ANYWHERE IN THE WORLD Esta vida é um hospital onde cada doente está possuído pelo desejo de mudar de cama Charles Baudelaire A realidade tem um defeito terrível: não é plana. A menor coisa, o mais trivial objecto possui inúmeras facetas, pelo que não pode ser apreendido nem na sua integralidade nem na sua integridade, ou seja na sua «realidade». Na verdade, a partir de seja lá o que for, é possível provar Deus – por outras palavras, a coisa mais insignificante é já um sofismo. No fundo, das coisas apenas apreendemos a relação, as mais das vezes de submissão, por vezes de prazer, de indiferença ou de distracção quase sempre, que nos liga a elas. Ora a pintura é plana. Como a folha de papel onde o texto se inscreve. É por isso que, na sua incompletude ontológica, ela é susceptível de produzir um sentido – um sentido obtém-se pela eliminação dos traços supérfluos, contraditórios e complexos que parasitam a nossa percepção das coisas, pela redução a duas dimensões. É pelos livros e pelas imagens que passa a nossa compreensão do mundo – sendo certo que se pode viver perfeitamente no mundo, talvez mesmo melhor, sem o compreender. Tudo à nossa volta solicita a nossa atenção, reclama o nosso entendimento, desde a flor que oferece cor e perfume até ao céu que amontoa nuvens e desencadeia a tempestade. A nossa relação é geralmente maquinal – por intermédio da tesoura ou do guarda-chuva –, mas a sua representação, pictórica ou textual, permite-nos penetrar o sentido no momento em que o forjamos. O mundo que percepcionamos é tão-só a imagem que dele construímos. Eliminámos muitos dos seus aspectos, reduzidos a uma palavra – ou seja, a uma coisa sem dimensão alguma, virtual, desprovida de significação, consensual, devedora, no melhor dos casos, «do orgulho e do preconceito» –, afogados num discurso mediático – isto é, condenado ao esquecimento imediato –, tais como guerra, miséria e loucura. O mundo é «normal» na medida em que o normalizámos. Mas destituído de sentido porque destituído de questionamento, regular e flutuante – pois só «a excepção confirma a regra». A pintura – a sua história prova-o à saciedade – evita esses temas. É preciso um Goya para nos colocar «os desastres da guerra» diante dos olhos, um Géricault para ir buscar modelos ao asilo, um Van Gogh para pintar um café como «um lugar onde uma pessoa pode arruinar-se, enlouquecer, cometer crimes». São eles os grandes predecessores de Alberto Péssimo, cujos quadros remetem para uma linhagem artística da qual ele se faz eco, reflexo reformado, etapa e estância, «actualização» como se diz na gíria da contemporaneidade. Só os loucos – e os poetas – permanecem «humanos demasiado humanos»; o resto da humanidade passou da «servidão voluntária» para a mecanização dos corpos e das almas. O rosto deles, como o das crianças, é expressivo – o contrário do «polido» (polidez e polícia têm a mesma raiz) exigido pela socialização –, reflecte o sentimento e a expectação. O pintor procura captar o humano enquanto diferença – a indiferença é letal. Para tanto precisa de convocar as cores do fauvismo, as distorções do expressionismo, a rugosidade desses singulares – Vicente sempre, Rouault também, Picasso em certos períodos – para quem a pintura não é apenas imagem mas também matéria. Ao retratar estes loucos e loucas, Péssimo simultaneamente expõe a dor e a fragilidade dos seus retratados – coisa que deles faz um reflexo pouco deformado de nós mesmos – e oculta os labirínticos corredores e muralhas que os enclausuram e separam de nós. Essa atitude é, no fundo, parente da de Klimt, de quem se sabe que pintava primeiro as suas figuras nuas e depois as tapava com brocados modern style, complicados mas castos, e o perfeito oposto: o ornamento cede lugar à exposição do signo, do sinal revelador – que ocupa geralmente o centro exacto da tela –, uma boneca na maior parte das vezes, ou um virginal ramo de noiva, indícios do desejo
«normal» insatisfeito, provas de promessas não cumpridas pela vida, fetiches do que lastimosamente se não teve. A pintura tem de figurar e traduzir uma falta. Por isso as cores laceram as caras e as carnes. Num dos quadros, uma mulher hirsuta embala o seu próprio fantasma – contaminado pela palidez do céu e apertando a sua boneca – numa meta-representação da dor de crescer. Noutro, é o fundo da tela que desata a sangrar e escorre sobre as mãos da personagem. Algumas figuras estão acamadas, mas a maioria delas toma a pose nos cadeirões e fita-nos. Elas interrogam-nos. Chamam-nos, fraternalmente, ou até amorosamente. E acordam emoções inomináveis que dormitavam enterradas no fundo das nossas cabeças. Saguenail