Axolotl

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AXOLOTL A obra de Olmi parece condenada ao mal-entendido que caracteriza os autores «malditos». A escolha das classes desfavorecidas — operários, camponeses, pobres, vagabundos — como referência social para expor a sua problemática valeu-lhe a etiqueta de «neo-realista». O constante questionamento da impenetrabilidade das vias do Senhor permitiu que o rotulassem de cineasta católico sem que a sua tese, porventura fortemente herética, tenha sido analisada: a santidade revela-se no âmbito de uma história individual e está votada ao anonimato; além disso, como a intervenção divina se manifesta através do acaso, a ascese está excluída. Tese paradoxal que não se pode exprimir sem recorrer ao humor, um humor negro fundamental que desequilibra toda a narrativa mas contudo não desagua no cómico. O cúmulo do mal-entendido aconteceu certamente com A ÁRVORE DOS TAMANCOS, apresentado como retrato naturalista de uma família de camponeses pobres com um destino sem surpresas, encontrando apesar de tudo a felicidade numa harmonia com a terra! Ora, o filme reconstituiu justamente uma partida — saída da quinta para uma viagem de lua-de-mel — e descrevia a pressão da intervenção divina que obrigava o jovem casal a renunciar à experiência privada do amor e da reprodução: após uma noite de núpcias no dormitório de um convento, os esposos recebiam logo pela manhã, sob forma de prenda irrecusável, um bebé órfão que tinham de adoptar... Por outro lado, a composição pictórica dos enquadramentos do filme foi muito elogiada, quando de facto, Olmi a utilizou para sublinhar, por contraste, o movimento irresistível — lentos travellings — que incompreensivelmente os conduzia ao estado de «graça» — como interpretar de outra maneira a «imaculada concepção final»? A LENDA DO SANTO BEBEDOR trouxe mais alguma luz a esta problemática e a esta estética e talvez até tenha permitido desfazer o mal-entendido — ou, pelo menos, tê-lo-ia permitido se o filme não tivesse passado despercebido. Primeiro, a questão do naturalismo — desta vez, Olmi escolheu um actor conhecido, Rudger Hauer, e atribuiu-lhe o papel do vagabundo —; depois, o problema da simplicidade da mensagem cristã: embora se trate efectivamente de uma parábola sobre a redenção, os meandros que o protagonista percorre impedem-no de devolver a oferenda que ele acaba por gastar em bebedeiras, claro, mas também em fornicação, jogo, etc. Com estas deambulações, o nosso marginal retoma contacto com a sociedade e retoma o fio da sua própria história, reencontrando milagrosamente, primeiro o amigo de infância, depois a mulher e por fim — talvez em sonhos — os pais. Por outras palavras, são os desvios — e os pecados — que tornam possível a redenção. A fé de Olmi é indiscutível, mas de uma perversidade retorcida que não deixa de lembrar Claudel.


Todavia a grande revelação deste filme prende-se com a capacidade de transformar os lugares onde foi filmado. Apesar da utilização de uma focal curta — que a priori deveria acentuar a presença do cenário — e do recurso a cenários reais, Olmi consegue captar o vazio dos espaços onde a personagem se desloca como num aquário — efeito decerto reforçado pela iluminação nocturna e pelo tratamento da cor em que o verde glauco é dominante. O Paris que a câmara de Olmi regista não corresponde a nenhum espaço geográfico real — é provável que eu tenha sido particularmente sensível a este aspecto, porque fui reconhecendo, bizarramente interligados pela montagem, os sítios da minha infância — como se uma câmara pudesse por si só ser «expressionista» e arrastar o real filmado para o domínio do onírico narrado. Retrospectivamente, a referência pictórica de A ÁRVORE DOS TAMANCOS, inspirado numa estética totalmente diferente, afigurou-se-me ser tão fabricada e artificial como o bas-fond de A LENDA DO SANTO BEBEDOR. Da mesma maneira que, no filme anterior, as paredes nuas do convento se opunham à lama da quinta, aqui, a igreja ensolarada contrasta com as salas escuras onde o protagonista passa as suas noites, assim como a ostentação imediata da estrutura de fábula está em conflito com o tratamento realista da acção principal: o acto de beber. É desta tensão que nasce a força do filme: por um lado, a repetição dos obstáculos — encontros — que o desviam da igreja — i. e. do último passo — funciona dum modo regular — estrutura anafórica — conferindo às outras acções, apresentadas segundo uma lógica da duração e tratadas de maneira «realista», um carácter metafórico; por outro, o trajecto de copo em copo situa a parábola numa existência objectivada de ebriedade. E o encadeamento das cenas reveste-se, para o espectador, da evidência dos sonhos em que os lugares comuns se tornam irreconhecíveis, em que o incrível parece natural, em que a indiscutível certeza dos gestos executados não dissimula a sua essência enigmática, atribuindo-lhes uma carga que só o despertar — aqui, a saída da sala escura — pode desvanecer. A graça para Olmi supõe um desapego — não necessariamente consciente, não necessariamente constante — em relação aos valores sociais que não do social, e esse desapego é vivido como um mal-estar: no extremo oposto da «náusea» sartriana. A graça em A LENDA DO SANTO BEBEDOR coincide com a morte — uma morte que nada tem de fúnebre, ao cabo duma vida que era apenas uma permanente ressaca — e desempenha um papel idêntico ao do próprio cinema, de rejeição do real imediato (imanente?) e de reconciliação com a memória. S.


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