Ao meu amigo manuel antónio pina

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AO MEU AMIGO MANUEL ANTÓNIO PINA QUE TAMBÉM GOSTA DE JEAN RENOIR De UNE PARTIE DE CAMPAGNE fica para sempre a amarga constatação de que uma fracção ínfima da vida — o tempo dum passeio no campo — não chega para mudar o curso da existência, mas sobra para modificar todas as expectativas sob o signo exigente da (des)esperança. Quem como eu descobriu este filme ao dobrar a esquina dos dezasseis anos terá porventura gravado na mente o famoso plano da esposa hierática que conduz estoicamente a barca, ao lado dum marido entregue ao desalinho dum pesado sonho fetal. Que melhor síntese para o facto de «a frágil» condição feminina ser tão-só a face trágica da condição humana? Algures, num ápice de passado, a criança descobre que do outro lado do espelho não há ninguém. Lembro-me de ter ido ver UNE PARTIE DE CAMPAGNE na companhia de um ruidoso bando de colegas do liceu; era tempo de revolução, de ouvir rádio até de madrugada, de sonhar com manifs e cocktails molotov. E durante os meses de grande esperança que se seguiram, cada vez que nos parecia que a revolta ia esmorecer ou soçobrar, que os rebeldes iam ceder à tentação carreirista da militância, olhávamos umas para as outras e exclamávamos imitando o ar aparvalhado do namorado a dois dedos de apanhar um par de cornos: «Ah! Des cannes à pêche!»... que era como quem dissesse «Revolution, piège à cons!». Um dia, era certo, as praças ficariam desertas, os bosques despovoados e o rio, grande ou pequeno, não levaria a lado nenhum. Falar de Renoir como quem recorda não me parece abuso de sentido pois UNE PARTIE DE CAMPAGNE é a lição de sol de Renoir pai, trabalhada pela máquina da memória que foi o cinema no seu período lunar. Já se sabia que a «sétima arte» tomava a seu cargo a questão impressionista para não a resolver porque eram viciadas as perguntas e ao lado prosseguiam, algo triunfantes, alheias à pontuação do real, as respostas da estética expressionista. Jean Renoir filmou, a partir do legado plástico de Auguste, uma galeria de personagens em vias de extinção. No jogo da vida, as figuras de Renoir são perdedoras num ou vários campos, mas os filmes que as constroem e as destroem conferem-lhe um grau de hiperconsciência da sua perdição. Elas sabem contudo onde ficaram os farrapos de felicidade e por isso são arautos de uma inquietação que está ora aquém ora além da alegria de viver. Do confronto entre as leis da natureza, às quais a espécie dos homens obedece, e os comportamentos culturais aos quais os homens, enquanto indivíduos, a cada passo se furtam, nasce uma paixão de generosidade expressa em pequenos e grandes gestos. Renoir parece acreditar nas virtudes de contágio dessa paixão e os seus filmes imitam o vírus que a propaga. Em UNE PARTIE DE CAMPAGNE, a mãe e a filha são cúmplices inocentes na transgressão e os seus galantes companheiros vão ser contaminados pela candura solidária de ambas; todos se expõem de maneira comparável ao risco do prazer, ficando provado que o «pecado original» que os condena é justamente a renúncia, a resignação, a submissão às regras estabelecidas. Se a vida mais não é do que um luto por uma fracção de felicidade, o cinema de Renoir troca a elegia pela apologia. Os seus filmes não são predadores da emoção do espectador, antes coroam o recém-chegado às inúmeras ilhas perdidas e hostis de risos, sorrisos, lágrimas, amuos etc. numa grinalda de sinais que alerta para a variedade dos seres, do actos e dos seus retratos. O outro lado do espelho não existe, ou será o lado de dentro, ou será o lado de trás, ou estará ao nosso lado? R. G.


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