branca Era uma vez. Uma vez duas. Uma vez duas pessoas. Um homem e uma mulher. O homem era um homem de negócios. Andava sempre por fora. A mulher ficava em casa e sentia um grande vazio. Por dentro. Ora bem, não sei ao certo a razão pela qual a mulher se aborrecia. Mas ouvi dizer que era porque queria ter um bébé e o bébé não vinha. Um dia, a mulher estava cortar cebola para fazer esturgido. As lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo. De tal maneira que mal via o que fazia. Então a faca falhou-lhe – ou falhou-lhe a mão – e a mulher cortou-se num dedo. A mulher fechou os olhos com muita força e formulou um desejo ardente: «Ai... dava tudo para ter uma menina branca como as camisinhas da cebola, de lábios vermelhos como o sangue e de olhos e cabelos pretos como o cabo desta faca». Nove meses depois, a mulher deu à luz essa menina. Infelizmente, não pôde gozar do prazer de ver crescer aquela filha. Porque, ao tempo que a Branca nascia, sua mãe morria, esvaída em sangue. ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------Sequência In 1 Branca está deitada na cama de pernas para o ar. Apesar da incómoda posição, trauteia uma canção sobre o fundo de música de dança emitido um super-tijolo quase do seu tamanho. CANÇÃO Minha mãe era maninha De tristeza se finava Pois enquanto eu não nascia Todo o dia ela cismava. Um dia estando a cortar Cebolas para o esturgido Distraiu-se a matutar Na ausência do marido E entre picar e picar As cebolas para ceia A faca lhe foi falhar… Fez um golpe junto à veia. Vendo seu sangue a correr Pediu ao deus da cozinha Se lhe podia valer Pois sentia-se sozinha Ó deus que me estás a ver Tu que fazes maravilhas Como a cebola a ferver Filha branca me darias Cabeleira farta e preta Como o cabo desta faca
Lábios vermelhos insurrecta Ágil como uma macaca Que bom seria olhar Para essa moça a crescer Mas dou comigo a pensar Que posso antes morrer ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------O pai de Branca gostava muito da filha mas não tinha grande jeito para crianças. Depois da morte da mulher, foi ficando cada vez mais longe, cada vez mais fora. Para que a filha não crescesse ao deus dará, confiou-a um robot que era uma espécie de duplo permanente da sua pessoa, o Pai Borg. Esse robot sabia fazer de tudo um pouco: mudar fraldas, aquecer biberões, fazer sopa de cenoura, desenriçar cabelos rebeldes, catar piolhos, fazer trancinhas e até falar com sotaque de bebé quando era preciso entreter a menina. Sequência In 2 Na penumbra do quarto, o Pai Borg canta a Branca uma canção de embalar. Sua voz é gravíssima, arrastada, assustadora. A cada verso, a luz do quarto muda. Branca, muito agitada, vira-se na cama como se tivesse insónias. Ou talvez um terrível pesadelo. CANÇÃO Branca é a minha amada (luz branca) Vermelho seu coração (luz vermelha) Verde se fica danada (luz verde) Cinzenta na escuridão (luz cinzenta) Amarelos são as ruas (luz amarela) Onde no escuro passeia (black-out) Mas de marfim são as luas (luz marfim) Laranja e laranja meia (luz laranja) Como duas violetas (luz violeta) Seus olhos saltam do chão (luz castanha ocre) Riscam caudas de cometa (luz branca) Pintam-nas cor de salmão (luz cor de rosa) No leito do rio dorme (black-out) Um peixinho de mil cores (luz irisada) Mas Branca dorme na cama (black-out) Sonhando com seus amores (luz irisada) Branca levanta-se e vai à janela, ensonada, como que sonâmbula. Mal põe os pés no chão. Queda-se uns instantes a fitar a lonjura. Depois, abraça o Pai Borg e chora. No quarto muda freneticamente de luz, como que acometido por um pranto psicadélico. ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Algum tempo depois, o homem de negócios casou com outra mulher, que era linda morrer. A Branca foi posta num infantário a tempo inteiro e a madrasta, que não era tão má como a pintavam, contratou uma empregada para não estragar as mãos a cortar cebola. Bruna – era o nome da madrasta – tinha um espelho pequenino que trazia sempre escondido no fundo da carteira. Era um espelho mais mágico do que todos os outros espelhos, porque não só reflectia a imagem de quem o mirava – o que já é muito – como sabia responder a perguntas difíceis. Por exemplo: «Espelho, espelho meu, quantas estrelas há no céu?». Ou: «Espelho, espelho meu por que é que se dorme melhor de pernas ao léu?» Mas Bruna nunca perguntava este género de coisas ao espelho. Ela só pensava em ser bonita para ser amada, talvez por o marido ter pouco vagar para amores. Dizem as más línguas que o espelho lhe dava conselhos de beleza muito úteis, do tipo máscaras de pepino para os olhos, marcas de lâminas para rapar os pêlos, etc. Branca, por seu lado, crescia à vista desarmada, com pele muito clara embora odiasse leite, com boca vermelha e arranhões nos joelhos, com olhos muito negros que pareciam enormes atrás dos óculos e cabelos pretos tão fartos que quase nunca os desenriçava. Sequência In 3 Branca deambula no quarto, lançando peças de roupa em todas as direcções como se não conseguisse encontrar a indumentária que pretende vestir. O Pai Borg, que a observa placidamente a um canto, começa de súbito a emitir sinais sonoros e luminosos. Branca estaca, coloca-se frente ao Pai Borg e fala para o ecrã onde se vão inscrevendo frases, numa língua desconhecida que a menina aparentemente domina. Branca responde alto e bom som, à medida que as frases desfilam. - WWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWW - Correu mal a geografia mas tive a melhor nota a matemática. - WWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWW - Ora, ora. Quando for viajar contigo aprendo geografia a ver o mundo. Directamente. Não preciso de decorar os nomes dos sítios porque vou estar mesmo nos sítios. - WWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWW - Sim, sim. A cantina está paga até Dezembro. Chiiiii!!! Que porcaria aquela comida. - WWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWWW - Não te preocupes. Já viste bem as minhas bochechas? Até amanhã, Papá. ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------Bruna, por seu lado, demasiado ocupada a imitar a Barbie, mal tinha tempo para olhar para a enteada: tanto quanto sei, não lhe conhecia a cor dos olhos, nem seria capaz de a reconhecer de costas. Até que um dia, em conversa com seu espelho, a bela madrasta teve uma revelação que lhe deu volta ao miolo. Tinha voltado do solário com um magnífico bronzeado cor de mel das montanhas e perguntou casualmente ao conselheiro: «Espelho, espelho meu, haverá garina mais gira do que eu?» E, em vez de lhe responder: «Não, tu és a mais gira da tua rua e arredores.», aquela coisa prateada e malcriada atirou-lhe é cara: «Ó rica, estás muito gira. Mas a tua enteada Branca, com aqueles olhos de corça assustada, aquela trunfa de cavalo tresmalhado, aquela boca de morango e aquela pele de chantilly é bué mais fixe do que tu.» Bruna, que passava a vida a cuidar-se e gastara anos de vida a não envelhecer, bufou de raiva e não tardou a conceber um plano infernal para se livrar de Branca.
Antes de mais tinha de cair nas boas graças da catraia que se tornara demasiado independente. Começou a levá-la e trazê-la de carro ao colégio, a convidá-la para a gelataria e a oferecer-lhe cortes de cabelo no estilista mais in e mais fora da cidade. Branca pasmou perante tão radical mudança de atitude mas, como era N preguiçosa, super gulosa e hiper vaidosa, não se deu ao trabalho de desconfiar – apenas curtiu a cena, tirando o melhor partido daquela inesperada simpatia. ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------Sequência In 4 Bruna, ou melhor, a presença dela, representada por um feixe de luz verde fluorescente, varre em todos os sentidos o quarto de Branca que se encontra totalmente deserto. O Pai Borg começa a piscar, dando mostras de pretender entrar em comunicação com a sua etérea esposa. O feixe verde estaca, envolvendo com sua luz o Pai Borg, estacionado a um canto. Segue-se uma troca de sinais de luminosos (fala de Bruna) e de sinais sonoros (fala de Borg) – num estranho código Morse, ultimam uma sibilina combinação. O feixe verde abandona de rompante o aposento de Branca. ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------Quando Branca já fora totalmente conquistada, Bruna marcou data e hora para executar o seu plano. Um certo sábado de manhã, o Pai Borg meteu a adolescente num veículo prateado sem condutor. O carro rolou até aos subúrbios mais cinzentos da cidade – que em tudo se assemelhavam a uma floresta de cimento e macadame – e abandonou a miúda numa pequena feira da ladra, a pretexto de ir meter gasolina. Branca não entrou em pânico porque o medo não era bem a sua vocação. No entanto, depois de ter vadiado horas e horas entre prédios sombrios, de ter percorrido pátios e terrenos ermos, começou a pensar onde iria passar a noite que caíra e lhe parecia cada vez mais escura e fria. De súbito, avistou uma entrada iluminada. Entrou, atravessou o vestíbulo e desatou a subir lanços e lanços de escadas. Galgou degraus e mais degraus, a fazer contas de cabeça para se distrair da fadiga. Pelas suas contas certas – Branca era uma barra a Matemática – já trepara no mínimo cento quarenta e cinco andares e uns dois mil e novecentos degraus, quando chegou a um patamar com um tecto muito mais baixo do que os outros, que dava para uma porta pequenina e entreaberta. Curvou-se para passar e entrou num apartamento mergulhado na penumbra. Quando os seus olhos enormes se habituaram ao escuro, apercebeu-se de que o lar onde penetrara lembrava uma casinha de bonecas, cheio de tralha por todos cantos. Reinava uma desordem demasiado grande para lhe ser agradável, quase não restava lugar para pousar os pés. Porém, Branca estava tão extenuada que tratou de empurrar uma pilha de papéis para um canto, de desencantar uma pilha de roupa suja e, enroscada como um gatinho, adormeceu profundamente. Tão profundamente dormia, sonhava e ronronava que não sentiu a palração dos sete homenzinhos de anorak verde choc que, lá pelas quatro da matina regressaram ruidosamente à sua casa perto do céu. E, todavia, ignorando a presença de Branca, nenhum deles se coibira de comer e beber ruidosamente, bater com a porta do frigorífico, acender todos o néon do apartamento, contar novas e anedotas em voz demasiado alta. A dada altura, um deles, de aspecto mais velho, rechonchudo e bonacheirão, soltou um grito. Aflito por não encontrar as mil trezentas e cinquenta e oito folhas folhas onde inscrevera os seus últimos cálculos, começara a passar o local a pente fino e dera de caras com a intrusa. Ao ouvirem o grito do companheiro, os outros anões foram acudir-lhe e, em círculo, rodearam a desconhecida que dormia a sono solto, pasmando perante a brancura da sua pele de leite, perante o negrume seus cabelos de noite sideral, perante o vermelho líquido de sua boca em forma de coração de andorinha.
A reacção dos homenzinhos verdes à presença da estranha estava longe de ser concordante. Aquele que primeiro lhe pusera os olhos em cima, Setanão de seu nome, ficara tão vidrado que só dizia, suspirando, «esta menina é minha». Anum, Adois e Atrês, que formavam sempre uma espécie de bloco, protestavam que não queriam fêmeas por perto e que era preciso, quanto antes, «atirar a monstra pela janela abaixo». Quatranão, um incorrigível sentimental, propunha que a congelassem e dela se servissem para «experiências científicas, especiais e espaciais». Cinconão dizia que não a tudo, argumentando que «o caso era grave», enquanto Nãoseinão, com sua voz tímida e roufenha, rabujava que «não sabia, não sabia». Após demorada altercação, Quatranão, um incorrigível sentimental, decidiu beliscar a criatura para ver se estava viva, anestesiada ou em estado de coma. Branca nem tugiu nem mugiu. Quatranão, mais incorrigível e sentimental do que nunca, descalçou-lhe as sapatilhas e fez-lhe cócegas nas plantas dos pés. Nada. «Deve ter morrido de morte rara e macaca», pensavam os seis outros, quase comovidos. Quatranão voltou à carga: arrancou dois tubinhos de borracha de seu escafandro cosmonáutico e enfiou-lhos pelos buracos do nariz acima. Aí a menina ergueu-se de sopetão, levou as mãos à garganta como se sentisse falta de ar e, ao ver aquele pequeno exército de homenzinhos esgazeados, soltou uma gargalhada cristalina. Os anões ficaram colados ao chão. Branca, bocejando, passou a mão pelas cabeças grisalhas das criaturas de verde vestidas e perguntou-lhes «onde é que tinham comprado aqueles anorakes tão fofinhos». Os anões, que eram altos costureiros e altos cozinheiros, embora péssimos donos de casa, explicaram-lhe, já semi-conquistados por aqueles olhos de eclipse total, que «faziam tudo aquilo de que precisavam e precisavam de tudo quanto faziam». «Uau, não é como a Bruna que só faz o que não é preciso, nem como o Pai Borg que nunca está onde é preciso», disse Branca com os seus botões. E para abreviar as apresentações porque ainda não dormira as dez horas a que estava habituada, contou-lhes a sua história antiga – romanceando um pouco, como é óbvio – e a sua aventura mais recente – inventando larguete e, sobretudo, insistindo na sua vontade de os conhecer melhor quando já tivesse dormido, comido e lavado os dentes. Os anões, que eram um bando de solteirões inveterados, acharam que aquela menina lhes tombava do céu para alegrar suas vidas de cosmo-trabalho. Fizeram-lhe um cházinho de pó de lua nova, taparam-na o melhor que puderam com um manto de cabeleira de cometa há pouco capturado, cantaram-lhe uma cançãozinha-de- caçar-meteoritos que infalivelmente acorda quem canta e adormece quem escuta. Branca roncou como uma pedra até altas horas da manhã seguinte. Quando despertou, os anões já tinham examinado o caso umas quantas vezes e tomado decisões super sensatas: Primeiro: Branca ficaria a viver com eles perto do céu. Para se manter incógnita no cosmos, passaria a chamar-se De Neve. Segundo: Branca ficaria fechada na casa perto do céu para não ser raptada, nem por extra-terrestes, nem por extra-celestes. Terceiro: Branca não ficaria ociosa porque a preguiça provoca o tédio. Ocuparia os seus dias a fazer somas, subtracções, multiplicações, divisões, raízes quadradas, equações e outras operações, para descarregar um pouco os anões que davam muitos erros nos seus cosmo-cálculos porque estavam a ficar velhos. Bem. Nos primeiros tempos, Branca achou que a sua nova vida ia ser o máximo. Cumpria à risca com os seus deveres de calculadora em carne e osso e quase não sentia saudades da terra firme. Os anões passavam longas horas nas suas cosmo-escavações e, quando voltavam para casa carregados de micro-pedaços de minério – a que davam o estranho nome de pedras filosofantes –, ficavam embevecidos com os metros quadrados de papel que Branca enchera com algarismos e signos. Para que a sua protegida não perdesse completamente a ligação à terra, tinham instalado uma espécie de jardim no alto terraço que lhes servia de pista de descolagem e aterragem. Todas as tardes, ao lusco-fusco, tratavam das plantas com esmeros e carinhos pouco banais e obrigavam Branca a tratar das suas irmãs para descansar os neurónios.
Porém, Branca não tardou a cansar-se daquela rotina e de tanta solidão. Instalava-se tempos infinitos frente à televisão, semi-adormecida. Tornara-se campeã de zapping e fã dos programas de venda televisiva que incluíam concursos completamente estúpidos mas muito aliciantes. Os anões não viam essa mudança com bons olhos… No entanto, estavam pouco habituados a ser pais e tinham medo de a perder. Então, depois de consultarem cardápios e ciber-especialistas, decidiram pôr tudo na conta da chamada «crise da adolescência». Como os anões da sua espécie eram velhos à nascença, ignoravam o que «adolescência» queria dizer, mas achavam que era uma palavra suficientemente longa para ser tranquilizadora. O que não impedia certos incidentes e bastantes percalços… Um dia, por exemplo, fascinada por um anúncio bué de giro, Branca tele-encomendou um kit raio depilador que não tardou a ser entregue no domicílio dos anões. Naquela casa rente ao firmamento, os pacotes postais não eram entregues por carteiros – eles caíam literalmente do céu aos trambolhões, coisa que muito divertia a miúda. Empunhando o seu novo gadget, Branca iniciou a sessão de depilação. Todavia, a engenhoca era demasiado eficaz para ser manipulada por menores de 18 anos e desatou a perseguir Branca pelos quatro cantos do apartamento. Vencida pela maquineta infernal, Branca ficou sem um pelo para amostra, ou seja: careca dos pés à cabeça. Os anões, desoladíssimos, consolaram-se e consolaram-na dizendo que a cabeleira não tardaria a voltar a crescer, farta e negra, graças a um tratamento de vitaminas de lua cheia. Outra vez, Branca, que se achava sempre gordíssima embora fosse filiforme, deixou-se seduzir por uma cinta hiper-adelgaçante. Na sequência da infeliz colocação da dita cinta, objecto estrangulante e assassino, os anões foram encontrá-la inanimada ao pé do espelho. Totalmente desidratada, Branca foi submetida a uma rígida medicação à base de água de chuva de Março-Abril. Mas a verdade é que se viram gregos para conseguir que a garota recuperasse e o Setanão quase morria de desgosto e inquietação. Convalescente porém ainda um tanto fraquinha, Branca voltara ao seu quotidiano de teledependência aguda. Horas e horas perdidas frente ao ecrã do apartamento perto do céu, a menina já quase não arredava do sofá e os seus protectores não ousavam contrariá-la, temendo que ela tivesse uma recaída ou se vingasse ficando ainda mais anoréxica do que já era. Desleixava os cálculos astronómicos e as plantas do terraço que, à hora do poente, se queixavam amargamente, uivando como cachorrinhos abandonados. As próprias estrelas, que outrora Branca contava com zelo de contabilista, pareciam já não brilhar com fulgor bastante para que ela se dignasse olhá-las. Uma bela tarde de Verão, entre dois reclames para dentes mais fortes que os dos elefantes, as ondas maléficas da televisão mais uma vez levaram Branca a cair numa perigosa tentação. ATENÇÃO PLANETA DANÇANTE! A HORA É VOSSA! NUNCA JAMAIS EM TEMPO ALGUM UMA BEBIDA GARANTIU, COMO ESTA ASSEGURA, DUZENTAS HORAS DE ENERGIA. DUZENTAS HORAS A ABANAR A CABEÇA AO SOM DA VOSSA MÚSICA INTERIOR! DUZENTAS HORAS A ABANAR O CAPACETE AO RITMO DA MÚSICA DAS ESFERAS. VIOLETA, QUAL A DÚVIDA? ESMERALDA, POR QUE ESPERAS? ROSA, SALTA DA CADEIRA! BRANCA, FAZ-TE À VIDA, FAZ-TE À PISTA! Branca, embora zonza, sentiu que aquele apelo lhe era pessoalmente dirigido. É INFINITAMENTE SIMPLES. ESCOLHA ENTRE DUAS LATAS RIGOROSAMENTE IGUAIS E TALVEZ A SORTE LHE SORRIA. SEM DESPESAS DE ENVIO, NEM COMPROMISSOS DE COMPRA. NÃO TEM NADA A PERDER E TUDO A GANHAR. TELE-EXPEDIÇÃO IMEDIATO! EFEITO INSTANTÂNEO! Branca bateu o código de compra do teclado da sua consola e logo do céu tombaram duas latas idênticas. Após uns segundos de hesitação, decidiu-se pela lata que caíra à sua esquerda. Arrancou a cápsula e bebeu o conteúdo de um só trago. Sabia a groselha e a costeletas de borrego com molho de hortelã… Humm! Estava Branca a tentar deslindar qual o outro sabor que julgava distinguir na bebida, um travo agridoce muito ligeiro, quando uma fortíssima tontura a deitou por terra.
Sem vida, Branca jazia. Branca como a cal, como a lua, como as camisinhas das cebolas, como a neve dos cimos, como a clara de um ovo estrelado, como um lençol muito bem lavado. Horas mais tarde, os anões depararam-se com o triste espectáculo. Em vão tentaram insuflar vida nas narinas e na boca da incauta menina. Nem respiração boca a boca, nem massagem cardíaca, nem um bom par de bofetadas, nem mesmo as milhentas mezinhas que os cosmo-mineiros haviam recolhido por todo espaço sideral trouxeram Branca ao estado a que chamamos vida. E, no entanto, ela parecia menos do que desmaiada ou esvaída. Parecia tão-só profundamente adormecida. Talvez por isso mesmo, os anões não conseguiam fazer-se à ideia de enterrar a bela Branca. Decidiram pois colocá-la num caixão transparente para poderem continuar a vê-la realmente e não apenas a recordá-la. Passaram anos e anos. Em honra de Branca, os inconsoláveis homenzinhos – que envelheciam a olhos vistos – nunca deixaram de regar os vasos do terraço perto do céu e perdiam tempos infinitos a contemplar as faces rosadas da menina sem vida. As expedições e as explorações espaciais já não os entusiasmavam como dantes, mas obrigavam-se ainda assim a recolher tesouros em tudo quanto era astro e asteróide para completar o enxoval de Branca que tinham de há muito começado. Até que, numa certa tarde de Verão, um certo rapaz de seu nome Príncipe que se especializara em escalada urbana – isto é, em trepar a tudo o que se lhe apresentasse pela frente (mesmo prédios de mais de 300 andares…) a fim de fazer sempre o caminho mais directo em um ponto A e um ponto B – esse rapaz Príncipe, dizia eu, descobriu o caixão transparente de Branca no terraço da alta morada dos sete anões. A princípio, Príncipe pensava que estava a ser vítima de uma alucinação. Esfregou os olhos várias vezes seguidas e disse para consigo: «A escalada do edifício foi particularmente perigosa e extenuante, tendo em conta a altura e a escassez de pontos de apoio. Devo estar com falta de água e falta de açúcar.» Bebeu um golo, trincou uma barra de chocolate e rendeu-se à evidência: a visão que o deixava tão encantado não era ilusão, nem produto da sua imaginação. Príncipe concluiu que mais uma vez a sorte o bafejara. Olhou em seu redor, decidiu arriscar uma festinha na ponta de nariz de Branca e logo o seu coração pulou dentro do peito. Depois, um tanto a medo, acariciou-lhe os cabelos pretos, enriçados e fartos. Uma descarga eléctrica percorreu-lhe a espinha. Por último, após um demorado momento de contemplação, não resistiu a pousar os seus lábios na fria boca da menina. E assim teria ficado a vida inteira se algo de extraordinário não tivesse sucedido – mal Príncipe colou os seus lábios aos dela, Branca abriu os olhos, sorriu como se fora ao cabo de uma noite merecidamente bem dormida e perguntou: «Onde estou?». O desconhecido respondeu-lhe, um tanto estupidamente é certo, mas o seu espanto era enorme: «Não sei. Estás nos meus braços. Achei-te morta e agora vives.» A pouco e pouco, Branca foi-se recordando do lugar e dos homenzinhos que a haviam recolhido. De resto, eles não tardaram a regressar a casa. Sua alegria foi tal que ainda estamos para saber como é que aqueles sete pequenos corações resistiram ao choque. E foi festa de arromba pela noite fora. No dia seguinte, montada às cavalitas do seu Príncipe, Branca partiu em busca de escaladas e descidas vertiginosas, prometendo aos sete anões nunca notícias e visitas regulares. Cada vez que Branca volta traz ao colo um novo príncipe ou uma princezinha. Cada anão se tornará padrinho de um filho seu e tudo fará para que nada lhe falte. Afinal para que serviriam os sacos e sacos de cosmo-tesouros que durante anos tinham acumulado? Nunca mais se soube de Bruna. Julga-se que terá emigrado com o Pai Borg para a Suíça que é o país dos contos de fadas e das clínicas especializadas em tratamentos estéticos. Seja como for, Branca a ninguém quer mal. Quando a sua negra cabeleira se cobrir de brancas, ela terá muito muito que contar aos seus muitos muitos netos.