Buraco

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BURACO O cenário é um cone negro e truncado – feito de flanela preta – em cuja base se encontram quatro personagens, duas do sexo feminino, duas do sexo masculino. Em redor desse quarteto, instalar-se-ão os espectadores em círculo. Quando a peça começa, as quatro personagens estão adormecidas sobre um montículo de cascalho. Toda a luz, ténue e cinzenta, provém do topo truncado do cone. Um ensurdecedor barulho de bombardeamento aéreo desperta os actores e sacode os espectadores. EVA choraminga, fungando abundantemente. VERA, inquieta, atrai EVA a si e aperta-a contra o peito até quase cortar a respiração de ambas. VAZ faz menção de acender uma beata. VERA lança-lhe um olhar de fulminante reprovação. Muito lentamente, VAZ guarda a beata no bolso. Segundo bombardeamento seguido de um longo silêncio que é rompido pelo assobio de VAIVAI. Reconhecemos uma velha canção de embalar. VAZ depois de se assoar ruidosamente Apetece-me... Apetece-me... Apetece-me língua picante com ervilhas... Pausa carregada de silêncio. VAZ fechando os olhos e mimando Apetece-me ler o jornal na esplanada. Escolher um par de peúgas no estendal de uma cigana muito bonita. Caminhar debaixo de árvores que gotejam depois da chuva. Saltar da cama muito cedo e julgar que o sol nasceu só para mim. VAIVAI abana a cabeça imitando o som de um cavalo, como que para afastar maus pensamentos. EVA suplicante Ó mãe, ainda tens aquela bolinha de pastilha elástica que eu te pedi para embrulhares e guardares no fundo do saco? VERA com firmeza Tenho mas não ta dou. Faz-te mal ao estômago mascar horas a fio. Combinámos que só mesmo em caso de emergência. VAZ por puro espírito de contradição E a senhora quer maior emergência do que choverem bombas a cem metros? Bem, claro que as bombas podem cair a cinquenta metros. Ou ainda mais perto. VAIVAI conciliador As bombas passaram a fazer parte da... da normalidade. Caem como aguaceiros de Primavera. (Erguendo-se e espreguiçando-se) E devo dizer que é difícil aprender a dormir às prestações. Ai... eu não nasci para ser gato. Nasci para ser tigre com sono de tigre. Longa sesta de tigre que só se interrompe para caçar e comer. Ou pelo prazer de fazer suar a presa... Também é encantador pôr a presa a tremer como varas verdes e a suar em bica. A correr e a respirar para além dos seus limites até desejar apenas ser devorada e que tudo acabe.


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