Au clair de la lune

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AU CLAIR DE LA LUNE À primeira vista, Trafic parece retomar e prosseguir Playtime: este último acabava numa rotunda que o engarrafamento transformava em "carrocel", Trafic acaba com um engarrafamento que faz com que já não se distingam os carros em movimento dos carros estacionados, sendo a Terra mostrada como um imenso parque de estacionamento. Por outro lado, certos gags parecem transitar de um filme para o outro: em Playtime, depois de quebrada a porta, o porteiro do restaurante continuava a segurar a maçaneta de uma porta inexistente; Trafic abre com um centro de exposições virtual onde as personagens são constantemente obrigadas a saltar por cima de invisíveis fios... E, no entanto, não é bem o caso: Trafic retoma efectivamente gags antigos, mas doravante trata-se de os desmontar e de os fazer falhar. Trafic é uma espécie de balanço e um ponto final na obra de Tati — Parade será um regresso, e uma reivindicação, mais do que uma interrogação, à fonte do palhaço-inspiradorr. Filme sobre o atraso, que se organiza em paralelo com a transmissão televisiva, em directo, da chegada à lua (símbolo de uma nova era, de um novo espaço e dos novos media), Trafic inclui, à medida que os vai encenando, a crítica dos gags e das referências cinematográficas que constituem a própria matéria do cinema. Nesse sentido, Trafic é porventura o último filme verdadeiramente "moderno" — isto é, antes da era "do vazio", a era pós-moderna. A NARRAÇÃO Encontra-se reduzida ao mínimo: um camião, que transporta uma viatura-protótipo destinada a um salão do automóvel na Holanda, acaba, após atrasos e avarias, por só chegar a seguir ao encerramento do evento. A guerra entre o velho e o "moderno" já estava presente em Mon Oncle, mas vai-se, de facto, apagando ao longo de Trafic: o camião defeituoso não é mostrado como uma "antiguidade" ao lado dos outros veículos do filme — todas as viaturas estão condenadas ao próximo ferro-velho, a um desses que pontuam o trajecto. O tema é o próprio percurso — a forma "passeio" representa para Deleuze um dos critérios constitutivos da "imagem-tempo" — que, de demora em demora, perde o seu sentido funcional para ganhar o de uma deambulação-convívio. Quanto ao objecto, trata-se obviamente do automóvel que, em vez de se antropomorfizar, acaba por adoptar, graças a um processo de mimetismo, a personalidade do seu condutor (cena dos limpa para-brisas). São antes os humanos que, por contacto, se mecanizam: gestos vazios — séries como "coçar o nariz" ou "bocejar" — postos em paralelo com as aberturas e fechos dos capots. Hulot apaga-se em Trafic, passa para segundo plano, pois o mundo inteiro parece ter-se "hulotizado", e cada ser se revela um Hulot em potência — desde o patrão da "Altra" que se perde no cenário de floresta de papelão, até ao polícia que, para bocejar, põe mãos ao ar como um prisioneiro — mas, mais profundamente, foi o velho mundo "hulótico" que cedeu lugar a uma tecnocracia ineficiente e automatizada onde Hulot e a sua inventividade já não cabem. OS GAGS E no entanto o filme não se declina sob o modo da saudade, todo ele se joga no desfasamento: o mundo mecânico está cheio de falhas. Depois das colisões em cadeia, os condutores sem veículo vivenciam um "fim do mundo". Assim, ao lado das fábricas robotizadas, das auto-estradas e dos parques de exposições, prosperam os negociantes em ferro-velho e os garagistas, personagens populares que mantêm um ritmo de quem ainda sabe viver — o tempo e poder gozá-lo são os verdadeiros desafios do progresso. O cómico — isto é, a capacidade de revelar o cómico, através do olhar, de Tati — não se situa mais de um lado do que do outro; está disseminado pelos dois universos, espalhado pela totalidade do filme. Não é virulento, apresenta-se como traço de humor (sendo esse o sal da vida) e, pela sua disseminação, não provoca o riso: o cãozinho branco de pêlo comprido observa a esfregona peluda que um empregado utiliza para dar lustro à chapa dum carro; não há insistência, o enquadramento é largo, logo o gag caracteriza-se acima de tudo pela discrição (estamos no universo de Playtime); mais tarde o mesmo cãozinho é substituído por um casaco de longos pêlos, quando um grupo de jovens prega uma partida à dona do bicho (estamos, desta vez, no universo satírico das brincadeiras infantis de Mon Oncle). Mas mesmo esse segundo plano é


imediatamente desmontado por Hulot em pessoa que descobre a substituição. Tal desmontagem é significativa de uma mudança de estatuto do cómico, que deixa de ser um instrumento de denúncia para se tornar uma forma de distanciação. O cómico representa a necessidade de não se ser vítima de engano, sem contudo se prescindir de uma postura de solidariedade. Forma de ternura, de sabedoria quase, o cómico ascende ao nível do simbólico: o gag da queda da trepadeira que descola da parede da casa, retomado da poda das pereiras em Mon Oncle, desagua no testemunho involuntário, por Hulot literalmente pendurado pelos pés, de uma cena de sedução mal sucedida — negativo da varanda de "Romeu e Julieta", num mundo "de pernas para o ar" (aliás, não vemos a cena tal como Hulot a vê —, Tati marca as pistas e deixa ao espectador o cuidado de efectuar o seu próprio trabalho de ginástica mental). O gag da multidão — neste caso de guarda-chuvas — que obriga Hulot, no fim do filme, a dar meia volta, personifica o acaso num universo onde, perdidas as metas, todos estamos condenados à errância. Este último gag já fora utilizado por Keaton em The Cameraman, inscrevendo-se na dialéctica Keatoniana da luta entre o indivíduo e a massa; convocado por Tati, muda de sentido — pois a massa humana foi substituída pela massa objectal dos carros... A MONTAGEM Em Trafic, o sentido não decorre linearmente, constrói-se aos poucos, por aproximações mas à distância, por acumulação — as acções e os planos funcionam por séries — e por contaminação. O "raccord" — fulcral na teoria eisensteiniana — cede lugar à reiteração, ao eco, tendo a disseminação substituído o contacto. A ordem é permutável dentro duma mesma série — série das avarias: do furo, da falta de gasolina, da embraiagem; série dos gestos dos condutores parados: a comichão no nariz, o bocejo, a fixidez que se traduz pelo desaparecimento dos reflexos... O que conta é a maneira como a teia é urdida: a primeira série continua com a retenção na alfândega e a amolgadela da chapa (embora a viatura-protótipo, transportada pelo camião, não estivesse a rolar — colisão sem contacto); na segunda intercalam-se os gestos de experimentação da abertura e do fecho das portas e dos capots, etc. Em Playtime, Tati tomava à letra a expressão "sociedade do espectáculo" e todas as janelas se transformavam em ecrãs que apenas revelavam o vazio da rotina privada; em Trafic, a exposição do salão do automóvel reproduz, entre quatro paredes, a acumulação dos parques de estacionamento, lá fora. O que falta é a natureza — árvores de papelão, cantos de pássaros gravados em banda magnética — e contudo a natureza não está longe: em mais uma cena simbólica, Hulot caminha, em busca de gasolina, leva um pequeno bidon na mão, quando se cruza com um condutor na mesma situação que avança em sentido contrário; segue-se uma hesitação, dado que a proveniência de cada caminhante invalida o objectivo do percurso do outro; recurso desesperado, o outro caminhante desata a correr pelos campos adiante, Hulot persegue-o; ambos acabam por chegar a uma improvável bomba de gasolina; moral da história: todas as direcções se equivalem, a capacidade de dominar o espaço (mesmo rodoviário) é uma ilusão. Corolário: o mesmo se pode dizer da capacidade de dominar o tempo — assim, apesar da sua chegada tardia, já depois do encerramento do salão, o condutor do veículo Altra é assediado de encomendas pelos clientes. Eu diria que Trafic, sob uma aparência indolente, se apresenta como um filme verdadeiramente metafísico. O espectador que acompanha a aventura de Hulot e dos seus comparsas é obrigado a abandonar as suas referências e expectativas pelo caminho e a "fazer gazeta" — basta um pouco de disponibilidade para reencontrar a frescura da visão... A cena mais forte é decerto aquela em que, tendo interrompido as tarefas de reparação para assistir, pela televisão, à chegada à lua dos primeiros astronautas, o motorista e o mecânico deambulam no meio do nevoeiro e imitam a gestualidade dos viajantes espaciais: saltos ao ralenti, nos quais leveza e peso se confundem. E se o progresso e as suas conquistas — a tão desejada lua! — desaguassem tão-somente na possibilidade de afrouxar? Saguenail


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