BUCÓLICAS O filme de Rouquier chega-nos com uma auréola de "cinema-verdade" que se vem a revelar bem mais ideológica do que a propaganda legível numa grande parte da produção documental soviética e norte-americana. Farrebique é suposto mostrar, pela primeira vez, os camponeses nos seus ritmos quotidianos e sazonais, nos seus sonhos e nas suas preocupações materialistas, com os seus defeitos e as suas qualidades... Ora não é bem disso que se trata. Rouquier pretende-se discípulo de Flaherty mas escamoteia a visibilidade do discurso — tradicionalmente inscrito no comentário off ou na estrutura dramática da montagem —: os efeitos especiais são, na aparência, estritamente líricos (a eclosão dos rebentos em velocidade acelerada). E no entanto todo o filme se constrói como um discurso: 1 A "não-indiferente" natureza O conjunto do filme, cujo subtítulo é "As quatro estações" assenta num paralelismo entre aquela quinta e os seus habitantes (elementos "humanos") e os ciclos naturais: desabrochar do amor e desabrochar das flores — ou mesmo, ao microscópio, subida da seiva —; promessa dos frutos e nascimento da criança, queda das folhas e morte do avô. Estamos perante a mais antiga metáfora do mundo, só que ela contamina as sequências de carácter propriamente biográfico: a expansão da quinta obedece também ela, a uma tendência natural, exactamente como a dispersão da descendência, e logo, por extensão, a propriedade e o sistema de herança, ou até a desconfiança em relação ao progresso tecnológico. O discurso de Rouquier é anti-rousseauista, o seu hino à natureza parece inseparável dos valores conservadores da transmissão do património. 2 A comunidade autárcica A quinta de Farrebique é manifestamente próspera: toda a espécie de animais de criação — cavalos, vacas, galinhas, gansos, porcos, etc. — constam do efectivo, todas as culturas — cereais, frutos, floresta, pastos, vinhas — se praticam... A quinta surge como uma verdadeira sinédoque do mundo e a humanidade é representada por aquela família da qual cada membro aparece individualizado, tanto do ponto de vista do temperamento como dos sonhos — até os dois únicos "estranhos" visíveis (o vizinho e a filha) acabam por integrar o círculo familiar. Vemo-los exercer toda a espécie de actividades: alimentar os animais, lavrar, semear, amassar o pão, etc. Curiosamente, o filme é absolutamente mudo no que diz respeito às relações socio- económicas que a família mantém forçosamente com o resto da comunidade: contratação de operários agrícolas, venda dos produtos, etc. Todo o filme fábrica, por omissão, uma imagem de autarcia e auto-suficiência. 3 Um fragmento de eternidade Há ainda outra omissão gritante: o filme foi rodado em 1946, logo a seguir à guerra, numa época em que as "restrições" e o mercado negro dominavam o panorama económico; ora, a harmonia "natural" desta vida camponesa apresenta- se como um facto "trans-histórico". A guerra, ou pelo menos algum rasto do terrível conflito, parece nunca ter atingido a quinta. Estamos pois perante aquilo que Barthes analisará como o "mito", na eternidade de uma natureza benevolente. O discurso de Rouquier opõe-se, no fundo, ao de Dovjenko, por exemplo: enquanto o cineasta ucraniano só estabelecia um paralelo entre a vida humana e os ciclos naturais para rejeitar a assimilação da primeira aos segundos e propor uma radical alteração, uma reinvenção da natureza — a fim de a servir, mas também de a fazer servir os homens —,