Bovary ou serpieri

Page 1

BOVARY OU SERPIERI Existirá um laço ideal entre certas situações formais e uma dada temática ou será que uma associação primeira e aleatória molda as obras que vêm a seguir? Curiosamente, desde o HAMLET, as aparições de representações teatrais no seio de outro espectáculo parecem ligadas a uma encenação da problemática da traição. O exemplo paradigmático é porventura O PADRINHO III em que o espectáculo final de ópera junta os protagonistas da diegese e o «teatro no filme». Pessoalmente apontaria outro filme de referência que no meu entender habita um grande número de produções recentes e funciona como «padrão» em torno do qual essas obras gravitam — em última análise, pouco importa a veracidade desta referência para os autores, na medida em que se trata de processos em grande parte inconscientes e detectáveis numa perspectiva histórica do cinema —: SENTIMENTO, de L. Visconti, que consuma a ruptura do cineasta com a estética neo-realista e surge como primeira criação de factura americana (quanto mais não seja pela escolha de Farley Granger); filme aliás inimitável visto que, para marcar a sua mudança de estética, Visconti retoma ostensivamente o cinema num estado anterior da sua «gramática»: escolha do plano de conjunto ou de semi-conjunto (com exclusão do grande plano), pose «frontal» dos actores, etc. É também a este nível que se articula a abertura com a representação do «Trovador» filmada frontalmente. Mas a representação teatral é aqui claramente emblemática de um filme em que a traição passa insensivelmente do campo sociopolítico para o espaço individual da paixão amorosa. Voltámos a encontrar esta mesma construção no recente filme de Cronenberg, M. BUTTERFLY, em que a representação inicial é reiterada por uma «performance» final, na qual o protagonista passa para o palco. O contexto do filme é significativamente dominado por acontecimentos históricos — todavia o movimento de redução do «teatro do mundo» em relação ao teatro íntimo acentua-se; a revolução cultural chinesa ou o papel da embaixada francesa e do seu serviço de espionagem são nitidamente secundarizados no enredo —, e a intriga desenvolve-se a partir do mesmo jogo da ilusão amorosa construída contra todo e qualquer princípio de realidade, do mesmo processo de traição e degradação assumida — levado até ao sacrifício, à Genet — etc. M. BUTTERFLY é essencialmente uma «variação» sobre a estrutura delineada por SENTIMENTO com a componente da temática da identidade sexual que Visconti só viria a abordar nos seus filmes posteriores. Aparentemente, A IDADE DA INOCÊNCIA não teria nenhum ponto comum com estes filmes a não ser o pormenor formal de abrir com uma representação de ópera. No entanto, um exame mais atento revela-nos a presença de uma hierarquia estética semelhante, com a representação dos actores a ter de rivalizar com a fortíssima presença dos cenários e do guarda-roupa, com o jogo dos enquadramentos e da montagem a tornar-se quase aleatório, tão-só uma assinatura. É de resto nesse sentido que o filme é verdadeiramente académico: a profusão dos ângulos —


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.