BALADA DO FINITO E DO INFINITO A legenda inicial anuncia que o filme é inspirado numa canção do folclore irlandês e, de facto, todo o trabalho de Flaherty em Man of Aran (O Homem do Mar) se estrutura por agregações em blocos à volta de um elemento-refrão: o mar, verdadeiro dono e senhor dos indígenas, já que a terra se apresenta como pequena jangada, agreste e destituída de solo arável. Terra-madrasta que flutua no peito brutal de um pai dominador. Flaherty opta por uma focalização no tema único da sobrevivência, subdividindo-o em duas partes: a relação do homem (no sentido muito concreto do agregado familiar) com a terra e a sua relação com o oceano pois que em ambos colhe, a custo de desumanos esforços, o alimento e a luz. Da carapaça da terra, ou melhor, das brechas que se abrem entre as suas escamas rochosas, retira torrões (raros e preciosos como ocultos tesouros) de húmus, com os quais literalmente constrói os seus campos, em pontos altos da ilha, após as penosíssimas tarefas de quebrar as pedras e transportar, para os locais cimeiros, bem expostos e protegidos da rebentação marinha, o sargaço que serve de primeiro leito do terreno arável. Contado ninguém acreditaria, donde a força inexcedível das correspondentes imagens de labuta. Suponho que em nenhum, ou quase nenhum, recanto do planeta as batatas exigem tanto suor (e amor... lá chegaremos). Do oceano, retira o peixe (e de pequenino se aprende a pescá-lo, do alto da vertiginosa falésia, lançando à água, segundo um engenhoso sistema, o frágil fio que prende — também — os seres humanos àquelas escarpas) e retira óleo de tubarão que permite iluminar as rústicas habitações onde se abrigam as famílias de Aran. Para além do colossal labor a que estas actividades de subsistência o obrigam, o homem de Aran está ainda sujeito a constantes actividades de preservação dos seus instrumentos de trabalho, pois o mar, negro e feérico qual monstro imprevisível, arromba-lhe os barcos e rouba-lhe as redes (quando não lhe rouba a própria vida...) Este filme sonoro — tanto a banda musical como os barulhos "naturais" compõem uma atmosfera de som e fúria que quase agride o ouvido do espectador, habituado a meios menos hostis — vive de poucos mas comovedores diálogos porque todas as palavras proferidas (com aquele maravilhoso sotaque que faz do inglês uma língua transida de amor) pelas personagens de Flaherty são de ternura, calor e entre-ajuda, contrastando radicalmente com a violência das condições de vida. Julgo que as duas sequências em que a pequena família atravessa a ilha, sob um céu sumptuosamente nublado e imenso, e se encaminha para casa, depois de ter escapado ao pior, são capazes de fazer chorar as pedras da calçada. Man of Aran é, como já o era Nanook, um hino muito especial ao amor — amor à vida, amor aos companheiros de vida, sob o signo da ameaça dos elementos que faz dos humanos frágeis heróis. Como as primeiras imagens do filme claramente ilustram, aqueles filhos do planeta nasceram num berço agitado pelas forças da natureza — neste caso o Oceano Atlântico — e o seu "direito à vida" está significativamente longe de ser evidente. E não é por acaso que os animais domésticos com quem partilham a existência, apresentados ainda na primeira sequência, nos parecem bichos de presépio, em contemplação perante o milagre da vinda ao mundo de criaturas tão improváveis. Flaherty filma com um pormenor e um rigor extremo os gestos do trabalho e os quadros de vida onde ele decorre, e regista, com um lirismo sublime, comparável a um Turner que só tivesse preto e branco na paleta, os motivos do mar revolto. A extraordinária mobilidade da câmara, sobretudo em certos andamentos do filme que, de tão musical, se ouve com os ouvidos do espírito, traduz não só a instabilidade do espaço onde os homens existem como a instabilidade da sua existência à beira do abismo. Desta obra que só pode transtornar quem a vê, no bom sentido, fica-me inscrita na memória, como um brasão que contivesse a mais nobre síntese da beleza humana, o olhar daquela mulher de Aran, fito no mar, sempre, onde se conjuga a límpida inquietação de perder quem lhe é querido e a opaca inquietude que interroga o infinito. Regina Guimarães