Aime qui peut (la vie)

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AIME QUI PEUT (LE CINÉMA) Godard constitui sem dúvida um fenómeno único no quadro cinematográfico mundial: apesar do seu nome ser conhecido de todo o público cinéfilo, os filmes que realizou não atingem, de longe, um milhão de espectadores em média. A obra de Godard foi rotulada com uma etiqueta infamante: o intelectualismo (sinónimo de dificuldade de compreensão e de enfado). Godard situa-se precisamente na charneira que permite distinguir dois cinemas: um cinema de conforto e um cinema de esforço. Conquanto a distinção se faça ao nível da atitude provocada no espectador, a separação dos dois cinemas coincide geralmente com uma diferença ao nível dos meios de produção, das técnicas utilizadas, do referente ficcional, etc. — assim, Straub pertence a esse «segundo» cinema pelo lugar que atribui ao discurso e pela falta de meios na rodagem, Marker pela intervenção do documento, Oliveira pelo referente literário. Ora Godard instalou a sua margem no seio do próprio sistema: não só faz questão de continuar a ser produzido pelas grandes companhias (Gaumont, Canon...) — ainda que persistindo em não respeitar as cláusulas e jogando no mal-entendido —, de receber o apoio financeiro de firmas que exigem uma contrapartida publicitária (marcas de gasolina, de automóveis) — se bem que pervertendo sistematicamente a publicidade exigida (do poema à «Total» em PIERROT LE FOU ao «tigre de papel» da Esso em LA CHINOISE) —, de contratar «stars» — embora maltratando-as a ponto de nenhuma actualmente aceitar voltar a rodar com ele, e de ter conseguido levar Isabelle Adjani a renunciar ao papel de «Carmen» — mas sobretudo nunca deixou de escolher como referente o cinema standard e o respectivo modelo policial, nas suas variantes maiores de inquérito e de perseguição — a despeito de recusar a moral do género: o representante da ordem (ou da verdade) mata à traição por pura vingança (MADE IN USA), passa para o campo adversário (PRÉNOM CARMEN) ou só descobre a verdade tarde demais (DETECTIVE); em regra geral, as personagens motoras representam a desordem, pertencem à margem da sociedade, mimética da margem que Godard ocupa no cinema. Qual é então a dimensão que Godard rejeita, e que distingue indubitavelmente os seus filmes do resto do cinema? Em primeiro lugar, o enredo: a ficção cinematográfica desenvolve-se habitualmente segundo uma cronologia que compreende um princípio, um meio e um fim, segundo uma relação de causa a efeito. Ora, Godard, em boa verdade, só conhece um fim: a morte. O princípio corresponde a uma ruptura que vai adiar, por um tempo limitado, que é a duração do próprio filme, essa morte. Os filmes de Godard desenrolam-se exclusivamente no presente enquanto tempo suspenso entre um passado abolido e uma morte tão-somente adiada. O presente ignora as relações de causa a efeito: as acções sucedem-se mas não progridem. Este modo que rege o desenrolar do filme altera imediatamente todos os dados da narração ficcional: a ficção standard adquire consistência dentro de uma ficção mais vasta — uma imagem do mundo que estipula uma ordem do mundo — cujos signos vários são identificáveis, muitas das vezes ao nível dos elementos secundários — cenários, guardaroupa, etc. —, para permitir que o espectador possa situar a narrativa num contexto onde encontra o reflexo fiel de uma ordem social e moral estabelecida; esse contexto reconhecível resume-se basicamente a um trabalho, uma família, uma pátria — com todas as conotações reaccionárias ligadas a tal programa. Ao excluir o passado e o futuro da sua intriga (fora-de-ficção), Godard esvazia do seu significado convencional os signos de identificação do mundo que passa a surgir como um caos para o qual tanto as personagens como Godard procuram uma ordem. A desordem é o signo da actualidade que se dá como espaço temporal onde se desenvolve a ficção godardiana. Simultaneamente, esta perda de referências, ou pelo menos dos respectivos significados préestabelecidos, despe personagens e objectos que assim adquirem uma existência nova, uma presença, e Godard capta neles essa essência que a ficção não deixava transparecer. Godard reinventa o mundo à medida que o vai filmando. A câmara interroga tudo o que descobre. Neste aspecto, a direcção de actores é particularmente elucidativa: estes últimos já não podem esconder-se atrás da personagem que desempenham e mostram-se sem máscara, com os seus desejos — de representar e de ser vista (no caso de Karina) de ser amado «apaixonadamente» (Piccoli em PASSION), de ser ouvido (Léaud em DETECTIVE) com a preocupação de se protegerem através de alguma certeza (J. Yanne em WEEK-END, I. Huppert em PASSION), etc. Todos os actores são


representantes de Godard — só é possível registar e restituir aquilo que um autor em si próprio sente, aquilo que partilha — mas, ao humanizarem-se, em vez de tenderem para o estereótipo, tornam-se instrumentos de uma dupla projecção/identificação: a do cineasta e a do espectador. A câmara tem pois um papel activo, já não apenas de registo mas de questionamento dos objectos que perante ela se apresentam. Para Godard não existe fora-de-campo: daí a aparência retalhada do real cujos elementos o realizador dá a ver separadamente, restituindo à montagem a sua função primordial. Godard procede por análise, isola os objectos, as personagens e as forças que se confrontam em diferentes planos — esta abordagem permitiu-lhe teorizar o significado ideológico do travelling, em TOUT VA BIEN, para passar de um «plano» para outro. É ao nível do trabalho de isolamento dos objectos (de forma a descobri-los numa nudez essencial e a revelar o sentido de uma relação entre eles) que Godard é verdadeiramente um dos únicos «pintores» do cinema: a referência pictórica não é um mero cenário porque se inventa para a captação de cada objecto. Em Godard, o enquadramento nem é o postal — equilíbrio constante — nem a dramatização — preconizada por Eisenstein e vulgarizada em todos os filmes de «género»: desequilíbrio em função do sentido projectado nos objectos que compõem a imagem —, mas sim um «aplainamento» em que o jogo de contrastes — entre luzes, cores, fundos — mostra uma faceta inédita do objecto cujo sentido se pode alterar de plano para plano. Esse sentido nem é consensual nem imposto por Godard — que interroga incansavelmente —, antes terá, em última análise, de ser formulado pelo espectador — do qual efectivamente se exige um esforço. O princípio do contraste rege toda a estética de Godard, tanto ao nível das imagens — até 68 trabalha com cores relativamente «puras» (com o azul e o vermelho como dominantes); de então para cá a paleta ganhou em matizes de tons (cf. os ouros de PRÉNOM CARMEN): mas o uso de contrastes violentos mantém-se — como ao nível da relação entre as imagens e os outros elementos fílmicos — desfasamentos entre o som e a imagem, entre a acção e o comentário. Que Godard seja palavroso é inegável; em contrapartida, é porventura o único cineasta a utilizar o discurso verbal fazendo intervir o funcionamento real e irracional que o produz: associação livre (que organiza toda a situação ficcional — cf. a passagem de «un mouvement de vague sur la grève» a «un vague mouvement de grève» in «Argumento do filme PASSION», ou da personagem «pura» à operária «pura e dura» para definir o papel de I. Huppert), «coq à l'âne» (perda do fio, discurso sem nexo em que surgem os jogos de palavras: cf. o «mexicain» e o «mec si con» dos CARABINIERS), etc. Mais uma vez, o processo analítico, ao separar os elementos — criando pois uma descontinuidade — tira-lhes o sentido convencional, e o verdadeiro sentido só aparece quando voltam a ser reunidos — e se cria uma nova continuidade — segundo um parentesco ou paridade que já não é hierarquizada por e conforme uma ordem social. Trata-se de uma decomposição do mundo que obedece a um princípio inspirado no funcionamento químico. O mundo, ou pelo menos o conhecimento que dele temos, é uma ficção; reconhecendo ao cinema um papel historicamente decisivo nesta ficcionalização — cf. as posições teóricas assumidas na época dos «Cahiers» —; Godard respeita — lembremos que ele concebia À BOUT DE SOUFFLE como um «thriller» e desde então tem vindo a retomar constantemente a mesma intriga, de PlERROT LE FOU a PRÉNOM CARMEN — mas interroga os pólos emocionais da ficção cinematográfica «clássica» enquanto arquétipos de toda e qualquer ficção. Isola-os enquanto ingredientes — «love, hate, action, violence, death, emotion» como Samuel Fuller declara em P1ERROT LE FOU (a propósito de «As Flores do Mal», pois Baudelaire foi decerto o primeiro a enunciar de facto os fundamentos de uma estética moderna: questionamento dos objectos do presente, avaliação do seu peso emocional e moral e inclusão do observador na observação — postulando identidade--semelhança do autor e do público); a fórmula pode reduzir-se a dois termos: «A girl and a gun», o sexo e a morte, Eros e Tanatos, i.e., a duas convenções que o cineasta disseca: morte teatralizada e interminável em BANDE À PART, morte verbalizada e negada em SAUVE QUI PEUT (LA VIE), morte apagamento de Pierrot. Conquanto a interrogação da morte não possa encontrar resposta, as imagens da morte revelam talvez aquilo que a opõe, ou não, à vida. O sexo está também no centro de todo o trabalho de inquietação de Godard. Da alteridade (UMA MULHER É UMA MULHER) à inultrapassável diferença (o ventre de JE VOUS SALUE MARIE), Godard reitera perseverantemente as tentativas de aproximação do mistério do outro e das relações


de comunicação que se podem estabelecer — comunicação essa dificultada pelo «prazer» visto que este é regido por rituais (da prostituição em VIVRE SA VIE ou DEUX OU TROIS CHOSES QUE JE SAIS D'ELLE à pose sádica em SAUVE QUI PEUT (LA VIE)) que não respeitam a identidade dos «partenaires» (perseguição e impotência em PRÉNOM CARMEN). As condições da vida moderna modificam a relação mítica do homem com a mulher — o ciúme de Paul em LE MÉPR1S não é o de Ulisses, o de Joseph em PRÉNOM CARMEN ou JE VOUS SALUE MARIE não é a dos respectivos Josés. Só conhecemos o real através das imagens que dele são produzidas. Godard faz-nos assistir à génese das imagens — a primeira referência é a pintura, da biografia de Velasquez no início de PIERROT LE FOU à reconstituição das luzes da «Ronda nocturna» em PASSION — pela intervenção da câmara — a captação das imagens é um tema omnipresente, das fotografias de LE PETIT SOLDAT (muito antes de Wenders) passando pelo visor da Mitchell em TOUT VA BIEN, ou ainda a câmara vídeo de DETECTIVE, às latas de película de SOIGNE TA DROITE, sem falar de todos os filmes que mostram uma equipa de rodagem (LE MÉPRIS, PASSION, PRÉNOM CARMEN), nem de todas as manipulações visíveis da imagem (da repetição dos planos em MADE IN USA aos ralentis de SAUVE QUI PEUT (LA VIE)) e da sua ordenação. Esta última transporta a composição do pictórico para o musical — note-se que, aliás, a música conquistou um lugar cada vez mais importante, enquanto referência, nos últimos filmes — i.e. para uma intuição de uma incompreensível harmonia do descontínuo. É significativo que o espectador desarmado tenha amiúde a impressão de um resultado confuso devido à abundância de dados, quando os filmes de Godard, mesmo PIERROT LE FOU e MASCULIN-FÉMININ, se caracterizam por uma concentração propositada de lugares e de acção. Em suma, os filmes de Godard são os mais simples que conheço porque tudo neles funciona no primeiro grau, os mais inteligíveis, porque Godard, apesar das suas contradições e sobretudo graças a elas, é sempre sincero. Godard é talvez o único cineasta que verdadeiramente utiliza o cinema como meio de conhecimento, do mundo e de si mesmo — passando de figurante, no papel de denunciador, em À BOUT DE SOUFFLE, a uma presença no seu próprio papel em PRÉNOM CARMEN ou SOIGNE TA DROITE. Nesse sentido, Godard será provavelmente o único que pode assumir, não digo a história do cinema, mas algumas das suas histórias, em especial as que estão por fazer. A situação de «maldito» de Godard é, no fim de contas, aquela que os «seus semelhantes» e «seus irmãos» lhe atribuíram — os cineastas aos quais ele pede um acréscimo de exigência e que ele não hesita em insultar, os críticos que, bem vistas as coisas, se comprazem em separar o cinema da vida. Experimentando e prosseguindo a sua investigação, Godard não só transforma o cinema como faz do cinema um instrumento de comunicação e nos convida a passar ao acto. S.


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