As mitologias na lixeira João Alves não é um pintor «naïf». Ao passar pelas Belas-Artes, precisou – segundo um percurso estruturalmente semelhante (salvaguardadas as óbvias diferenças de época e estilo) ao de um Picasso, com quem tem em comum a facilidade em desenhar e a rapidez em executar – de desaprender a cópia do visível a fim de ressuscitar a criança que trazia escondida em si e tornar-se «primitivo». Os quadros de João Alves não procuram reproduzir o real mas antes propor uma figuração simbólica desse real, conforme o modelo das iluminuras da Idade Média. Se quisermos atribuir-lhe uma filiação, João Alves situa-se, consciente e cientemente, na linhagem de Jerónimo Bosch e, mais perto de nós, James Ensor, ou ainda Jacob Lawrence. Dessa matriz conserva tanto a faceta moralista – um dos seus trípticos tem como título «aparição do mal», outro «homem dividido» – e a vertente paródica – a sua «selva» é simultaneamente uma homenagem e uma irrisão em relação àquelas que o Douanier Rousseau pintou – quando não carnavalesca – de «cada cobra seu veneno» à «dancemania», passando por «dia a dia» e «torre das profissões». Impossível distinguir o paraíso do inferno, o presente do passado – o painel central do «tríptico dos Poveiros» apresenta um fundo de colinas indefinidas e intemporais, quase reduzidas a vagas, enquanto os painéis laterais ostentam aglomerações de torres típicas da arquitectura urbana contemporânea – ou até mesmo o humano do animal: tanto no já citado tríptico como no quadro intitulado «reptiliano no arredas» aparecem homens-pássaros, providos de bicos. Na sua revisitação da história da pintura, o João também foi buscar alimento à iconografia surrealista, de Max Ernst a Victor Brauner, sem contudo deixar intervir no seu trabalho o «ditado do inconsciente». As suas telas são frequentemente superpovoadas – nada a ver todavia com Hans Jürgen Press ou Martin Handford – a ponto de vermos os corpos, como em «torre das profissões», interpenetrarem-se e atravessarem-se. A maior parte deles está nua: João Alves pinta um apocalipse que se prolonga no tempo desde a aparição do primeiro homem. Quando as figuras não são paródicas – «selva» (já mencionada), «roda da fortuna», «detonador mundis» ou «peixe roubado» (estes três últimos remetem directamente para as vinhetas medievas de Bosch) – e convivem em número suficientemente limitado para que o olho não se perca na tarefa de as detectar e detalhar, amiúde há uma construção simbólica para a qual as personagens se dirigem: a «cidadela» assemelha-se a um templo, tal como o edifício ao fundo de «hora do nó», os arcos da «passagem» formam uma porta ou um túnel luminoso. A personagem tem de enfrentar uma prova. Quando as figuras formam multidão, há um combate ou uma guerra em curso, que pode ter contornos orgíacos. O conjunto das composições de João Alves apresenta-se como uma actualização do «Livro dos Mortos» tal como podemos vê-lo desdobrar-se e cobrir as paredes dos túmulos egípcios. Reconstituem um além muito swedenborgiano, tão estranho quanto familiar – que corresponde muito precisamente ao intraduzível «unheimlich» freudiano –, onde criaturas antropomórficas – os nossos «irmãos» – circulam, perdidas. Monstros benevolentes – serpentes policéfalas, pavões gigantescos – ladeiam a estrada indicando-nos o caminho certo. Mas para tirar bom partido dos seus conselhos, seria preciso estarmos dentro do quadro e não a olhá-lo de fora. Saguenail, Fevereiro de 2018