Ben trovato

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BEM TROVATO Oliver Stone representa um fenómeno novo no cinema americano, não tanto pela politização do seu discurso no mínimo crítico em relação ao governo americano — posto que esta faceta tem uma longa tradição em Hollywood e, comparada com a extrema timidez do cinema político no resto do mundo, actua paradoxalmente como caução do sistema liberal —, mas pelo sucesso obtido junto do grande público, que julgamos revelador de uma função particular do cinema enquanto mass media. I. O EXORCISTA Oliver Stone aborda voluntariamente aquilo a que ele próprio chama os «traumas» da América, i.e. as suas derrotas — o Vietname (PLATOON), a guerrilha salvadorenha (SALVADOR) — e os seus escândalos — WALL STREET, o assassínio do Presidente Kennedy (JFK). Mais do que uma explicação — a explicação, quando aparece, queda-se por um nível muito primário: os fabricantes de armas precisavam da guerra do Vietname logo foram obrigados a eliminar Kennedy (?); ocasionalmente, a explicação denuncia a loucura ou a avidez de algumas personagens mas não o sistema do qual as mesmas garantem o funcionamento —, Stone propõe uma ilustração dos acontecimentos e dos comportamentos segundo um esquema maniqueísta bastante simples, de inspiração religiosa, de luta entre o bem e o mal — protagonizados pelos dois sargentos de PLATOON — em que o espectador americano é levado a admitir a ideia de «culpa» — o «trauma» só é curável se o «tabu» for ultrapassado e a origem verbalizada — e logo se sente «lavado» do crime de que algures foi cúmplice: o espectador fora enganado, tinham-lhe mentido (este processo é particularmente flagrante em JFK, pois o minucioso processo de reconstituição, que constrói o corpo propriamente dito do filme, oculta a ausência de resposta às enunciadas perguntas «quem?» e «porquê?»). Por outras palavras, a função destes filmes (a receita do seu sucesso) não é legível no desenvolvimento diegético do enredo mas no processo de afirmação da culpa e, simultaneamente, da designação de culpados — que são sempre peões, dos agentes homossexuais da CIA em JFK ao sargento de PLATOON. II. O IDEALISTA O discurso de Stone articula-se em torno da defesa de valores éticos cujo carácter absoluto parece dispensar critério análise: a honestidade — o protagonista de WALL STREET é condenado por tirar proveito de informações confidenciais, quando, desde o golpe de bolsa de Rotschild em 1815, é consabido que a única maneira de enriquecer através da especulação é justamente essa, doutro modo a Bolsa não passaria dum jogo de sorte, i. e. de lucro incerto — que se reduz ao respeito pela lei e não precisa de interrogar os fundamentos do sistema; a verdade — que em si não passa de uma especulação, de uma ficção, e Stone não procura os motivos que levam a opinião pública a contentar-se, a dado momento, com tal ou tal ficção — redutível à presunção legal; a regeneração, acima de tudo, que permite ao herói de BORN ON THE 4th OF JULY não ser rejeitado pelo sistema de que foi vítima. Ao afirmar que o sistema é capaz de revelar as suas próprias culpas, Stone tornase campeão do liberalismo, que é não apenas um sistema socio-político-económico mas também um sistema de pensamento, uma profissão de fé no triunfo da «justiça» — ou seja, neste caso, dos seus filmes. O inquérito de JFK caracteriza-se pela ausência total de qualquer dialéctica: embora as testemunhas sejam «duvidosas», nenhuma infirma a tese elaborada. A justiça em questão é ilustrada pelo confronto entre figuras carismáticas, ora brancas — JFK ou Garrison (mais lúcido no filme do que em 67/68) — ora pretas — Clay Shaw, arrogante, mentiroso, mas também coxo, homossexual e degenerado, talvez mesmo subliminarmente mestiço e sifilítico. Neste aspecto, Stone é o oposto de Samuel Fuller, cujo questionamento sobre a América e os seus valores se situa, à partida, em zonas de ambiguidade máxima, com personagens condenados pelas suas duvidosas motivações — o «renegado» em THE RUN OF THE ARROW ou o jornalista ambicioso em SHOCK CORRIDOR — e tenta equacionar não o problema da culpa mas a sua dissimulação — THE NAKED KISS (cf. o nosso artigo in A Grande Ilusão nº 12). Sem aprofundarmos o racismo latente na obra de Stone — os vietnamitas não têm voto na matéria em PLATOON, os cubanos e a máfia foram os assassinos


materiais de JFK, o protagonista incómodo e agressivo de TALK RADIO é judeu —, não podemos deixar de constatar a precariedade deste idealismo que não hesita em colocar no mesmo plano episódios imaginados (o índio da canção de J. Morrisson no começo de THE DOORS) e reconstituições (o concerto interrompido no mesmo filme) de tal forma que a verdade reclamada não passa de uma ficção «ad hoc» que se adapta às necessidades do discurso. III. A RECEITA Do ponto de vista formal, os filmes de Stone caracterizam-se pela introdução de uma montagem muito retalhada numa narratividade linear — ao contrário do que acontece, por exemplo, em LA GUERRE EST FINIE de Alain Resnais, os flashes que visualizam as hipóteses (JFK) ou antecipam os acontecimentos (THE DOORS) são confirmados pelas sequências posteriores; i. e., a ficção oculta-se enquanto ficção e revela-se como «verdade». As fitas desenrolam-se num universo fechado (a selva de PLATOON, o estúdio de TALK RADIO), ou pelo menos reduzido ao espaço de um ou dois protagonistas, em luta um contra o outro (PLATOON) ou contra um inimigo invisível (a audiência de TALK RADIO, os serviços secretos em JFK). O discurso constrói-se em torno de cenas emblemáticas — a «crucificação» do sargento em PLATOON, o combate entre os dois paralíticos de cadeira de rodas em BORN ON THE 4th JULY, o locutor perante as luzes da cidade em TALK RADIO, etc.; trata-se geralmente da cena central — o combate dos paralíticos na estrada deserta, situado entre a degradação na cidade-bordel mexicana e a regeneração no seio das associações de veteranos nos USA; o anúncio de não difusão do programa do protagonista na rede nacional em TALK RADIO; em JFK, o encontro em Washington, entre o inquérito e o processo. Os filmes obedecem assim a um esquema relativamente rígido e estruturam-se dentro de parâmetros tradicionais: o herói em luta contra forças que o ultrapassam é encarnado por um actor magnificado; o seu trajecto é ilustrado por cenas de «género», facilmente identificáveis e enxertadas na narrativa linear para criar momentos de «pathos» — o verme no mescal em BORN ON THE 4th OF JULY, o ritual satânico em THE DOORS, as cenas familiares em JFK... Stone pretende fazer-nos acreditar que o sistema liberal permite a alternativa; ora as soluções formais e narrativas, eficazmente realizadas aliás, são próprias do filme de acção ou do filme de inquérito tradicionais. Stone, que sabe que o discurso é estilizável — faz explicitamente referência a Júlio César em JFK —, opta pela estética realista apesar de conhecer os mecanismos de engodo e de manipulação de que ela tira partido. Ao exorcizar os demónios e os pecados da sua juventude — da juventude da sua geração —, Stone, sintomaticamente, não tira ilações quanto ao presente, quanto à repetição sistemática dos mesmos actos e comportamentos: ou será que a Guerra do Golfo é de todo em todo diferente da do Vietname exceptuando ao nível do desenlace? A História parte dos resultados para chegar às causas: O resultado condiciona o processo que o engendra? Esta era, aliás, a teoria defendida por Trotsky em «A moral deles e a nossa»... Stone é objectivamente o melhor defensor do sistema, elaborando um discurso agressivo — a má consciência do público não exclui um certo masoquismo — e, ao mesmo tempo, tranquilizador. Tal como o locutor de TALK RADIO, Stone incomoda mas, profundamente, faz um trabalho terapêutico que reforça a fé do público no sistema e nas suas bases ideológicas. Por outro lado, Stone tem consciência da função do espectáculo enquanto factor de descompressão do público — TALK RADIO e THE DOORS — e como arma de manipulação das convicções — o processo de JFK é encenado como um espectáculo. É como se o espectáculo não fosse também um elemento do sistema, como se não obedecesse às leis do mercado e da exploração — há muitas prostitutas que defendem a utilidade do papel que desempenham ao satisfazerem os recalcamentos sexuais dos clientes. Stone nunca aborda a questão da fabricação do mito dos Doors ou de Kennedy, nunca analisa a sua própria inserção na produção hollywoodiana e parece pouco interessado nas relações entre a verdade e as receitas de bilheteira. Stone ou como apagar os sentimentos de culpa. Ou como transformar uma derrota numa possibilidade de vitória. Ou o inesgotável fôlego da América. S.


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