor e o suor tresanda a pão mas o estado de excepção e o bolo das migalhas melhor rolam quando falham no trabalho de gestão. Não há deuses que nos valham agora que os banqueiros não se atiram dos telhados quando estão arruinados pois logo os governamenteiros seus mordomos e criados sacam de alguma almofada repleta de vil metal para repor como dantes nos poleiros dominantes os galos e os abutres do divino capital. Onde quer que vás pequeno soldado soldado da paz verás choques em cadeia danos colaterais porque esse estado de choque é sinal da nova ideia da nova ordem da morte que governa os mortais e consigo tudo arrasta. Nenhum desastre lhes basta nenhuma crise é de mais. ESCURO Uma sirene soa longa, quase insuportavelmente estridente no escuro.
Os INTÉRPRETES, montados sobre grandes bolas de ginástica (ou empurrando-as, como se fossem planetas, executam uma coreografia que mima órbitas e movimentos astrais. Enquanto evoluem e manipula, murmuram, sussurram, cochicham, segredam gemem, uma melodia que só depois será entoada como canção. Cada intérprete deve escolher uma sonoridade diversa (amplificada por microfones) para entoar a melodia sem palavras. Por exemplo: mmmmeee, sssseee, vvvvveee, rrrreee, lllleee. Cacofonia. A coreografia vai-se tornando mais organizada e mais pop. Os INTÉRPRETES montados sobre as suas bolas e trepidando sem sair do sítio, cantam: GEOMÉTRI K A O ângulo agudo O ponto de cruz O caso bicudo O cone de luz O fio-de-prumo O ângulo obtuso A perda de rumo O centro confuso A linha de mira O ponto de fuga As curvas da espira O salto da pulga O sétimo céu O ponto de encontro O mundo terceiro O inferno já pronto O segundo sexo A linha secante O plano convexo O ponto distante O ângulo recto A curva apertada A gera sem tecto A linha quebrada A linha de escuta Horizontalmente À séria e à bruta Triunfo tangente O ângulo morto O fio do norte Rei morto rei posto A roda da sorte Mundo paralelo Arestas mais vivas E cubos de gelo
Que saram feridas Paralelograma Trapézio sem rede Acabou-se a mama Quem nos mata a sede Pirâmide nova Onde sobram velhos De pés para a cova Faltam os fedelhos Escala de valores Curva descendente Reino de estupores Que se lixe a gente País desigual Muda maioria Escala social Sofreu avaria ESCURO. Na escuridão total soa o seguinte texto entretecido com música: Os homens, na sua maioria, gostam de dormir às escuras. Há muitos homens que gostam de foder às escuras. Há mesmo homens que gostam de viver às escuras. Mas há homens que não gostam de andar na rua às escuras. Há homens que preferem rezar às escuras. Há homens que nunca perdem o medo do escuro. Há homens que dão tiros no pé e outros que dão tiros no escuro. Há homens que odeiam os outros homens em particular se forem escuros. Há homens que trabalham até escurecer. Há homens que só trabalham quando faz escuro. Alguns homens têm ideias obscuras, outros que têm negras intenções. Há homens que combatem o obscurantismo. Há homens que se comprazem no obscurantismo. Há homens que fomentam o obscurantismo. Há homens que se assustam quando passa um gato preto. Há homens que usam roupa escura porque andam de luto. Há homens que usam roupa escura para parecerem mais magros. Há homens que usam roupa escura porque não gostam de cores claras. Há homens que passam noites e noites em claro. Há homens que vivem às escuras porque não têm dinheiro para pagar a factura de electricidade. Há homens que escurecem o cabelo para tapar as brancas. Há homens que se deitam horas e horas ao sol para ficarem com a pele mais escura. Há homens para quem um desejo obscuro tem o mesmo valor que uma vontade clara e lúcida. Há homens que trabalham debaixo da terra e raramente vêem a luz do dia.
Há homens que trabalham em espaços fechados, como sejam os teatros, e só esporadicamente dão de caras com o sol. Há homens que usam cremes para branquear a pele porque sofrem por ser escuros. Há homens que procuram estrelas no escuro. Há homens que encontram no escuro estrelas que já morreram. Há homens que vêem a morte como um reencontro com a escuridão e uma transformação em poeira de estrelas. Há homens que no escuro vêem coisas que supostamente não existem. Há homens que não resistem ao apelo do escuro. Há homens que vivem anos e anos detidos em celas sem luz e nós estamos a anos-luz de saber o que eles sentem. Alguns homens lêem o futuro escuro das borras do café. Há homens que procuram a companhia do escuro para se sentirem mais perto do infinito, Há homens que fecham os filhos no quarto escuro para os castigar. LUZ OFUSCANTE Os INTÉRPRETES arrumam os adereços, despem peças de roupa, preparam-se para sair de cena. fim