Asa branca

ASA BRANCA Os filmes de Paradjanov funcionam como autênticos euforizantes, isto é, possuem aquele condão raro de trazer à tona uma pulsão de sintonia com o mundo.

Filmar confunde-se com um acto de amor, tomando por objectos as coisas e os seres que o prazer eleito de mostrar torna belos.

Cinema de resistência também, ao atirar-nos à cara a criação em flagrante delito. Talvez por isso nos pareça «natural» a recorrência de planos cuja acção permanece inacabada.

Quais os limites deste optimismo? Deus dar nozes a quem não tem dentes ou Deus dar dentes a quem não tem nozes?

Rejeitando a hipótese de uma adversidade à escala super-humana, Paradjanov coloca-nos nos bastidores desse «cenário» potencial para a aventura de cada sensibilidade que é o mundo. O ponto de vista dos carneiros é nesse sentido quase didáctico, bem como a juventude impenitente de Ashik Kerib e o devaneio grave e precoce de Sayat Nova.

Os olhos do outro lado do écran procuram os nossos com ostensivo despropósito e as crianças de Suram lavram a terra na nossa estéril e escura direcção.

A indistinção do tradicional e do pessoal confere ao discurso de Paradjanov um fôlego épico.

Aquilo a que o realizador chama cadência musical (trabalho na duração) corresponde à procura de um arrebatamento que faça partilhar os inéditos ditos pelo enquadramento. Essa mesma busca levao a substituir a palavra pelo canto, entre o princípio poético da bola de neve e o princípio alquímico dos vasos comunicantes.

Paradjanov propõe o estremecimento contra a vertigem, explicitando pelo cinema essa questão que obviamente lhe não é exclusiva: as leituras da sucessão.

A natureza alivia-se da carga trágica dividindo-a com os heróis (AS SOMBRAS DOS ANTEPASSADOS ESQUECIDOS), mas os heróis podem elevar-se a escudos contra a fatalidade (A LENDA DA FORTALEZA DE SURAM). Ao mascarar a vida alguém desmascara a morte.

Se a casa do homem for o mundo, ninguém ficará de móveis à porta.

R. G.