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Tu que passas e te esqueces de que todos nós aqui estamos de passagem, tu que segues em frente sem te virar para trás porque essa é a ordem que te gritam, tu, meu conterrâneo, meu contemporâneo, deves ser, podes decerto ser, filho, pai, neto, avô, vizinho, amigo, de um, dois, dez ou mais migrantes. És descendente ou progenitor, serás porventura antepassado, de alguém que, ao olhar o monte, ao olhar o oceano, quis, quer e quererá ir ver do outro lado. A terra portuguesa que pisas sempre foi terra de partidas. E de partidas dolorosas. Porque o pão-nosso de cada dia, implorado em rezas, conquistado pelo suor do rosto, aqui amiúde escasseou, aqui tem sido mal repartido. Porque fomos ilha orgulhosamente só e submissa, governada por tiranos de toda a sorte. Porque fomos desgovernados com o nosso cobarde consentimento. Tu que passas ao lado desse outro grito que te haveria de varar de cimo abaixo, pára agora uns instantes para pensar. Como pode um português – seja ele mísero, remediado ou abastado – ignorar o destino dos que aqui chegam em busca de porto de abrigo, em busca de trabalho sem olhar ao esforço e aos maus-tratos, em busca de um lugar à sombra enquanto o sol não nasce para todos? Os marroquinos que as autoridades portuguesas expulsaram pela calada da noite, depois de lhes terem arrancado cinicamente o perigoso segredo da sua travessia clandestina, são uma parte de ti, uma parte da tua história. E não me venhas com histórias de que não tens história, de que a história são os outros que a escrevem, de que já não há história e de que vivemos agora na eterna capitalização do nosso pequenino contentamento. O teu coração ficou fechado naquele camião frigorífico que, atravessando a tarde ardente Castela, transportava um transmontano para os rigores da cidade luz? O teu coração ficou enterrado no caixão de pinho dum soldado analfabeto com terra nas botas que foi matar «turras» para uma angola-é-nossa e nem percebeu de que lado chovia a fúria das balas? Mostra que não tenho razão. Mexe o rabinho (todos temos um), mexe as perninhas (não as da marioneta, as tuas), mexe os cordelinhos (se gozas do privilégio de ter nas mãos algum fio da meada). Mexe-te para mostrar que não estás de acordo com a maneira chocante como um bando de tristes executantes aplicam os ditames de uma Europa colada a cuspo e que por isso escarra desprezo e ódio naqueles que, mãos vazias, bolsos rotos e coração aos saltos, à sua porta se apresentam. TODOS SOMOS MIGRANTES Há uns tempos atrás, a expulsão de território português de um punhado de clandestinos oriundos de Marrocos mexeu comigo a ponto de eu decidir, sem outro enquadramento partidário que não a parte da minha consciência de que não abdico, escrever e distribuir o panfleto que acima cito. Tratava-se de exprimir a consternação que sentia perante a passiva indiferença, quando não a activa condenação, por parte dos meus compatriotas, da penetração de estrangeiros em busca de trabalho no nosso portugal-dos-pequenitos. No contexto de uma sociedade construída à custa de constantes recentes e menos recentes, fluxos e derrames migratórios - os portugueses pareciam adoptar uma posição, a todos os títulos indefensável, em prol da transformação da Europa numa cidadela rodeada de fronteiras intransponíveis e de CAMPOS DE MORTE - chamemos os bois pelos nomes Vieramme à memória experiências que, noutros tempos e lugares, me construíram como pessoa e me fizeram descobrir, a história recente da emigração no meu país. E tive uma funda vontade de tomar como ponto de partida a desestabilização que caracteriza a situação do migrante, em todas as frentes e retaguardas da sua vida, e de escrever um texto com o seu quê de maria rebelada contra o silêncio, esse silêncio que foi regra e prega íntima das muitas que partiram atrás de mil josés. Entrevada, desbocada, amarga, difícil de amar, a personagem de Palmira tem pois muito daquilo que eu reprimo ou solto. Regina Guimarães


arribação sinopse Uma mini equipa de reportagem pretende realizar um curto e inofensivo depoimento televisivo acerca dos meandros da arribação humana. Para isso, filma e entrevista dois emigrantes regressados de França ao norte de Portugal. Porém, a presença intrusa da câmara e o notório descomprometimento dos dois estranhos àquele lugar social e mental solta as línguas e desencadeia um processo muito violento de questionamento, por parte da mulher emigrante, tanto das intenções veladas dos repórteres como dos percursos de vida do velho casal, unido pela dureza de uma experiência comum e separado por um fosso de silêncios e palavras doridas.


arribação FIRMINO, o emigrante PALMIRA, a emigrante entrevada IVONE, a jornalista ARNALDO, o operador de imagem PIPO, o assistente. Uma equipa de televisão (um operador de câmara, uma jornalista, um assistente) estão dentro de um cenário que, graças a escassos elementos - uma mesa e um banco corrido, uma enorme bacia de zinco com pedaços de bacalhau a boiar, uma enorme bacia de zinco com pedaços de carne em vinha de alhos - sugere uma cozinha. Segundo uma muda coreografia de gestos convencionais, os técnicos vão «filmando» a cantilena de PALMIRA e o depoimento de FIRMINO PALMIRA (sentada numa cadeira de rodas, descasca batatas para dentro de um velho cesto) Foste à guerra sem espingarda de olhos cravados no chão Partiste era manhã parda carne em busca de canhão. Não quiseste ser soldado de uma guerra sem sentido Partiste muito abalado ias mais morto que vivo. A fome falou mais alto pensaste com a barriga Pois quem escolhe dar o salto a dura guerra se obriga

FIRMINO (de pé, como se o chão queimasse) Não, não. Não foi por ter medo à morte que eu me pus a bulir daqui. Foi a vida, entende...? C'est la vie... A vida não estava para guerras de África quando se tinha um filho de colo e outro a caminho. Olhei para a barriga da Palmira a crescer e comecei a perceber que tinha de me fazer à estrada. Eu era um rapazola, até o sangue me fervia nas veias. Se me tivessem dado a escolher, acho que tinha preferido ir dar caça aos turras em Angola. Mas não foi possível. Não se proporcionou. Um gajo atira-se de cabeça para o casório e nove meses depois já está a receber a factura. E depois, olha, cá se fazem, cá se pagam. Portanto, não abalei daqui por causa da política. A minha política é o trabalho. Sempre foi. Agora que estou na retraite, até me custa ficar no choco mais um quarto de hora. Mal abro os olhos, salto da cama. Se ficar mais um tempinho no bem bom, até o cuzinho dos ossos me dói. Para tudo na vida é preciso apanhar-lhe a mão. Até para descansar é preciso treinar. Mas eu não quero dar parte fraca. Tenho a horta para me entreter. Tenho a minha Palmira entrevada que é o castigo dos meus pecados. E agora tenho a minha arte, que é uma coisa mimosa de se ver. Hoje envernizei mais uma tour Eiffel que o senhor presidente da Junta me encomendou. Antes de ontem, acabei um Cristo-Rei para uma senhora de Lisboa que tem muita devoção naquela estátua. Suspirando. Às vezes, dá-me umas ganas de trabalhar que até compro caixas de fósforos no lugar de fazer as minhas maquettes só com fósforos queimados.


A JORNALISTA Corta! Perfeito, senhor Firmino. A Senhora Palmira não se importa de voltar a cantar a sua... a sua canção. É que o Arnaldo só conseguiu enquadrá-la quando já ia a meio. PALMIRA (de faca na mão) Mas eu já descasquei as batatas todas... A JORNALISTA Senhor Firmino, não se arranja mais uma batata para a sua senhora descascar enquanto canta? FIRMINO Homessa... Não são as batatas que aqui faltam. Todos os anos nos sobram, porque nesta solidão em que a gente vive, não há ânimo para criar um segundo porco. Deus nos perdoe o desperdício. Agora que já só temos duas bocas para alimentar, a terra até parece que dá mais... Firmino retira-se para ir buscar batatas. A JORNALISTA Olhe, pensando melhor, vamos fazer assim. O Arnaldo faz um grande plano da sua senhora a cantar e depois junta-se com um grande plano da mão a descascar. (Para Palmira.) Está certo, Dona Palmira? (Para a equipa.) Câmara pronta? (De novo para Palmira.) É quando a Dona Palmira quiser. PALMIRA (cantando) Foste à guerra sem espingarda de olhos cravados no chão Partiste era manhã parda carne em busca de canhão. (interrompendo o canto) Oh, esqueci-me da batata. Desculpe lá, Senhora Ivone. O meu Firmino nem sabe o que custa falar destes tempos. É que... é que agora são tudo facilidades e aviões e abonos de família. Mas, na altura, o meu pai levou muito a mal eu andar para aí de barriga a chorar pelos cantos, com um filho ao colo e outro já quase na boca do corpo. Então eu tive de ir para casa da minha sogra que Deus tenha em sua companhia. E a minha vida foi um inferno. O meu homem longe, sem morada para onde eu pudesse ditar uma carta que fosse. Eu, sem nada de meu, a não ser os filhos que Deus me deu. E uma sogra que fazia de mim servente e passava o santo dia a azucrinar-me o juízo que eu era um coiro para aqui, que era uma sonsa para ali, que não sabia sequer se os netos lhe eram alguma coisa, que o meu homem se tinha posto a cavar para não me aturar... E outras ruindades que ela me dizia. Ai, menina, mil vezes ser concierge numa gaiola do seizième e andar com as poubelles de um lado para o outro em vez de ter de aturar uma sogra que não nos quer bem. A JORNALISTA Mas depois a Senhora Palmira foi ter com o seu marido? PALMIRA Fui sim. Uns anos depois. Já o meu Salvador tinha a segunda classe feita. E aí a minha sogra não quis que eu o levasse comigo. Porque já tinha botado corpo de homem e já lhe fazia falta. E a cabra


da professora primária amen amen, que o menino ficava bem muito entregue à avó, a crescer na terra onde nasceu. Como se a terra alguma vez nos agradecesse a gente ter nascido nela. Ai, cala-te boca, cala-te boca. Não digas mal da terra que te há-de comer. A JORNALISTA Esteja à vontade, Senhora Palmira. Eu nasci longe daqui e acho que não deixei saudades quando os meus pais tiveram que sair de Malange de um dia para o outro... FIRMINO (com um cesto de batatas na mão) Ela já está a queixar-se? Chiça... não pode um homem virar costas. Não liguem, é da doença. Cada um tem a sua cruz, mas a Palmira nunca aceitou a que lhe coube na rifa. Profundo suspiro. Que era uma mulher de trabalho, lá isso ninguém lhe tira. Mas muito amargosa, muito. Como esposa, então...?! A minha mãe tratou-a como filha, é o que todos me dizem, só ela é que ela acha que foi tratada como enteada. Criou-nos o Salvador, por assim dizer, e ele fez-se homem a trabalhar numa fábrica, mas ela acha que ele devia ter estudado lá na França. Estudado? Tivesse ele ido connosco, ainda acabava amancebado com uma preta que é o que a gente vê por lá. Uma pouca-vergonha... E digo-lhe mais: se me vê aqui agora neste instante, foi porque eu empandeirei para cá as duas catraias e meti-as num colégio interno. Que aos quinze já elas olhavam para a sombra e mais um bocado casavam com o primeiro indígena que lhes desse duas de letra. A França é um sítio bom para trabalhar, mas não é lugar onde se viva decentemente. (Pausa. Coçando a cabeça) Por isso é que muitos nem lá se aguentavam... A JORNALISTA Mas então senhor Firmino acha que teve sorte? Sorte, digamos, relativamente a outros que fugiam daqui e depois fugiam de lá? FIRMINO Sorte... ora vamos lá a ver... sorte, cada um faz a quem. A JORNALISTA Não fale, não fale... Aguente aí que o Arnaldo vai fazer o enquadramento e depois o senhor fala à vontade, tudo o que quiser, para a câmara. Arnaldo e Pipo agitam-se à volta do tripé. FIRMINO Mas para onde olho? A JORNALISTA Pode olhar para mim. FIRMINO (metendo as mãos nos bolsos) Ao menos olho para uma coisa boa de se ver... A JORNALISTA Câmara pronta? ARNALDO Quando quiseres...


A JORNALISTA Motor. ARNALDO Está a andar. A JORNALISTA Acção, senhor Firmino. FIRMINO E qual era a pergunta? A JORNALISTA Queria que voltasse a pegar na ideia de que nem todos se aguentavam... FIRMINO Pois não. A França não é pêra doce. A menina, quer dizer, a senhora, imagine-se a cavalo numa mota com a mulher atrás e a filha bebé a chorar na dianteira, às seis da manhã, um frio de rachar o coração, para deixar esta no boulot com a catraia agarrada às saias, e ala para o meu chantier, sempre a acelerar. E depois à uma da matina, a mesma cena, o mesmo frio, a mesma pressa, com a miúda já a dormir. Um gajo saía noite cerrada e entrava fora de horas, caraças. Quase nem víamos a cor dos lençóis. PALMIRA O que o meu Firmino não diz é que, à hora a que a família se punha a cavalo na mota, já eu andava a pé desde a cinco a carregar com as poubelles do meu prédio e de dois outros que eu tinha por minha conta. E que já tinha ido deixar a minha mais velha a uma ama que depois ma levava até à porta da maternelle. Só podia levar comigo a que já tinha cinco aninhos, porque se portava como uma senhora e porque me ajudava a limpar merda das patroas que eram bem porcas por sinal... Que a nossa gente, mesmo sem ver a cor dos lençóis traziam tudo limpo em casa, até no chão se podia comer... FIRMINO Vê, menina, vê? Ela tem tanto veneno lá dentro que até se lembra da porcaria das patroas. Pausa. Olhe, sabe o que lhe digo...? A gente alguma coisa ficou a dever, à França. Pois se não fosse a França, a gente não tinha uma casa assim, espaçosa, airosa, com vistas largas, e ela não tinha uma cozinha mais bem equipada que a das patroas. Aí é que bate o ponto, não é? Pausa. Ai... só esta minha patroa é que não vê isso. Acho que é de estar para aí sentada o dia inteiro. Para uma mulher que nunca teve vida folgada não é fácil viver tolhidinha. Mas se quer que lhe diga... a menina, desculpe já me disse mas eu não retive, a menina chama-se...? A JORNALISTA Ivone. Chamo-me Ivone. FIRMINO Pois... Senhora Ivone, estas coisas já não são do seu tempo, portanto a menina só conta como certo o que lhe dizem. E o que eu lhe digo é que, mesmo aquele medo que a gente tinha de ir a salto, um gajo até se enfiava pelas calças abaixo de tão acagaçado que ia daqui... era tudo a fingir. Como no teatro. Passava-se a custo a fronteira, tudo pela calada da noite, ouviam-se uns tiros, lembro-me de que ouvimos uns tiros no meio de um milheiral já na outra banda, mas os gajos estavam todos feitos uns com os outros.


Silêncio. Palmira agita-se na cadeira. Ivone faz um sinal com os dedos (apertar o enquadramento) ao operador que lhe diz que sim com a cabeça. A JORNALISTA Os gajos? Mas que gajos? FIRMINO Os gajos. Os gajos todos, sei lá. Os espanhóis, os franceses, os portugueses. Os passadores, a PIDE, a Guardia Civil, os fliques das douanas. A gente foi lá parar, àquele lugar, naquela altura, porque eram precisos braços, muitos braços para trabalhar na França. Os patrões andavam desesperados à cata de portugueses, porque nós éramos humildes, não arrebitávamos cachimbo... Tanto é que eu... eu que me fiz à estrada ceguinho como um bebé acabado de nascer, passados dois dias de ter chegado a Paris já estava num chantier, a trabalhar de sol a sol. E nunca me faltou trabalho. A JORNALISTA Corta! ARNALDO Cortou. Sacudindo os braços como que para se livrar dum formigueiro. Ó senhor Firmino - se me permites, Ivone... - o senhor diz que ficou a dever alguma coisa à França. Mas se tivesse ficado por cá, por aqui, por estas terras que tanta gente abandonou, e tivesse trabalhado com tanta fúria como trabalhou por lá, acha que os proventos teriam sido diferentes? FIRMINO Ó meu caro amigo, bem se vê que é novo. Eu paguei com o corpo tudo que de lá trouxe, porra! Pagámos. O caso é que se a minha Palmira tivesse ficado entrevada cá, que retraite é que lhe pagava os tratamentos que ela está ter...? PALMIRA Servem-me de muito, os tratamentos...! Não há médico que me valha e o resto é letra. Foram os médicos de cá e os tratamentos de cá que me roubaram o meu Lucas, ainda nem dois anos tinha. Apagou-se como uma velinha. Com uma pneumonia. E o Firmino em França. Nem me fale dos tratamentos de cá... FIRMINO tom de resignação Olha, enquanto pau vai e vem, folgam as costas. Os médicos dizem que não há nada a fazer. Para Palmira. Mas, pelo menos, andas distraída na fisotrapista, ó mulher. Para Arnaldo. Ela passa-me a vida de terço na mão, a rezar, a rezar, parece que engoliu um disco, valha-me Deus. PALMIRA Por mim, nunca tinha voltado. E tu sabes disso, Firmino. A cozinha, a cozinha... mete a cozinha pelo cuzinho acima que eu não posso cozinhar, Deus me perdoe, e tu só gostas de estar na outra cozinha, negra como breu, com os teus fósforos e os teus tubos de cola, no meio da fumarada... Ou não é verdade? Tu parles... E se as minhas filhas tivessem casado com franceses, ou pretos, ou mouros, ao menos não estavam por cá a atender telefones a dois euros por hora, sem casa que mereça esse nome e a pedinchar ao fim de cada santo mês para pagar o aluguer. Benzendo-se por cima dos lábios. Cala-te boca que isto não é coisa que se diga na televisão. ARNALDO Mas fale, senhora Palmira, desabafe à vontade, que depois a gente corta o que não for preciso.


FIRMINO indignado À vontade...? À vontade...!? Ó amigo, não lhe puxe pela língua, que eu não ganho para estas vergonhas. Nem as mereço. Nem você me paga. Pois não? À vontade... à vontade andam os bichos do mato, os javalis e a gente, se pudesse, metia-os dava-lhes cabo da raça e metia-os no forno. Que é isso de à vontade? Os cães andam de trela e os bois de canga. E as ovelhas andam arrebanhadas. À vontade, só mesmo as cabras que são filhas do diabo, porra...! Quem perde a vergonha, perde o respeito. E a minha Palmira perdeu a vergonha porque respeito já não o tinha. A França foi boa para nós mas deixou-a tolhida e deu-lha a volta ao miolo. Eu, a partir de certa altura, eu já nem queria que ela trabalhasse. Só que ela dizia-me que não podia largar as patroas. Se as coisas tivessem corrido como eu queria, ela tinha vindo com as pequenas e eu ficava por lá mais uns anitos. E convencê-la? Que não queria, que não queria, e que não vinha sem mim, lá tive eu de vir atrás das saias. À vontade... ? A vontade da gente não é a gente que a pode ditar, é lá no alto (olhando para cima) que tudo se escreve. A JORNALISTA vagamente incomodada, compõe uma madeixa muito estudadamente rebelde CORTA...! Muito bem. Excelente. A gente nem esperava tanto. ARNALDO vagamente desconsolado, prepara-se para desligar o material Então é para desamparar a loja? A JORNALISTA Como? ARNALDO disfarçando mal que se sente agastado Perguntava eu se é para desmontar o estaminé? FIRMINO A menina... a senhora não vai desfazer companhia sem merendar connosco. Uma caneca de morangueiro, sou eu que cuido, piso e boto na pipa. Um jambonzinho, sou eu que crio, mato e faço a cura... E outros senhores também, pois está claro, que se vê que são homens de sustento. ARNALDO Muito obrigado. A gente ainda tem muitas curvas pela frente e... A JORNALISTA frívola Ó Arnaldo, a gente não pode sair daqui sem provar as especialidades do senhor Firmino. Franzindo o sobrolho. E eu ainda queria roubar uns planos de corte da torre Eiffel do nosso amigo, uns aproximados da lareira com as panelas de ferro. PALMIRA fuzilando a jornalista com o olhar E umas papas no cu da preta também iam não é assim? Que a menina deve ser senhora de sustento... A JORNALISTA Perdão... ? Peço desculpa, Dona Palmira, estava com sentido no trabalho e...


PALMIRA feroz E o seu trabalho é roubar o retrato à concierge e ao maçon... E a este negrume que nem nas profundezas do inferno há-de ser mais negro...! A JORNALISTA hipócrita A Dona Palmira está preocupada com o que vai sair daqui, não é? Mas olhe que a gente nem lhe vê as pernas. Fazendo o gesto. Só aparece assim, da cintura para cima, não se vai insistir na sua enfermidade. E a senhora ainda está muito mimosa de cara. PALMIRA mais feroz ainda Ai mimosa, mimosa. Era o que me dava a vida, ter de ser mimosa além de entrevada. Mimosa é a vaca da televisão. FIRMINO o menos furioso que consegue Vamos, Palmira. Tu estás cansada. Eu trato da merenda e tu vais fazer uma sesta no teu quarto, porque... PALMIRA Qual sesta? Nem sexta, nem sábado... Então esta sirigaita e este par de jarros entram casa adentro e vida adentro, que uma pessoa até batatas tem de descascar para se ficar pobrezinho na fotografia e tu queres que eu vá dormir? A JORNALISTA atónita Dona Palmira, a nossa intenção não era essa. A gente só quer mostrar que os emigrantes foram e são gente de trabalho, gente que deu muito ao país e que o país nem sempre reconhece como... PALMIRA subitamente cheia de uma vitalidade leonina O país... Ai o país... O país chupou-nos as «peias» e agora chupa-nos os impostos. O Firmino, que gosta muito de agradar, porque, Deus me perdoe, sempre foi bem parecido e até as putas lhe deviam fazer desconto, tem sempre de dizer que é lá no alto, lá no alto que tudo se escreve. Mas alguém o vê na missa? Alguém o viu rezar por mim que lhe aparei tudo até me ver tolhida? Sabem o que vos digo: lá em cima mora o que a gente lá põe. A JORNALISTA sonsa Ó Dona Palmira, mas aqui o tem, ao seu lado, Dona Palmira. PALMIRA E a menina ao lado dele, que é o lado para onde caem os piropos... Ora ligue-me lá essa engenhoca que lhe quero cantar uma que a menina nunca ouviu. Pipo, que continuara a enrolar cabos e arrumar materiais, estaca. PIPO É para voltar a montar a tenda?


A JORNALISTA hesitante Não... quer dizer, não sei... espera aí. (Virando-se para Palmira.) Eu acho que já temos material mais que suficiente, mas não queria estar a... ARNALDO Censurar... censurar a senhora. Ouve lá, pá, não custa nada. Por mim... PIPO Por mim também. Firmino, irritadíssimo, retira-se. A JORNALISTA sonsa Olhe, os meus colegas estão a ser simpáticos. Até mais do que é costume. Piscando olho aos técnicos. Quando estiverem prontos a arrancar, digam. Arnaldo e Pipo montam o material em silêncio. Palmira endireita-se na cadeira e atira o xaile que lhe cobre as costas ao chão. ARNALDO Câmara pronta. A JORNALISTA Então vamos lá. Com bisturi e luvas de borracha que a senhora tem sangue na guelra, não é Dona Palmira? ARNALDO Está a andar. Dona Palmira, quando quiser, pode começar. PALMIRA Então vamos a tudo, que Deus é minha testemunha. Isto de ir para a França não é só por causa da miséria daquele tempo. Lá que havia miséria, havia. Mas a minha sogra tinha muita terra a fabricar e poucos braços, porque os meus beaux-frères já tinham todos ido a salto. Uma cambada de estroinas os homens daquela casa... Eu fiquei prenha antes do casamento. Já percebereis isso, não percebereis? E o meu pai, que era de gancho, não me quis mal pelo filho que eu trazia na barriga. Isso tinha solução. E teve, que a gente lá se casou antes de eu estar com barriga que não se pudesse disfarçar, e o Firmino que se livrasse de não dar o nó... O meu pai ia até ao inferno para lhe dar um tiro de caçadeira, se o Firmino pusesse o pezinho em ramo verde. Mas depois do casório, o homem não queria trela curta, estais a perceber? Tinha o fogo no rabo, o patife, até parece que só de pensar que ia ser pai ficou pior. Atão, il a foutu le camp. Foi-se. Fugiu-me a mim e à mãe. Deixou-me escrava em casa alheia. ARNALDO Mas depois a senhora foi ter com ele, passados uns anos? PALMIRA Fui, lá isso fui. Passados sete anos. Já o meu Salvador tinha a segunda classe feita. Mas o que me valeu não foi o amor que ele me tinha. Foi a cagaço que tinha à mãezinha dele, que deve estar a arder no caldeirão mais fundo do Satanás. O meu filho nasceu forte, mamou até aos quatro e botou corpo depressa. Nessa altura, já tinha força para o trabalho do campo e tino para cuidar dos animais.


E a minha sogra queria ficar-me com ele para fazer o que lhe desse na gana. Atão empandeirou-me, percebereis? Arranjou maneira de fazer saber ao Firmino, pelos irmãos, que era tempo de vir buscar a mulher. E eu, que nessa altura, já tinha os sinais desta minha doença, lá abalei daqui, com um chuto no cu e todos os conformes. Não fui a salto, fui de comboio. Sozinha, ceguinha e inocente de tudo, uma coisa sem jeito que eu morria de medo de me perder. A JORNALISTA com mel na voz Mas depois tudo se compôs, não foi assim Dona Palmira? Às vezes é preciso saber perdoar os erros da mocidade a quem nos quer bem na velhice. PALMIRA Os erros? Só se forem os meus. E uma pessoa não sabe perdoar a si mesma. Ou não é? JORNALISTA Não. Olhe, eu farto-me de perdoar a mim própria quando sei que errei, por exemplo. PALMIRA Então é porque não. Se perdoa, não errou. Fez mal aos outros, não fez mal a si. Pausa e suspiro. Quer que lhe diga as coisas como elas são? Eu nunca devia ter saído daqui e depois nunca devia ter voltado. É esquisito, não é? Mas é assim. Cada um sabe de si e isso não cabe na caixa da televisão, onde as coisas tanto aparecem como desaparecem. Onde é que já se viu alguém que fique lá dentro depois de a gente desligar o botão? Enquanto eu que aqui vê, vou ficando. Não tenho botão para desligar. Vontade não me tem faltado, Deus me perdoe que só ele tem perdão para dar. Assoando-se e limpando os cantos da boca a um lenço de homem amarrotado. Quando me apanhou em Paris, o meu Firmino, tratou logo de me pôr a render. Havia lá uma portuguesa que tinha tomado conta do boulot das poubelles de uma rua inteira. Uma rua... que digo eu?... várias ruas do quartier onde a gente morava. E precisava de muitas bonnes femmes para tratar do serviço, que se fazia muito cedo e sem barulho para não acordar os locataires. Também tinha agarrado o boulot dos escaliers, que era varrer, limpar o pó, de vez em quando raspar e dar cera. Havia muitas femmes de ménage a trabalhar para ela, que depois distribuía o fric como lhe apetecia e ainda lhe sobrava tempo. Enquanto a gente lixava o cabedal, que aquilo nos saía do corpo e do sono, a mulher ainda ganhava mais a vida a conduzir um táxi. E, se não tinha courses, lá dava uma voltinha ao quartier para ver se as moiras tinham o negócio nos conformes, que os franceses têm pouco apetite para bossar mas não brincam em serviço. Foi para esse destino que o meu Firmino me destinou. E ainda me arranjou maneira de me encher a barriga duas vezes, fora os abortos que depois eu já não segurava as sementes de tão derreada que andava. Silêncio. Firmino volta a entrar, de mãos nos bolsos. Não se sabe se ouviu ou não as palavras amargas de Palmira, mas age como se nada fosse. FIRMINO Então, sempre querem filmar a Torre Eiffel? Silêncio. FIRMINO É assim quase do meu tamanho. Por isso é difícil andar com ela dum lado para o outro. ARNALDO A gente já lá vai senhor Firmino...


FIRMINO E a merendinha está servida na nossa sala. Que a gente faz o dia a dia por aqui, mas sempre temos uma sala que se apresente. ARNALDO pouco à vontade A sua esposa estava a contar-nos como foi quando chegou a Paris e por aí. FIRMINO Pois, ela costuma queixar-se mais do que Cristo na cruz. E é verdade que a França, sobretudo lá nos princípios era uma dureza. Depois, as coisas lá fora foram ficando um bocadinho mais brandas... ARNALDO ligando a câmara Depois, diz o Senhor Firmino... Mas depois porque já podiam levar uma vida mais desafogada ou FIRMINO - a gente não foi para lá para levar uma vida desafogada. Tínhamos uma finalidade. Que era fazer um pezinho-de-meia... juntar uma maquia que fosse dando para construir isto aqui, e ainda sobrar um dinheirito para, em a gente sermos velhos, não pedirmos nem devermos nada a ninguém. Naaa... Tudo o que aqui está do pêlo nos saiu, isso é certo. Mas depois daquela barafunda com a estudantada e a gente das fábricas que os patrões não lhes cabia um feijão no cu, a vida já foi correndo mais de feição. ARNALDO O senhor quer dizer o Maio de 68, as barricadas, as porradas, as greves... FIRMINO Isso tudo. Aquilo ia sendo o fim do mundo em cuecas, com o país quase parado e a gente sem saber onde paravam as vozes. Mas nessa altura a Palmira ainda estava bem segura cá na terra. O certo é que os patrões piaram mais fininho a seguir àquela bagunça toda. As peias aumentaram e os congés também. E a procura dos portugueses também aumentou, que os franceses não estavam na disposição de dar o corpinho ao manifesto como a gente. Qualquer rapazola ou mulher feita que não tivesse medo ao trabalho arranjava boulot na hora. Quando a minha Palmira chegou a Paris, já a França era um osso menos duro de roer. Tudo mais facilitado: sair daqui, fazer vidinha lá, tratar das papeladas... ARNALDO curioso Então o Senhor Firmino acha que a revolta dos estudantes foi um bem? FIRMINO Um bem... um bem é quando a gente tira algum proveito, não é? Atão, sim, foi, para os pobres foi. Para quem se mata a trabalhar foi. ARNALDO Pois mas... já agora... nunca pensou... Olhando de relance para Palmira que torce e retorce o lenço com nervosismo. ... nunca pensaram, em voltar para cá, na revolução, em 74?


FIRMINO Olhe, amigo ARNALDO Arnaldo. Chamo-me Arnaldo... FIRMINO Olhe, amigo Arnaldo, quando o Salazar caiu da tripeça, em França toda a gente dizia, à boca pequena, claro, que a guerra da África ia acabar, que a gente ia poder voltar à terra e regularizar a situação militar, os como eu que saíram daqui sem a tropa feita. Veio o Catano, ficou tudo na mesma como a lesma. A mulher lá acabou por se juntar a mim e a gente começou a ter uns tostões de lado. Os cravos podiam ser muito cheirosos, mas voltar nessa altura era ver a nossa vida andar para trás. E até que ninguém cá nos queria. Queriam o nosso dinheirinho no banco, mas a nós não. A África foi aquela desgraça que se sabe, tudo dado aos pretos de mão beijada e os retornados a voltarem de mãos a abanar... ARNALDO Aqui a minha colega é filha de retornas... A JORNALISTA Pois... Mas era criança quando saí de Angola, ainda nem sequer à escola ia... ARNALDO Não interessa a idade. Tens pinta de retorna, ponto parágrafo. Quando vocês chegaram aos magotes, a lamuriarem-se muito da má sorte, aquilo foi um se te avias de furar na vida, ó querida. Chegar, ver e vencer. E a malta topava à légua, pelo andamento, que vocês não eram de cá. Enfim, não eram bem de cá. A JORNALISTA Só podes estar a gozar... Eu nem seis anos tinha. E vim directa para Valpaços onde viviam uns primos carnais da minha mãe. Com a roupinha que tínhamos no corpo e mais nada, coisa que tu nem podes imaginar o que seja. Não cheguei propriamente a conhecer o acampamento no aeroporto e a vida tipo refugiado em lobby de hotel, mas ARNALDO Ó patroa, não se zangue que essa história já tem barbas. E, no fundo, a gente tinha muita inveja do vosso super bronze e até da liamba... cala-te boca! Eu estava a falar do vosso ar decotado, descascado e dengoso, porra! Para o pessoal de cá, vocês eram como um bando de chulos e putas saídos da telenovela com cravo e canela, topas...? A JORNALISTA Lata não te falta...! E lábia também não. Nasceste num bairro da lata, por acaso? Cabrão... (Sorrindo, malévola.) Até pareces aqui a Dona Palmira entrevadinha e cheia de vontade de desabafar... ARNALDO Ui... Ui que ela ferra, a leoa. (Para Firmino.) Era só para responder ao senhor Firmino sobre aquilo da angola-é-nossa e da mão beijada. É que FIRMINO E acha bem entregar-se uma terra a quem não olha por ela como os nossos?


ARNALDO Os nossos... quais nossos? Os que se puseram daqui a bulir? FIRMINO Os nossos, atão, os que lá andaram a defender as terras dos ataques dos turras e os outros que lá estavam a tratar daquilo como se fosse deles ARNALDO Só que, deles deles, aquilo não era bem deles. E deixe-me que lhe diga, senhor Firmino: o destino dos que iam para lá onde o Senhor andou, não sorria tanto como sorria nas angolas. FIRMINO Cada um se fez à vida como pôde, o caso é esse. E nós sempre trouxemos uma retraitezinha, sempre temos casa que nos abrigue. Enquanto aqui os pais da menina... PALMIRA E ele a dar-lhe com a menina...! Ouve lá, ó meu salaud, a menina, no meu tempo, já podia ser avó. Achas que a vida não lhe corre de feição, à menina? Não tem ar de quem se priva, a menina... A JORNALISTA Dona Palmira, francamente, eu não lhe permi... os meus pais passaram por tempos bem difíceis. Foi tudo para recomeçar da estaca zero. PALMIRA Não digo que não. Mas os meus filhos, sabe a senhora, estão tão mal como nós estávamos. É um estar mal mais moderno, claro. Venha o diabo e escolha. Elas, agarradas ao telefone o dia inteiro, nem tempo para almoçar, nem dinheiro para se sustentarem sem a nossa ajuda. E o nosso Salvador, à espera que a fábrica feche. (Enxugando com o lenço os cantos da boca.) Olhe, depois, lá irá para Espanha, para os chantiers, que lá não faltam obras, como tem ido a rapaziada aqui das redondezas. A JORNALISTA Sempre é mais perto... PALMIRA E isso que tem? Isso que tem de bom? Ser longe é algum mal? (Rindo.) Se houvesse mal em ser longe, nunca ninguém tinha saído do sítio onde estava, e ainda andaríamos agarrados à macieira do paraíso como macacos, com a serpente a assobiar e Deus Pai a dar-nos cabo dos cornos. Não. O mal é ser sempre contra a nossa vontade, está a ver. Primeiro, fica-se agarrada à sogra a contra-gosto porque o marido ala, depois deixa-se o filho a quem não o fez porque já está em idade de pagar com o corpo, a seguir lá se vai quase de coração nas mãos porque o gajo quis pôr a render o bom corpo que eu ainda tinha e, por fim, volta-se à parvónia quando eu só de olhar para o céu desta terra me apetece ir para o inferno. Portanto, o mal é esse: nunca se faz o que se quer. Qual longe...? Quem me dera longe!!! A JORNALISTA dá um discreto sinal de partida a ARNALDO que, coça a cabeça, e resigna-se a começar a desmontar o material. Devagar, com muita má consciência. Como que em câmara lenta. Silêncio incómodo. FIRMINO e PALMIRA percebem que a equipa se prepara para abandonar o local. FIRMINO desolado


Atão nem uma tranchezinha do meu presunto querem provar? Nem a pinga das uvas que eu próprio piso. Até é pecado irem-se embora assim. Eu já acendo a lareira, está-se muito bem lá dentro. O lume até abre o apetite. PALMIRA Ai, o lume, o lume....! Fogo tens tu no rabo, meu corno! Deixa-te de falinhas mansas que és tão burro que nem sabes o que eu te podia pôr ao dependuro nessa cabeça tão dura. Tu achas mesmo que eles não têm presunto no supermercado e pinga de toda a parte do mundo e tanta comida que até enjoa só de olhar para as prateleiras? Mesmo na Rússia, com aquele frio todo, se faz vinho, ao que dizem no telejornal... FIRMINO Não tem o mesmo sabor. O meu não é feito a martelo. É purinho ePALMIRA É purinho e cheira ao enxofre da pipa que tresanda. Até serve para desentupir a canalização, lá isso. A JORNALISTA Sem ofensas, senhor Firmino. Está-se a fazer tarde e a sua esposa já não pode ver à frente. Fica para uma próxima. ARNALDO Ó pá, tem lá calma, Ivone. Não faças essa desfeita ao homem, que, à tua conta, foi tratado de corno e de outras coisas desagradáveis. PALMIRA Por mim, não façam cerimónia. Fico muito bem sozinha que foi sempre assim que estive. Vá, vão lá provar o jambon e o pinard, bonjour la chiasse. E passem muito bem. FIRMINO, com ar de quase súplica, arrasta a equipa de filmagem até à sua suposta cozinha, fora de cena. PALMIRA endireita-se na cadeira, faz avançá-la com as mãos crispadas sobre rodas, vai colocar-se frente à objectiva a câmara e fala. Desbragadamente. Como se estivesse perante o Juízo Final. PALMIRA Pobre corno. Tão corno que nem percebes que és corno quando mil vezes to venho dizendo. Vá-se lá entender de que és feito. Vá-se se lá compreender de que é feito um homem. Peito feito, isso sim, todos eles sabem inchar que nem perus. O pior é o resto. O recheio. Espantalhos. Achavas tu que eu ia ficar de freira na casa da tua mãe, enquanto tu andavas às putas lá nas traseiras dos chantiéres e nos foyéres e nesses lugares todos que cheiram a bicho homem e a tesão de mijo? Julgais que só vós tendes calor a subir-vos entre as pernas e vontade de morrer? Será que nem suspeitas do que foi a tua vida a tua verdadeira vida, de perfilhar os filhos que o teu pai me fez antes de bater a bota e que a tua mãe quis criar como se fossem dela? Salvador, foi o nome que lhe deste ao primeiro. Nem de propósito, Firmino. E depois, tu que me saltavas para a espinha como quem monta uma burra, a mim e a muitas outras burras que eu disso sei, nunca sequer te deste conta que eras maninho, seco como o galho de um carvalho fulminado, que desse teu corpo nem semente saía, por isso podias truca-truca à vontade do freguês. E para te dar duas filhas - que tu não te calavas com os filhos para a frente e o nosso futuro para trás - ainda tive de me arranjar com uns gajos de boa figura e dois dedos de testa, que não hesitassem em foder a Palmira porque quem é patrão pode roubar tudo e nada lhe pesa na consciência. No fundo, Firmino, no fundo, até fui tua amiga. Amiga e fiel, meu patife, a ponto de te dizer a verdade tantas vezes e de tal maneira que tu achas que eu sou louca. Pode haver maior amizade do que aquela que diz o pior sem magoar e faz o mal para evitar o pior?


Pode haver maior amiga que a Palmira, entrevada, que te abriu as pernas quando tu quiseste e ainda foi abrir as pernas a uns tantos outros para tu teres o que querias? E pode haver castigo mais justo do que eu estar para aqui entrevada, do que eu ser castigada para tu seres poupado, e poderes ficar de coração leve a colar fósforos para quantos Cristos-Reis e quantas Torres Eiffeis te crescerem no lugar da cornadura? E o que é mais incrível, Firmino, é que esta Palmira já te perdoou. A outra não. A outra morreu da raiva que te tinha. Mas esta, entrevada, esta que está para aqui a atravancar a tua vida só para que saibas que tens um motivo de desgosto, de rancor, de fastio, uma coisa que te faça sair da cama zangado com a vida, mas sair da cama para me tirar da cama, ESTA já te perdoou. (Limpando uma espécie de lágrima com o lenço sujo.) A sério. BLACK OUT fim


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