Caderno do amor excluso int

Page 1

depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 PĂĄgina 1

regina guimarĂŁes

caderno do amor excluso Setembro 2010-maio 2011


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 2

CINCO

1 Sentemo-nos à sombra de um livro. Ou melhor: dos seus ramos. Ou melhor: das suas folhas. Ou antes: das suas nervuras. 2 Certos livros exalam um cheiro asfixiante a papel velho que convoca fantasmas de fogueira.

3 O teu perfil apunhalado, dizes tu. Os teus olhos desorientando-me, digo eu. E os beijos na testa tão eternos. 4 As palavras eram cabras sorvendo a água dos versos abruptos. 5 Uma escrita de chuva ininterrupta dita o dever de interromper a chuva. De interromper-se.

6 Cavalguemos alegres as tristezas que nos têm transportado até ao ponto de partida.

2


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 3

O SENTIDO DA INOPORTUNIDADE

Sucessiva e simultaneamente vestida e despida sonhada e caída do berço agarrada à tábua e sorvida pela vaga. Ao sol declinante de outra escrita e já no vigor da sombra, o amor troca de papéis mas o amante faz de amante. E a que ponto?


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 4

Empurravas a porta que parecia fechada mas estava apenas e há muito encostada ao coração da casa.

Diz-se que em certas noites as portas ganham autonomia e batem como asas pesadas evocando os tempos da casa voadora e da casa assombrada por destinos imediatos.

Diz-se que os corações se descarnam de tão roídos e chupados até serem tão-só duros caroços. Diz-se que os seus olhos de amêndoa de bom grado se juntariam à terra em noites de alvo estendal em noites de vendaval arrombando a porta aberta de uma eterna primavera.

4


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 5

Numa fracção de céu inacabado e a terra sendo nada sobre nada, sopraste o vidro fosco da manhã

talvez à sombra oficinal dos olhos talvez na rouca penumbra de um bom bocado de boca com a deusa adeus arrastando longo o seu manto de fogo-fátuo.

Disseste sem cautelas de ironia a felicidade de ser intruso e que onde houver sujeito existe abuso. Ao que eu te respondia um pouco a medo o prazer indefeso de haver mais mundos desfalecendo em mim. Nessa fracção de céu as ideias todo terreno puderam madrugar e fazer-se à estrada.

5


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 6

Uma mulher de outro tempo carregando um fardo na cabeça põe-se em marcha.

Ela parece imitar o que foi sendo e certamente vinda de outra vida retorna a essa vida anterior.

Ela pisa com firmeza a formosura da sua própria barriga como se o peso do corpo lhe fosse agora indolor.

O seu fardo contudo o seu fardo é uma massa que se transforma à vista de todos quantos cruza – coisa enorme e disforme capaz de afugentar os pássaros e de atrair os insectos capaz de obrigar também o olhar a desviar-se. Ela não fende o ar pois que arrasta consigo as traseiras do cenário.

Toda a planura do caminho lhe pertence plenamente: adereços poeirentos, cintos, chicotes e xailes e lenços recém bordados.

6


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Pรกgina 7

Os monstros que bocejam os monstros que adejam os monstros que rastejam fazem parte da figura cuspida e espezinhada por obra e graรงa sua.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 8

CORPULÊNCIA

na prisão dos pensamentos entre as sombras de cativos e a luz que nos deforma

há uma nesga de céu e uma conversa de lume que teima em não se apagar e há ideias que se agarram à escrita das labaredas lambendo formas de corpo

tudo o que é vivo está morto obra de lenha e de fogo brasa chocando na cinza até que enfim se indistinga o fim de suas origens e o meio que nos divide

não se queima quem não toca não a chama mas a acha

sem flor, sem fruto, sem folha sem segredos de raiz

8


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 9

tes arbres fluides tels des coulées d'encre cherchant la nuit de Chine qui loge au fond des yeux humides

tes arbres dormant debout ou bien couchés sur un torrent vertical tes arbres comme des rappels du ciel à l'envers de l'endroit tes arbres offre-les-moi car je me suis étendue entendue pour mieux les voir

et pour que tu me prennes par la main un certain soir intoxiqué de mille matins


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 10

estou sentada entre dois sonhos: seguro na mão esquerda um bastidor e com os dedos da direita uma longuíssima agulha de bordar. e bordo.

em vez de linha vou arrancando cabelos ora brancos ora pretos e é-me difícil enfiá-los no buraco quase invisível. os arabescos que preencho ponto após ponto desajeitadamente não param de crescer.

será que vão transbordar, estender-se dançantes para além do círculo do bastidor?

certa de que vou ficar careca choro sobre o meu trabalho e penso que pior do que a tristeza é não poder acordar nem adormecer.

10


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 11

escrever mas só com as mãos em tudo quanto tocarem e sujas sejam as mãos por daí não se lavarem

escrever com mãos incansáveis de só poder ficar só na companhia dos seres imprimir pó sobre pó imprimir pele sobre pele até não mais entenderes o que tu mesma afagaste o que tu própria apagaste

como se tudo riscasses rascunhasses borratasses de arabesco em garatuja gralha de muitas maneiras

pois mão que ousou ser usada a outra mão tudo entrega pois mão que ousou ser negada excede-se onde se basta

11


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 12

FAÇANHA

não vês o que agora eu vejo, amor? vejo o mundo transformado em desfile de silhuetas a recortar com cautela pelo bordo picotado quando as lágrimas me sobem das profundezas do ventre ferindo o canto do olho como pequenos punhais. fecho os olhos, lá estão eles, os vultos a desfilar... são os mesmos mas são mais: crianças, casas, carroças, almocreves, meretrizes, alcovas, alcoviteiras, cabeleiras infelizes e trouxas de lavadeiras. moram nas rugas, nas pregas, abrem ruas na cabeça, caminham sempre depressa, trazem espingardas, sacholas, alfaias do mundo antigo; respiram dentro de mim, lançam injúrias gritando no fundo do meu ouvido.

12


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 13

estás a pensar o que eu penso, meu amor? até onde rolará, rebolará a soberba a toda a prova do cavaleiro caído? as avós imaginosas e as avós imaginárias falavam do que nos cai na desgraça ou por traição mas nunca passa do chão. então façamos amor de cada queda mortal uma vénia irreverente deslizando sem temor até onde a terra beija até onde a terra ferra até onde a terra ampara até onde não se pára.

façamos cama de folhas e também cama de pregos; façamos cama nos olhos, cama de cheiro e de ouvido, de poros, pêlos, papilas, de sovacos, de mamilos, cama de toda a palavra solo de solo de solo.

13


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 14

andei perdida na floresta dos estames e trago pólen colado à barriga quem me liberta de ser borboleta antiga entre paredes ou na caixa de alfinetes? se voei contra natura se cresci contra cultura ao invés do que não dura e do que não diz respeito foi para levar a peito o que me fazes dizer.

presa da minha surpresa faço a cama onde não deito senão corpos de palavra e conversa descarnada. mas lacerei a mortalha da língua que me asfixia. não sei onde cair morta pois tenho onde cair viva. o amor a tudo me obriga forçando a fechadura onde não havia porta.

14


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 15

fazer dom da vida ou da dúvida? voltar atrás por acaso ou por exemplo?

o sol mortiço do sangue sussurra atrás do ouvido – é a voz do inimigo que se traveste de amante.

mas há palavras que lavam as promessas da garganta.

e toda a secura vale pelo instante de haver água.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 16

FRICÇÃO

Olhemos fora dos olhos para semearmos bocas sorridentes, amuadas, esquissadas a traço grosso.

Que tenham rigor de pés e brilho baço de mãos quando estrelas já pousadas no rodapé das janelas, quando pão cedo amassado na tábua onde se dormiu.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 17

MATADOURO

Se coubessem entre os teus braços os pensamentos sem calo nem nexo as penumbras de porta aberta e a flor carnívora do sexo, eu poderia declinar como a luz que desliza sobre tudo quanto afaga e o seu ouro se agarra às mãos que nada guardam.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 18

Nos limites do tempo a ser presente só de noite a terra se lavrava. Ao estalar, o lacre dos campos espalhava rubro pó com vénias de velha caligrafia. Uma leve maquilhagem tolerada. Um jejum de céu a não cumprir. Uma branca e a memória trôpega de uma melodia

Nos limites do tempo a ser presente o amor ardente não parecia ser prematuro.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 19

Irreconhecível é a voz quando desperta.

Mas não hiberna o bicho da consciência porque ela é vegetal e ele mastodonte ruminante condenado pela sua corpulência. Porque ela é língua cristalina, água extenuada e ele puramente maxilar como colosso de osso.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 20

Todas as caras ingratas todas as pernas tortas escrevendo direito todas as pobres nobrezas todos os dias passados a pente fino todas as estrelas mal nascidas todos os nomes feios do destino e todos os que reparam nisso virando costas ao que peca por defeito mas levando sumiço face a face passam por ser franqueza eco do eco resposta à letra ou pergunta à queima-roupa.

Agora que metes a mão no bolso, amiga, e de lá sacas a pequena chave outrora engolida em seco e de lá tiras o lenço perdido outrora confiado às mãos do que nos é desconhecido,

agora que me ouves do outro lado da grade como uma ave tristemente perplexa porque o céu se retrai e se retira, agora que em vão chamas pelo socorro do sangue,

mais uma vez te digo que não digo o que devo pensar

20


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 PĂĄgina 21

pois devo pensar o que ainda te nĂŁo disse de tantas vezes o ter pensado em vĂŁo.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 PĂĄgina 22

SOB E SUB

sim, fiz-te um pedido mudo decerto quase que me ouvias sobretudo nos instantes em que eu estava ali esquecida a um canto como eu gosto e gosto tanto

sim, pedi-te um vestido de papilas e pupilas mais comprido do que cada caminhada nas vezes em que me vens ter comigo e ter contigo o mais pobre dos vestidos mas ricamente pintado para que possas raspar verniz e tintas e tudo atĂŠ me desencantares no suor e na secura encurtando com os dedos o tecido e a lonjura

22


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 23

A noite aperta agora o cinto procurando buracos cada vez mais cegos cada vez mais negros.

Que história te contarei então incompleta?

A do pássaro que por aqui passou furtando cores ao arco-íris cuspindo pela boca cânticos e cravando as garras no céu até todo o azul se esvair em sangue seu?

A da serpente musical temente a todos os deuses que se ergueu como uma lança imensa até vazar os olhos da lua e verter o leite da melancolia pela cidade esfaimada tua? Que história minha infinda te não contarei ainda?

E que contagem decrescente acrescentarei de mim para mim ao fim do iminente?

23


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 24

O galo da falésia Aquilo que cai o que cai na terra o que cai das mãos o que cai nas mãos sobretudo alheias

Aquilo que pende depende dos braços não estando porém nas mãos de quem cai nas mãos de quem está Aquilo que acende a chama dos dedos e queima quem faz mas não se arrepende do que foi capaz

Aquilo que mão aquilo que obra em vida e em vão na terra se cumpre não a prometida Aquilo portanto é o que nos falta é o que nos fala talvez pela rama talvez sob escuta. 24

para a Amarante


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 PĂĄgina 25

Seja como for em boa verdade nunca vale a pena matar pai e mĂŁe. Eles morrem na mesma.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 26

EN PEINTURE Liberta do bojo da bilha, da obscuridade do altar, da secura da seiva que retesa a tábua e o retábulo, do bolor que conspira contra o rosto pálido do fresco, a pintura emoldurou-se, suspendeu-se na parede do salão, no placard do museu, na cave do banco, na sala de espera do senhor doutor, tendeu a exaurir-se no prazer imenso, mas não infinito, de uma pequena minoria de sujeitos privados. Entretanto, eis que veio o cinema, o feixe de luz esgrimindo a tela num arfar de escuridão partilhada pelos corpos quase em repouso, pelos olhos em quase hipnose. O cinema ciclópico magnetizava multidões e transformava a própria pele de cada espectador numa manta de retinas. De que falo eu quando me lembro de haver imagens imaginadas por muitos e cada um, imagens que escaparam à vedação, ao acesso altamente condicionado, e às regras da obscenidade?

26


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 27

É de uma arte pública que falo, uma arte pensada para formas de recepção colectivas e individuais ao mesmo tempo. Porém, não chegou a correr um século até ao advento do cinema doméstico, avatar do peep show despido de pendor mural porque focalizado em gente vestida de nudez. De quantas traições é feita o face a face solitário e no entanto menos singular porque menos plural entre o filme e o espectador especado no sofá ou colado ao computador? Em que diferem e em que não do movimento de privatização que ditou uma certa morte da pintura e a morte de uma certa pintura? Deste assunto deveriam falar os filmes que ainda se abrem de par em par à dificuldade de estar com muitos ao mesmo tempo. Sei que essa é uma das chaves do teu fazer cinema e quero que saibas que tens carradas de razão e carradas de razões de não baixar os braços.

27


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 28

OBSERVANDO O SONO E A IRREALIDADE

Escassos instantes antes de adormecer é frequente combatermos involuntariamente o sono pela simples consciência de estarmos ainda despertos ainda vivos. Da mesma maneira acontece prolongarmos os pesadelos para lá do suportável pela simples consciência de estarmos a sonhar perdidos em vidas não vividas desvios, atalhos, becos, e desejarmos ardentemente por isso contra aquilo acordar. Assim algures nos confins de um pensamento sem forma nem formulação alguém que nos habita como um refugiado mora na sua cabeleira e se mantém altivo quase digno porque não perdeu a cauda – isto é: o rasto que não vê se e apenas se tiver virado costas.

28


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 29

Refugiado – que outra palavra haverá para quem não é ninguém e fez a trouxa à pressa? – clandestino também traído não por gestos não por actos mas por não palavras a que daremos o nome ocioso de sexto sentido.

Acaso o sétimo tardiamente presente na ruína irreal do futuro nos foi em tenra idade proibido?


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 30

POMPEIA os filhos da manhã em seu poente e cinzas só de noite tombando como caem as vozes aqueles cujos olhos cujos pés se colaram como moscas ao plural dos caminhos bordados a fio de rasto pintados a tinta de rosto os mesmos de amanhã senão já ontem descobrindo antigas noites e também a vida própria de seus olhos em combate de seus pés em fuga aqueles que se estampam na intimidade pública de uma toalha dada a ler de um lençol sangrento e exposto de um manto de poalha sem repouso aqueles que esbarraram contra o grande peito aberto de ventos pensamentos e leques ainda alheios

30


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 31

aqueles que me falam adiaram o silêncio da partida mas prolongam o rito da visita

numa língua maternal e matinal se explica a razão inesperada pela qual já estão onde não estão


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 32

ANDOR

palavras sem púlpito nem cátedra talvez mesmo sem ouvido uma vez ditas como se caladas

no entanto ainda quentes há instantes disparadas no tímpano quando o sangue galga as barreiras corre nas bermas para secar as bocas do mundo onde só anda quem sangra

e flores se ainda flores na opulência da estação que as desfolha embora ninguém olhe o fruto sonâmbulo na nudez súbita da flor e terra queimada para que passem pastores perdidos de seus rebanhos falando já sozinhos desde sempre

um caule um cajado uma vergasta a breve cantilena da borrasca e logo as palavras mortas no texto pegam de estaca

32


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 33

colecciono solidões para ver se alguma delas te agrada mais e mais tempo do que a minha companhia certas há que são talvez já despojadas de mim e por todos desdenhadas como se eu não fora assim

outras já fedem a fera marcadas a ferros quentes que também servem de grades à ilusão de uma jaula outras ainda sem aura luas que nascem nubladas em noites interrompidas pelas cruas madrugadas

nenhuma se faz amada em seu inacabamento até a sombra afugento por me ver encurralada

e sob as pregas do manto que me serve de montanha eu, uma estranha, te falo quebrando o meu próprio encanto

33


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 34

Há coisas que só se fazem depois de uma pessoa ter morrido. São coisas de mexer nos bens e males do corpo em traseiras de loja que só será aberta a próximos parentes amantes e amigos.

São gestos permitidos embora nunca fossem proibidos

São coisas de mexer e amontoar um pouco como faz o homem sem destino calcetando a consciências das estradas onde ontem se ergueram barricadas. Por isso já guardei num esconderijo os teus escarabeijos gota a gota a tua ternudez torrencial e a minha murmuralha antes da boca.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 35

A HISTÓRIA DO VELHO HOMEM NOVO

carícia matinal electrizante e fria

breve conversa olhos nos olhos como se a luz trouxesse água no bico e o delito saísse reforçado do desejo de contrição bem mais cedo do que nós despertava o velho homem novo com seu pé espetado no estribo da cavalgadura que o derrubou antes do tempo e da nossa hora sim: a falta de alento a falta de respeito a falta de bravura são efeitos de sentido

outro dia nascerá mas só um de cada vez


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 36

às vezes penso que olho para a minha vida e não vejo nada porque a vida não se deixa mirar no entanto sinto na nuca e na testa que ela a vida me fita insistente intermitente como o bicho de trela mudamente pede para ser solto alguma infância imprevista decerto anterior à minha ora se afasta de mim ora de mim se aproxima fulminando o que não sou farejando o que então fui

mas não há fogo sem fumo neste truque de magia


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 37

Na hora em que a luz molhou a pena no sangue grosso do cisne

Na hora em que a voz já traz segredos de folhagens e saletas amarelas

Na hora em que mais leite correrá não dos seios mas entre os seios mudos

Na hora em que o corpo arruma a alma no canto em que procura outras almas Na hora dos pés em cima da mesa e da mesa por debaixo da aula de anatomia Toda a sobre vida parecerá morte morrida menos eu em ti perguntando:

– Fonte, beberei de tua água ou de tua secura?


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 38

Talvez devolvendo a fera sonâmbula à insónia teatral da selva ou carregando o peso do corpo com a elegância de uma escrita de faísca e da prosa de acamar caminho

Em todo o caso mais perto do chão como a criança vivendo em vão numa penumbra de humanidade ou o pequeno fantasma que levanta a saia até ao despudor de um bocejo Pois mais densa a dança e cansa-me o que não cansa


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 39

MOITE ET MUETTE

le sourire de plus en plus servile le rire de plus en plus vil ça vient du bon côté ça file un mauvais coton ça s'en va ô la grande fatigue des arbres couchés sur les bas-côtés

ô bruissement d'ombres justicières ô bruit du non du oui du non du oui ô papillon aveugle sur la chevelure de la voyante ô connaître sans trop savoir et tomber sans connaissance dans les bras de ce qui reste au cœur de notre ignorance

39


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 40

Estou em vida. Isto é: morta entre os vivos e viva entre os mortos.

Tento fazer bom uso deste paradoxo como alguém que rapa o tacho sem saber se come por fome ou por gula apenas que sim até ao fim. Tento fazer bom uso do gesto que me desgasta não por costume mas porque o lume da carne em sua combustão me é razão de sobra e amor.

Estou em vida. Isto é: esquecida de mim pequena carta enfiada por baixo de antiga porta carimbada pelos pés de quem entrou e não saiu. Onde se lê estou leia-se estou.

40


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 41

VAISSEAU ET VAISSELLE

A bordo de fantasmas do navio partilho com quem me olha vendo a vaga de bolso roto o mar hipnótico a praia de pimenta como quem deseja dividir um divino despertar ou verte a água sublime no vinho da fé fervente. De segundas intenções se faz o céu.

E entre nós se fará o dia em que não tens pressa.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 42

encantar mas decantar cometer grandes e muitos delitos de opinião e sentir talvez saudade ainda que sem razão de nunca fazer as coisas por mais que superstição e por menos que vontade e sentir talvez plural a singularização tempero de tempestade

42


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 43

ou dança da ubiquidade em banquete de bonança

sentar-se como intrusa comer sem ser convidada na malga do anfitrião estourar o sétimo dia e descansar no primeiro dormir nos braços de rio do meu amor verdadeiro


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 44

a parte mais recatada mostra as garras sem requinte e sorri com o desplante de uma velha desdentada

ora uma ideia que se guarda e por amor se reserva não será nova ou gratuita por não ter sido em seu tempo como outras posta à prova a parte pensa que pensa – é uma espécie de doença mas ao todo não produz lavagem que alimente uma família de porcos

pérola usada ao pescoço vai perdendo o oriente e o pensamento em seu fosso faz das ideias pocilga em vésperas de matança se a luz treme a sombra dança

44


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Pรกgina 45


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 46

quem dera derrapasses no meu corpo ou esbarrasses numa alma em carne e osso

passasses como vento a contra mão pela estrada já sem bermas já sem marcas ou me tomasses de assalto e tudo fosse resultado de anterior conspiração

quem me dera encarnada e desalmada por manobras que só movem as montanhas e fazendo tábua rasa das entranhas até perder de vista eu claudicasse

quem dera me entendesses quando rio das respostas que quebraram os espelhos das perguntas que calaram as esfinges


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 47

atirado pela borda fora o diário relata a construção da jangada a pobreza divina profanando a praia o cálculo astronómico da última jornada

se me afogo em teu olhar quando me evitas se naufrago antes de olhar quando me fitas que sei eu de salvação entre faróis e estrelas a não ser isso mesmo incalculavelmente perto


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 48

LE LOUP FAIT SORTIR LA FAIM DE LA FORÊT

je t'aimais encore aussi pour tes pieds distraits distants qui griffaient souvent mes jambes pendant des nuits d'insomnie sans toutefois laisser de traces et t'aimais toujours encore pour ton arôme de forêt parfois récemment brûlée parfois couverte de rosée


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 49

Por toda a parte te espero e volto atrás por atalhos que diferem me diferem do que foram no passado encontros e despedidas.

Que rainha entre dois setes que espada entre dois vermelhos faz de mim fraca oponente em mesa de cartomante em língua de mão ausente? Não sei de horror ao cheio ou por temor do vazio me gero espontaneamente içando sóis que só brilham com máscaras de poente. Por toda a parte me voltas me viras caras e costas enquanto eu afio facas para não cravar palavras no lugar onde não ferem.

Sim, acordo destapada pensando que me despertas injuriada de beijos que vibram como janelas abertas por insolência. Soprando julgo inspirar e trepo rudes ladeiras pelas quais rola o olhar até a boca ofegante nos conseguir apanhar.

49


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 50

A CRUZ VÁRIA

E com um sorriso talvez menos que isso ia segurando o azul das calças do pijama vazias de corpo e de toda a convicção a não ser essa ilustrada por feridas nos braços de que a eterna ingratidão é a coluna vertebral dos humanos quando se dobram.

para Ângelo de Sousa

Porém, algures noutra cidade onde os becos chamam pelos visitantes e os aliviam de seus bens, ele já comera a cor sorvendo-a directamente do tubo ferrando o fruto sem semente da demência mordendo o pó que a terra atira aos olhos no lugar da eloquência do amor. Quem diz que não se quebram dentes quando se mastigam murmúrios?

Sentado na beirinha da cadeira como que pronto a saltar da órbita, ele parecia descobrir no nervo negro de uma página impressa formas desconhecidas dispostas a serem vistas de muito perto. Aquilo que me mostrou vinha depois de uma crucifixão mas bem antes que as imagens pudessem descer da cruz.

50


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 51

há o trabalho forçado e há outro a que se força a química da palavra e como se desde sempre o não fosse para sempre a carne que nele treme proclama a lei atrevida do seu próprio esquecimento e uma vida destinada a ser por outros vivida há a fila envergonhada da sopa dita dos pobres mas a fila das palavras só na pobreza da sopa se quer dar a conhecer inquieto e requentado o caldo em si primitivo é texto boiando oculto e fome que não se basta quando sustenta o sustento quantos olhos banharão no caldeirão de um só olho? será que me envergonho da nobre sofreguidão dos companheiros de mesa? deixando para amanhã o que hoje comer não posso ao osso colo e me agarro fazendo o papel do fardo ou da carne apalavrada garra arranhando o acorde na harpa onde busto havia

51


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 52

Venha então prato do dia pois nos confins da cozinha o molho brada inocência e a pequena travessa será bem aviada entre fumos e um cheirinho a esturricado. Algum tempo se espera até que o espírito consinta em ser servido – e a morte aproveita sabe deus que deixa para rondar quase sem rodeios. ou pelo menos asseadamente.

Algum tempo se tolera pois o espírito faz questão de ser ouvido – com toalha branca e lava-pés ou com as mãos escondidas debaixo da mesa em todo o caso cautelosamente.

A refeição nunca traz surpresa e nisso reside o espanto possível tão difícil de exprimir quanto indigesto nos parece o prato do dia.

Olhámos e torcemos o nariz. Debicámos, desfizemos companhia. Mas o inferno empanturra quem se limita a provar e sai deixando gorjeta. 52


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 53

o amor sujeito à fome se habitua a fomes de ter fome e a ser sujeito já não submisso a elas mas senhor contra todas as origens contrafeito e contra o fim à vista lutador

o amor a si sujeito nada guarda que seja seu ou sombra de ter sido prefere a roupa suja à luz da farda de dia escurecendo anda despido

por isso, meu amor, eu me atormento se penso que me entregas esta noite à guarda sufocante de um roupeiro

não me pesa ser refém de antiga fome assim lhe sirva o corpo de resgate

e não de curto prazo ao esquecimento

53


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 54

FERRO VELHO E FERRO NOVO

Aqui se faz do novo velho e, a despeito do que pensa a maioria, não há nessa mudança menos arte do que em fazer todo da parte ou em fazer do velho novo. Aqui se forjam heróis com coração de menina que contra o vento combatem e ao dobrar de cada esquina desfalecem como anjos. Aqui montou oficina Eros saído da casca e Psique em traje de aurora dorme no fundo da loja que lhe serve de cozinha. Aqui se ensina o ofício da vagarosa erosão com precisas ferramentas pois que dureza do corpo é pedra de amolador.

Aqui se chocam os ovos de algumas aves tão raras que antes de mortas renascem e espalham nuvens de cinzas sempre que a luz dá à luz.

54


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Pรกgina 55

Aqui se fala de amor espicaรงando com agulhas as pernas quase dormentes das palavras mais antigas e das frases mais cansadas.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 56

Não posso ler nos teus olhos como se diz que se lê na palma rósea da mão a sua teia de linhas a sua renda de estrelas.

Porém, só nos teus olhos eu leio e nesse ler sem leitura pois que os olhos são o texto em língua ignota de mim e também são tradução em língua dita já morta.

Assim, o mistério da leitura mora exilado em lagunas desses olhos que me vêem sem que eu veja o que eles sim, olhos nos olhos por vezes e olhos fora dos olhos ou seja fora de mim. É tarde: os olhos cansados viram páginas em branco mas os meus dedos não tocam nas letras que lá flutuam e das quais tanto desejo fazer vagas e jangadas naufrágios e salvamentos. É cedo: o livro dorme nos olhos de quem é signo de insónia.

56


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 57

a partir dos quinze anos comecei a encontrar os meus mortos em sonhos que não eram pesadelos. cruzava-me com eles na rua fazia menção de os abordar mas não era reconhecida.

avistava-os dentro dum autocarro ou furtivamente numa esquina mas logo se desapareciam.

por vezes mal chegava mesmo à fala eles mudavam subitamente de rosto e eu confundia-me em desculpas.

cabe-me a tarefa de imaginar a relação entre estes factos sonhados e outros menos reais embora certos porque tidos como vividos.

algo parecido à alegria me vem desses regressos imprevistos dos que partiram. eles dizem toda a força do fugaz toda a vida como terna entoação toda a visão como reflexo da possibilidade de partir.

porque o fugaz não tem fim e na sua inclemente intermitência se constrói uma ciência do lugar ou do puro contratempo.

57


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 58

O Caldo de Caos

Sim, o olhar de relance arma possíveis ciladas e a pequena fagulha acende o grande incêndio. Mas aquilo que morre novo não é mais favorito dos deuses e dos diabos obedientes do que aquilo que nasce velho.

Sejamos claros e obscuros: o pequeno floco de neve põe a terra a ferro e fogo, o olhar fixo aponta para o seu próprio alçapão. E a paixão que não morre não mata. Então.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 59

CONTORCIONISMO

Silêncio de pontuação fora do lugar mas profundamente dentro do tempo este que te força a insignificar significando segundo após segundo.

Como é difícil respirar e ser cotovelo e calcanhar, joelho e pulso. Ser tudo quanto dobra embora sempre insuficientemente e sempre no mesmo sentido inspirado e expirado. Alguns possuem e são possuídos por melhores definições de vida torcendo e quebrando em palavras e em actos. Alguns estão na posse dos factos e obedecem ao acontecer.

Eu não eu. Com a boca apenas toco a boca e encosto a orelha ao que me escuta até o bater do coração chegar ao tímpano e o mundo inteiro se tornar íntimo. Não eu não. Sim.

59


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 60

é-se por um tempo o que sendo se altera e nada nos apressa e nada nos retém afora aquela luz espalhando mais migalhas côdeas de meiguice ou miolo de olhar mas o prazer de tocar é caro a quem se vê tão-só no lugar sem espelho


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 61

1. VÉNUS VÊ-NOS NUS 2. os que partem com uma perna às costas e se atrasam os que partem sobre rodas e derrapam os que partem só em parte mas se atrevem os que partem para sempre mas regressam os que partem porque têm companhia os que partem porque fogem de quem foge os que partem quando olham para trás os que partem quando tanto se comovem os que partem para dormir ao relento os que partem para que pare o que mexe os que partem sem mãos, nem truque, nem nada na manga os que partem já de tanga os que partem já sem pressa e agora força mais força já se lhe vê a cabeça

3. dei-te tudo quanto havia porém não fiquei vazia pois queria dar-te ainda o dar, o dares, o não dares e o não se ver o que há

61


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 62

cresceram flores esta noite na nascente da garganta e no delta dos pulmões

se dentro de mim medraram foi para ao sol desfolhares estas flores de carne e água

sou como a velha criança que busca os braços do sono fugindo dele à socapa

mas levo ramos de flores que espalho por teus caminhos fazendo cama e tapete sou como velha criança entregue ao prazer da dança nos sonhos em que me assusto não vou por onde há estrada mas faço estrada onde vou seguida em todo o sentido cuspindo pólen e pó para ti fui semeada

62


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 63

o corpo luminoso é mais obscuro e no seu pequeno saco roto cabe o canto do rouxinol e o do cisne se brilha é porque procura mão-de-obra e mão de lonjura em andaime improvisado

o corpo luminoso já tem a sua boca do lobo grande mar lhe morre em praia alheia tão amada é aí rebenta como vaga por invisíveis costuras por indizíveis injúrias e faz-se espuma

mas o corpo luminoso perde o pé onde é sol de pouca dura onde é astro perseguido pelo fulgor que emana e pelo nada que guarda para si

63


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 64

fiquei como que agarrada a negativos do corpo

não que estivesse insensível não que as cores me trocassem pelas brancuras do negro não que duplo eu procurasse mas sim um triplo inclusivo de plurais em noite branca fiquei como que agarrada às rugas do meu rochedo

não que tivesse mais medo do que já tinha vergonha se parte de algum segredo

não que tivesse vontade de pactos com quem recua se for pouca a claridade fiquei como que agarrada a todas as rodas vivas e com mil panos tapada o que é de mim restava

ao não ser o que eu esmagava em mim debaixo de mim?

64


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 65

cai a noite tão mais longe da manhã lenço negro de uma deusa descuidada que do luto não pode saber nada e ignora toda a dor do dar à luz

cai a noite entre nós como uma gralha no texto sem rasura nem rascunho ao tempo que uma frase em nós perdura saindo escura e tensa do teu punho cai a noite... qual de nós a apanhou e a qual de nós se agarra a madrugada?


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 66

A FADA DISPARATADA

I Eu caio em erros – por isso levanto questões. II BANG!!! You're alive...

III Au royaume des signes les singes sont rois. Au royaume des singes les signes sont rois. Etc.

IV Elle a chaud au cul. Mais a-t-elle froid aux yeux?

V Tenho rabos-de-palha. Eles pegam fogo. E eu vou a correr pelas ruas fora. A correr devagar. Até eles se apagarem e eu já não arder.

VI Algo de importante mas só muito depois de escurecer e de virem muitas auroras ao mesmo tempo.

66


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 67

VII A luz vai gastando os olhos e os olhos usam a luz. Não há nisto nenhuma espécie de troca que nos pareça exemplar. Ou haverá? VIII S'écouler. S'écrouler. Est-ce cool? IX Amo-te. Ato-me.

X Tous les jours tu as joué avec ma vie à pile ou face. Et ça tombait pile là où ça faisait mal. On me dit que ça passe. XI O lobo comeu a avó. A avó não comeu o bolo. Moral da história: faltava um espelho naquela casa.

67


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 68

«Façam-se à vida» – disseram os mestres os mortos.

E eu quase voei sem abrir aquelas asas que não tinha – isto é: escutei.

Batia o coração descompassadamente como se quisesse parar mas fora do peito. Espantado o pássaro da palavra fiquei equidistante e aturdida.

Mas o longo recuo da frase doía bem mais do que um parto dentro de outro parto.

Então o meu amor falou ao meu ouvido com a sua voz de um só espinho de um só botão.

Corando, aguçou os seios que não tinha e o leite de outra escuta saltou dos seus mamilos negros olhos na noite nua e branca. O meu amor falou na vez de dormir dormiu entre duas falas o que nunca será dito na mesma língua. 68


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 69

INICIAÇÕES AO FÓSSIL POSSÍVEL 1 O corpo descobre o vazio mas vira-se para o outro lado.

2 As mãos enfiam pérolas e contas contas e pérolas até o nada formar um grande colar. 3 É rei quem morre à porta do reino.

4 Onde falha o falso testemunho a verdade não faz falta.

5 É como se o bicho fosse obrigado a falar do cimo da ara durante o seu próprio sacrifício e mesmo aí sobretudo assim ninguém o ouvisse.

6 Tinhas várias perguntas prontas a serem disparadas. De súbito pareceu-me evidente que uma imagem é aquilo que nos exclui. Mas de que modo explicar-to incluindo-me?

69


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 70

Com névoas de dicionário e claridades de escrita musical as palavras anunciam-se no masculino e por ordem assexuada de entrada em cena isto é camuflando pela sua presença o caos dos bastidores o cheiro a suor e músculo do texto o perfume de algumas flores esquecidas no camarim.

Ora conflituando com as aparências enganadoras eu as sonhava feitas de nervo pregões espezinhados pela voz que as fere e os profere manchando o pano da paisagem destoando à mesa das prosas de pança cheia. E deixando-as gabar-se de seus erros de suas intermitências e falências com elas me liguei de inimizade. Quase terna de si própria temente ou mesmo próxima até à vez sempre próxima em que de novo me obrigam

70


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 71

a ouvi-las sob tortura de cabeça dentro de água e dessa quase escapava escapando a mim por um triz peixe em sua prata ofegante e baça abrindo a praça das goelas para vir desfocado e frio a mim o beijo que aquece as mãos amantes e enche de fogo os pulmões como dantes.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 72

É linda a melodia do amolador que clama por tesouras e facas sem contudo convidar as que melhor afia a vazar olhos ou cortar cabeças. Mas o valor principal desse trinado sem pássaro é lembrar-nos que faz dia e que a luz foi talhada na noite como um fato largo demais para o usarmos em sinal de luto para o vestirmos em jeito de farda de adorno, disfarce ou texto.

E há tantos modos de chamar por nós que nos chegam ex aequo aos ouvidos e maceram nas sedas e nas ceras antes de sermos nós mesmos uma voz entre muitas que por vezes chora o harpejo do amolador sendo coisa não escutada entre as demais. Porque a bom entendedor nunca bastou um mal entendido.

72


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 73

SEM CENOGRAFIA

Vejamos: entre poetas e entre amantes nem tudo é permitido. Ouçamos: entre amantes e entre poetas nem tudo é primitivo. Cheiremos: entre poeta entre entre o amor e os amantes nem tudo ainda dantes. Porém se tocarmos e comermos saberemos de fontes primeiras que entre duas almas gémeas e dois corpos siameses corre esse choro de roupa que nunca seca – de amante para amante de poeta até poeta.

73


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 74

FANTASMAS DA ESCRAVATURA

Diz-se de certas pessoas que estão marcadas e isso significa indistintamente que alguma cicatriz lhes resta do passado ou que foram designadas para receberem do futuro um tratamento por eufemismo distinto. Ora nesta espécie de mundo sobre estacas em que só a figura de ninguém se mantém expectante perante as ânsias de mar do navio a seco, cada filho deve arcar com o futuro e o passado de todos os que não serão. Cada filho então enfrenta a claridade da manhã como o pastor estremunhado a quem o gado parece mais escuro ao descer com vagares de velha rainha do trono. Do sono. A questão para filhos, pastores e pessoas marcadas é perceber se ainda resta ninguém de alguém a bordo.

74


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 75

A IMPREVISÃO VISIONÁRIA

Pedi-te um fardo de papoilas e que mo pendurasses às costas Pedi-te coração sabido de cor que bem se segurasse nas costelas Pedi-te balancé beijos de borboleta e botas de sete léguas Pedi-te ternura de esqueleto fugido ao guarda-vestidos Pedi-te um ouvido de tísica e uma concha a morrer de sede Pedi-te que me contasses ao ouvido a viagem mais imaginária Pedi-te que desenrolasses o mapa do corpo até à última paisagem E tu perguntaste: é montanha ou planície?

Antes da mesa ser posta nada se disse que viesse de rajada como o vento da resposta.

75


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 76

POEMA DE AMOR ONDE ELE EXISTE

Em terras que não sei por enquanto a árvore da palavra faz toda a sombra para que as palavras não a projectem umas sobre as outras.

Sabendo o que não sei e com a pesada bagagem da minha ignorância procurei como tu tantas vezes e tantas vezes o que em ti contigo via me sugeria – com olhos de arrancar crescentes à lua – as terras que não saberia. Procurei-as em noites de chuva servida na prata da casa picante de palpites e palpitações negro viveiro de pupilas e estribilho dessa canção tão bela que se torna corredora de fundo. Procurei-as em dias de acalmia nas pausas difíceis da respiração e no pó da alma provisória pousando de mansinho na montra do alfarrabista onde as vulvas dos livros se fecham. escandalosamente.

76


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 77

Sim, meu amor, eu haveria de ser vasto biombo e tu despindo peças atrás de peças pele atrás de pele despindo-me sem me tocares por ocultação. Sim, eu haveria de não ver de não dar a ver. Para conhecer o que não sei ainda e apenas.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 78

ANAMNESE DE JANEIRO 2011

Suspeito que haja palavras feitas para serem guardadas durante muito tempo até se tornarem ideias de palavra apenas ou tanto como. Suspeito que não seja verdade elas desgastarem-se com a falta de uso embora isso aconteça ao pão esquecido na arca ao vestido esquecido no armário ao corpo esquecido debaixo de terra. Essas palavras veteranas rolarão um dia como os teus olhos azuis tão raramente comovidos sobre a mesa de jogo. A página será verde a mão que escreve terrosa e a jardinagem felizmente felizmente. Suspeito que elas tragam marcas e voluntarismo de cárcere – bolores, líquenes, pó de traça, salitre, caruncho, ferrugem – matéria para pigmentos de amor e sede insaciável de tinta. 78


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 79

Suspeito que tragam a exigência de serem convidadas a manchar superfícies mais vulneráveis antes de mais e depois de tudo a pele. Ainda que me esforçasse não poderia esquecer essas palavras nem elas poderiam cair-me no esquecimento. O meu abismo é demasiado fundo para que outra queda ou ascensão acompanhe os deslizes e os erros de cálculo que não me colam ao chão.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 80

O DOCUMENTO COMPROMETEDOR Ignoro que bicho é esse agindo por sua conta em missão de alto risco ou visco até fazer-me sentir menos humana do que ele e mais pedra sobre pedra do que a escada de um castelo construído à sua sombra.

Entre os instantes que esticam e aqueles que encolhem por ser já menos que bicho me rebaixo ganho graus numa escala de dureza até não mais poder ser descoberta e trabalhada pela minha própria mão. Bicho contrário à surpresa por ser presa do desígnio de bom grado confessado a quem lesou ele me ofende e defende das garras que lhe cresceram enquanto me perseguia sem eu sair donde estou.

80


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 81

E com falas muito mansas diz-me esse bicho aprendiz de meus obscuros ofícios que estou ferida de morte. Será que é tarde de mais para o sangue derramado me servir de alimento? Outra mão me nascerá no lugar do coração.

Lianas na vez dos dedos.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 82

A INCANDESCENDÊNCIA

Mais defendida do que a página vazia mais eufórica do que a página cheia seria talvez essa sinceridade anémica que pega nos assuntos pelos cornos como se eles os tivessem e nós tivéssemos assuntos. Algo me aproxima de uma alma entendida como ânimo animal e contra os corpos em fuga e em queda confundidamente para nunca se atingirem no ponto de fusão de que somos capaz incandescência e até prova improvável. E nesse aproximar me distancio e aceno porque tudo quanto acena está perto ou pelo menos cada vez mais perto de poder fazê-lo com motivo.

82


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 83

A DENSIDADE DO ACASO

Na casa menos que paterna não deixei pedra sobre pedra apenas as fissuras onde medra uma erva tão daninha igual aos sorrisos que eu tinha invisíveis e nervosos no fundo da espinha. Julgava saber que o mar ia buscar mar ao mar.

Por isso tencionava resistir como o anjo resiste à tentação da tentativa enquanto do outro lado de si o anjo realmente resistia ao desejo de me linchar. Perguntas mais uma vez: onde vamos almoçar? Mas eu ainda estou frente àquela sobremesa que não quis comer no dia anterior ao dia.

83


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 84

Dizem-me que certas solidões se cruzam no infinito como outras paralelas não.

Porém, a minha estima pelos mortos não é uma alternativa ao amor pelos vivos ou à prisão domiciliária.

Cada dia descubro mais um escrínio ou um cenário onde os teus trejeitos de pequena lontra poderiam encontrar inspiração no repouso mas não ouso dizer-to porque uma parte do amor é muda. Cada noite me viro e reviro nessa que seria uma imensa gengiva dolorida ogiva horizontal e não apenas uma cama de cor e não apenas descabido desejo de divino escoltando o corpo por entre molares. E a cada palavra os ventos marcam encontro num deserto de texto arenoso onde a miragem de fonte previsível seria não passar da cepa torta. Provei o vinho e a água sem temperança. Como outras paralelas não. 84


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 85

SUBURBURINHO

Há corredores menos assombrados do que certas ruas nuas e nuas as não podemos percorrer com a intenção de vermos nudez e a atenção de quem se veste para núpcias adiadas ou irreais.

Entre ditos espirituosos que soam como aqueles móveis demasiado condizentes uns com os outros, sentimos o olhar insistente mas inconstante das coisas todas elas, à vez, corpos celestes distantes.

E porque as coisas não se fazem por metade e as núpcias de duas metades se fazem, imaginamos que poderíamos errar por ruas nuas noites inteiras à gandaia, colhendo no lixo os erros dos outros ou as suas desculpas esfarrapadas.

Mas em noite de amor não se pedem contas. Nada há que então não se ame e muito menos o que é pobre o que foi abandonado e assim se mostra a olho também nu.

85


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 86

O barulho das botas do labrego acorda o sol e a sombra de uma moira encantada. Fende-se a ar da manhã similar a um sorriso e ao fim abrupto de um sonho do qual não se deseja despertar. Voa alto quem aterra fora do tempo sem espaço e do campo de visão de uma moldura dourada. De mim para mim repito a palavra resistente inquebrável como o aço ao tempo que viro vidro partido por embaraço.

Juntando cada estilhaço ao que é maior do que eu – a bota, a moira, a manhã – sou menos eu um pedaço.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Pรกgina 87

O estilo da figura

O fogo apรณs a fartura. A pedra depois da fome. A รกgua depois da crenรงa. A terra depois do nome. A cura.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 88

Quem fala em sonhos fala como se desde sempre e não acata as ordens daqueles que mesmo em sonhos ainda mandam calar. Quem fala em sonhos desliza sobre um espelho em expansão onde as palavras se miram até pedirem perdão às que ficam para trás. Quem fala em sonhos desperta para uma ideia concreta que não quer ser descoberta pois o manto imaginário não destapa o que é real até ser imaginado o espelho de si falante e o reflexo inconstante de amor incondicional por quem não vê que é amado.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 89

Havia pó mais do que nunca pó e torvelinhos debaixo dos móveis como no deserto.

Dizias com esse timbre fugindo ao verde que por vezes se aflauta azul: «Não mais promessas para que tudo se cumpra.» Pois sim. Onde não há culpas desculpas não haverá. E sendo o duplo do duplo um previsível terceiro não vejo por que razão se deveria escolher entre dois fantasmas.

Da estação mais curta – qual é ela? – espero a vassoura que varre com a fúria de uma ideia. Mas o baile de poeira.

E tudo quanto na dança colhe flores de fronteira emenda os erros do céu remenda os rasgões da terra planta dedos quebra dentes tornando nula a distância.

89


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 90

CORREDOR

Como se faz isto que é vida e quase fuga? Corrida de rumores por vezes estadia entre dois remorsos.

Se é que nasceu de mudança e sem pompa de aparência, pequeno apeadeiro onde ninguém desce e até o comboio se esquece de parar Se é que morreu migrando e sem rito de partida corrupio em grande gare onde não parece certo que alguém deseje partir ou regressar

Então contrária ao fazer-se à vida é esta metamorfose que só o amor nos permite quando os corpos em repouso por abalos sacudidos se desfiguram sorrindo mostrando garras e dentes elos mordaças amarras silêncios tão estridentes que os mais pequenos ruídos são falas

90


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 91

Onde de amor se anuncia o que o amor não prevê se entende que mais um dia é menos e mais um dia em combate desigual contra o vão convencimento que faz as vezes da vida com a pressa do boato com a pressão do rancor e a cor do conhecimento. Onde amor ignora e sabe se entende que mais um dia não cabe onde um dia cabe.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 92

A IDADE DO VELHO OURO

As montanhas mais velhas estariam agora muito perto – digamos que nos arrabaldes ao alcance dos sonhos de qualquer bom trepador – e fariam dançar de nascente a poente as suas engelhas de gente.

As mulheres mais velhas despidas de aguaceiro recuariam como quarta parede fazendo ouvir por toda a parte a sua ária de gente gotejante o seu cheiro a vindima de dilúvio os seus sapatos de vidro furta cores as suas dores líricas nos pés.

Os amantes mais velhos e solícitos teriam sinais de parto olheiras de palco nos ombros e sob o agasalho de perfumes a cada instante mais vegetais mostrariam seus músculos delicados suas crias acabadas de nascer para receberem palavras e carícias.

Haveria outros rios e mais margens para cada leito de riacho ou entre as pernas. Haveria mais portas para mudar de mundo

92


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 93

cada pessoa várias em si e várias em cada. Haveria mais segredos dispostos a serem guardados quando contados e não cativos de verbos derradeiros. Haveria o nosso segredo da fonte até à foz. Haveria uma espécie de futuro já passado e velho com o qual se podia contar quando faltava assunto de conversa pano para mangas linhas com que coser bainhas vozes para tomar a palavra e usá-la até ao fio. Não haveria trocas apenas dádivas e uma gratidão de cantiga sempre pronta a ser garganta.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 94

STRICTO SENSU

Estás à minha frente mas já descentrado quando bebes o copo de água a tempestade o cálice o pai e o pé invertido da flor de vidro sorrindo sem rodeios de ferrete

És lâmina rara na imensidão da pele e no tempero sábio de amarelos curvado sobre o mundo sobre a boca bem ao fundo da panela um monte de cascas juncando o chão de uma natureza imprevidentemente morta a saltar da tela

Estás à minha frente e pelas costas um calafrio de vela e um orgulho de farrapos tão felizes que só eu gostaria de desfraldar ao vento por falta de tacto o outro tacto touro sobre touro e labirinto visto em corte como se diz que terra à vista contra toda a invisibilidade Sim levo o novelo no bolso porque toda essa história me parece real e sobretudo invivida em busca de suas personagens de seus desfechos convergindo para fins menos úteis e menos tristes

94


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 95

Sim o novelo é esta minha mão e se puxares por ela por mim


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 96

morar porém não morrer neste para sempre nunca porque jamais comparado à luz que o prazer distingue em cemitério de estrelas e fechando os olhos para si furta

mas o que não se diria da estrela nova ou morta já se suspeita e disputa ao prazer de um dia só se um só dia for este e ontem se as hostes das manhãs e as hordas da noite depuserem as armas onde outra for sendo tiver sido durando na corda bamba e nas sedas do ouvido a nossa terna luta


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 97

cinÉ-rêvÉ-exprEss

d'aucuns seraient choqués si je disais en parlant au tout premier degré que le cinéma est l'art de la réalité non pas tant en cela qu'il en fait sa pâtée mais parce qu'il nous fait saisir des yeux à tous les premiers degrés qu'il y a beaucoup de réalités qui se donnent à voir au moins autant que celles que l'on peut donner à voir, un nombre infini de réalités à construire au moins autant qu'à effacer, oblitérer, camoufler le cinéma est l'art de la réalité parce qu'il est l'art de ce qui n'existe pas

que l'âge d'or du cinéma soit celle de sa construction n'a donc rien d'étonnant quand bien même les choses dont il faut s'étonner s'avéreraient être celles qui ne sont pas étonnantes au fond


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 98

Ficavas cativa do pormenor e presa à possibilidade.

Sentias-te adivinhada como as letras que há a menos numa velha inscrição. Falavas língua de ramos que te faz homem mulher. Pensavas pausa de sombra que te faz planta opulenta.

Esquecias o que disseras aos que abraçam um destino com mais dentes que barriga para que ambas as partes fiquem fora de combate. Esquecias. E o esforço de lembrança era teu modo e motivo. Não passarias ao lado do que ainda não viveras pois ao tempo do olvido um outro quase infinito se juntava e subtraía. Não se esquecera de ti aquilo que esquecerias.

98


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 99

o abismo que se estampa numa cara a estrada que se corta numa nuca

a fonte entre joelhos desviada a faca afiada entre os dois seios

a montanha ora meu ombro ora teu pranto o rio ora convexo ora sem sexo o perfume tão intenso como fígado a palavra tão cheirosa como axila

as noites mais rebeldes e mais longas mas as manhãs de amor fugindo à forma saindo intempestivas e furtivas da casca do cofre do catre da forja da fila


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 100

EPÍSTOLA Édipo conta os seus dedos e vai despir nove pés corando, rimando e rindo. A virgem despindo guerra logo abandona o seu trajo como se dele fugisse. A raiz cresce depressa até despir a floresta e ganhar voz de pulmão.

Cai a chuva de pianos no chão do lugar comum com fama de menos um.

Cai o templo em terra alheia onde a mãe por excepção já chora fora de tom. E eu sou sinceramente sempre tua quando assino e a letra me sai nua.

100


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 101

Aprendiz de feiticeiro dorme debaixo do texto mas conspira contra o mestre dorme debaixo do tecto mas não se fia em mestria mesmo que ontem ainda chovesse dentro de casa e não houvesse palavras que dissessem gota a gota aquilo que não se esgota tão-só por haver magia.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 102

Depois do torpor galante o instante dentro do instante procura mostrar serviço e outro estado de sítio.

Também eu guardo os meus olhos em estojo de olhos alheios encobrindo onde me escondo e abrindo olhos terceiros. Também eu guardei palavras dizendo que não as tinha mas deixando-me roubar pois que nenhuma era minha. Também eu perdi instantes julgando que semeava tempestade atrás da porta e olhares à flor da boca. Também eu não como eu e como eu não talvez nós rio nascendo na foz voz por um fio nascente.

Também de trás para a frente em espelho de águas paradas remam imagens mais vagas só as vê quem está ausente.

102


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Pรกgina 103


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 104

Não Agora Sim

terias deixado correr muito tempo antes do fôlego que se ganha para deitar a perder as palavras. terias pensado olhar para as coisas como se todas tivessem uma cara e um nariz no meio ou um rabo entre as pernas enfim algo a que te pudesses agarrar sem que se notasse porque estarias a falar e a calar-te no sentido figurado e porque as figuras têm as costas largas (em todo o caso mais largas do que as ideias das quais se diz que só têm frente ou frente-a-frente ou). terias mostrado desinteresse era a tua maneira de mostrar e deixar crescer água na boca.

embora carnívoro, talvez ousasses confessar que o teu rebanho pasta no céu enquanto na terra uivam lobos de boa vontade. não agora sim

104


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 105

e a sério um pedaço de pessoa ou a pessoa inteira podia perder o pé ao avançar num sentido que a todos parecia seguro – dizer isto para consigo com a devoção de quem torce o pescoço ao cisne para não ter de ouvir-lhe o canto funesto. agora sim não metendo a mão na consciência e partindo do princípio que ela seria para aqui chamada mais tarde ou mais cedo...

quanto menos se faz mais transparecem as intenções porque fazer é sempre fazer de conta. agora não mas sim mal possa ouvir-te com um ouvido distraído sensual e vagamente havendo a vida inteira para amar e escutar terias pedido que te ouvisse assim mesmo sem insistência mas persistentemente presente até o dia ensurdecer.

105


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 106

porém eu com nada a arder-me entre os dedos estaria a ouvir-te ainda antes que falasses e o teu primeiro berro furava-me as veias.

alguém de mim em alguém com nada a morrer-lhe entre os dedos estaria a suspirar ao ritmo das tuas sílabas porque o teu primeiro olhar ainda me queimava. isso que me contavas era belo como aqueles instantes fugidios em que se tem todo o tempo do mundo e se busca por todos os meios poucos ou muitos onde bate o sol onde se derrama a sombra onde pedra onde pó.

isso que me confiavas não confiava mesmo assim no que em mim te ouvia e tinhas-me sob a suspeita de ser eu a estrela morta que te coubera na sina brilhando menos convicta do que qualquer pacotilha.

agora sim porque nunca fizera de filha pródiga nunca dispusera da espera que eu tecia

106


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 107

e nunca desfizera a tela do dia a dia. agora sim não posso esconder-te que a porta fechada afinal bastava empurrá-la e logo o anjo geométrico fazia ouvir o refrão rectangular dos ossos.

e é como um contra-poder não ter nada a esconder-te: nem o rumor de amor da porta nem o barro de bairro quase fresco nem mesmo o disparo do disperso em vez da lei da bala.

e tu que lias retaliação onde eu lia bocejo simulado mas talvez contagioso como arrumarás o caos disso a que chamas o meu mundo para que eu possa circular sem derrubar o que coloquei ao alto? se alguma vez te juntavas como outro contra-poder ao meu ponto de vista era para me lembrares que já lá estavas

107


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 108

antes sequer de eu nascer ou abrir os olhos ou esfregá-los ou sentir-me (ainda) ofuscada ou já nem tanto e por aí fora durante o durante que houvesse para durar desde a invenção da roda antes quebrar que torcer e parar para pensar como parar e como. suponhamos uma cidade um porto de mar e fardos que poderiam tornar-se rapidamente inflamáveis. suponhamos que queremos ser exactos e céleres como o amante zeloso (embora eu ignore de que falo) como o amante é só. ora não é exacto que o que arde depressa aqueça mais. suponhamos uma cidade atravessada por ventos que não aquecem nem arrefecem 108


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 109

e suponhamos o amante atravessado varrido a ponto de se imaginar vento ou corrente de ar nunca detido por quem ama e nunca compelido a deter-se – apenas a embarcar em todos os sentidos. suponhamos que em vez de amar se pode supor ser vento ou apenas brisa menos que ainda.

oxalá escrito nos ombros e nos rins e na nuca e na boca o amor não se suponha nem se admita e para nós sobre e saia como poente impossível às facadas e às golfadas pela frente e por detrás.

que nos reste como resto de texto contra seu texto dizendo adeus a si mesmo perguntando a rodapés

109


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 110

de um dizer circunvizinho o que levou descaminho e o que se escavou ao lado atrás de pilhas de livros impossível distinguir-nos enquanto não se esclarece se são eles barricada e nós quem não adormece se nós barricada somos e eles sempre despertos

porque nós sempre dispostos ao ser não ser dos amantes agora sim todo o sim agora não todo o sempre agora não sempre todos sempre sim se não agora a confidência entre os dentes e a confissão posta fora como perna entre lençóis medindo temperaturas em graus abaixo da febre e graus acima da cama porque lombada a lombada o modelo é de trincheira e já não de barricada

não é porém de ânimo leve que se sobe ao primeiro andar para avistar terra como se a única missão de quem vê

110


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 111

fosse usar a roupa do visível até ao fio sim agora não os ramos a que nos agar ramos todos eles quebram e nós debaixo da velha árvore estatelados

então os pássaros batem as asas em debandada aplaudindo as nossas quedas aparatosas ou o lento içar da bandeira de rendição que é o corpo mais o corpo flutuando

agora assim a própria árvore que também éramos tentando arrancar-se à terra tal a velha meretriz não consegue sair da cama dizendo para consigo que caiu de sono e passou a noite eterna no olho da rua passam-se os dias agora sem o céu abrir os olhos sem que nos abram os olhos sem que esses olhos nos abram sem que os olhos abram céus os dias agora sim no serviço dito noticioso

111


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 112

não passa entretanto um dia sem que ouçamos dizer à queima-roupa da boca de um senhor do mundo: «enterrei o machado de guerra e também o cachimbo da paz» o sol nasce embrulhado em jornal e agora sim a terra tornou-se o lugar do elo forçado e ao mesmo tempo o pequeno alvo que só uma seta perdida pode atingir agora não mas sim se me disseres em confidência como eu pressinto o luto por ninguém usado – ousado... pois em sonhos morre gente que nunca em vida existiu nem sequer em sonhos

porém eu estava lá à cabeceira e morri tudo quanto havia para morrer


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 113

HERE COMES THE S

Olhas com mais olhos do que olhos e só vês que nada me acontece apenas um sol fantasma ou um fantasma de sol por trás de mil

Olhas e com olhos de mais olhos vês-me bifurcar onde não há cruzamento chamar baixinho onde não há quem ouça rezar em voz alta porque deus é surdo como uma porta falar com a parede porque as pedras não se queixam e só a mim se queixam na vertical Olhas de olhos postos como sóis como se eu tardasse a nascer e a ser poente simultaneamente.

113


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 114

Poema com pés e cabeça

Entre as turbulências do silêncio encontro o tempo de ler a correr uma ou duas frases sobre a origem latina comum das palavras cão e gato e fico a acender a luz do dia com alguns pensamentos bem humorados sobre a expressão «ser como cão e gato». Sei que este modo de reflectir não te parece ocupar lugar mas terás de recordar que eu fui ao baile e voltei com beliscões não apenas no meu orgulho. O sofrimento, estás a ver, é o princípio do pensamento e não apenas o princípio. Depois não faltará quem confunda em si e em mim ousar saber com ousar não saber fazendo da confusão fundamento talvez mesmo origem.

Poderia sem prejuízo para o delírio onde não te achas ou perdes, pedir-te que consideremos de coração nas mãos que ontem se deram todas as tentativas de fracasso

114


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 115

e a razão pela qual foram tão bem mal sucedidas.

Poderia sem dano para o hedonismo triste que nos rodeia de palavras ilhas por todos os lados confessar-te em voz quase alta – a ti que sempre te desdizes sem que o engano te mortifique – que eu não pelo contrário mas ao contrário do contrário sou feita da fúria do perdão e do arrependimento. E corro ainda que me vejas não sair do sítio onde me vês ofegante. Corro dos pés à cabeça. Nunca me alcanço.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 116

Saí de casa dos meus pais pela janela saltando e ao contrário do trovão levando uma eternidade a pousar os pés no chão.

Entre a casa e a rua que não minha galguei muros que pariam e passeios que dormiam e calçadas que fugiam mal se sentiam pisadas. Saí de casa e do corpo saltando pela janela ao contrário do vulcão no pressuposto optimista de que uma boa cabeça me há-de servir de chão.

Onde estás a esta hora que não me abraças amor sabendo que eu saí e que ainda estou saindo tentando sair entrando até me abeirar de ti?

116


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Pรกgina 117

116


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 118

PINTURA E CINEMA

Voltar de mãos assim ao dependuro como assassinos sem a certeza de que elas que mataram ou viram morrer pertencem ao mesmo corpo que os olhos dependem do mesmo sorriso que a barriga Voltar de mãos vazias criminosas e abrir caminho se houver gume de cortar a eito Abri-lo no sentido da partida e do regresso a quente sem que por isso se torne transparente o que vai e o que vem além de quem

Voltar de mãos abertas e calafrios na espinha caminhando à cadência do espantalho com terra nos olhos e na boca mas sabendo a sangue sabe deus porquê Voltar a abrir os caminhos que partiam do caminho pesados como páginas da história que ninguém quer virar Voltar a pisar o que já foi esmagado assim seja vinho a escorrer dos olhos e não lágrimas

118


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Pรกgina 119


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 120

LÍNGUAS DE GATO O vernáculo que remete para um falar próprio dos nativos de um certo território incluindo (com indisfarçado orgulho) toda a gíria e o calão toda a expressão bendita ou dita idiomática provém de um vocábulo que em latim designava o escravo dentro da casa do seu amo e senhor. Parece então que na fala do carroceiro e do escrivão do mareante e do moço de recados – bem como noutros domínios concretos mas não indiscretamente materiais – o seu a seu dono pressuporia que: houvesse a quem volver e devolver houvesse a quem recorrer e repelir houvesse uma razão de sobra para não sofrer que a obra remetesse para a sua origem.

120


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 121

E se nos pinga esta tinta para verdade mais negra a escrita não nos sossega até que manhã permita.

Sempre que abrimos a boca um bafo de amor nos lembra que se ficámos falantes o fomos em casa alheia. A cabeça acordou cheia mas a barriga vazia.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 122

Talvez tapes os ouvidos para me escutares uma vez acabada a conversa e o passeio de assunto para assunto interrompido pelo mau tempo ou pelo bom tempo ou pelo tempo contado ou pelo tempo ocupado ou pelo tempo passado.

Fecha os teus olhos também e deixa que te dê agora a mão como se entrega um bicho a quem não sabe o que fazer com isso. A mão que não coube de contente em mim ao cabo do meu braço que cresceu a ponto de ser ponte sobre azul é o contrário da mão beijada ainda assim... Com os pés a nadar nos sapatos e os sapatos a fugir ou quase aos pés permite que eu me faça vagabunda incapaz de medir a passada e o tom de voz ou de mudar de fato consoante a ocasião perdida. E admite, meu amor, também que eu tenho eternidades à espera de serem eternamente gastas 122


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Pรกgina 123

e outras que me cobram o atraso porque me apressei onde nรฃo havia melhor motivo do que a pressa. Talvez tapes os ouvidos e vendes o olhos como quem tira a mordaรงa. Para escutares a conversa que em ti minha vez comeรงa.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 124

Em todas as estações e apeadeiros uma sala de espera e uma sala de esperança...

Só tu sabes que eu já moro junto ao osso e sorrio com tristeza de estátua para não despertar os risos que magoam os comboios que circulam rumo ao abismo o chamamento pelos nomes que são cargos ou fardos. Só tu sabes porque não mo prometeste o céu de obediência azul e a terra de desobediência. E uma oração entre dentes sussurrada ora só de vogais feita ora só de consoantes. E uma língua siamesa de sua mana serpente como dantes.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 125

Posso eu como a espiga minha igual mudar de caule e de verso conservando a qualidade dos grãos assim agarrados a mim sua filha e mãe de se manterem unidos mesmo quando debulhados e caídos numa terra que por um feliz acaso não é pátria de ninguém? Sendo linha e fino sulco no gotejar, salpicar, pronto a sujar de sentido qualquer logos de lugar – cuja roupa é uma figura cujo mapa é uma cara – aquilo que aqui se desprende não toca fundo ou fronteira porque nem busca esse primeiro nem atrai essa segunda. Ó escrita de ser imunda dura espiga ou só madura sempre mais porque de mais.

Porque sujar de sentido o que à custa de limpeza era já quase masmorra e não suspiro em seara e não soluço na horta e não uva atrás da parra

é meu serviço insubmisso.

125


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 126

SAGRAÇÃO

A asa colada ao vidro ou a boca ou a folha de uma carta sem destino nem destinatário a não ser quem a recebe por acaso

O silêncio ao vivo e o tumulto do túmulo para que de novo se escutem as mentiras piedosas pois que se ignora ainda se a piedade tem outro beneficiário além de quem na prática e na teoria aquém Vá que na praça é quase primavera e as cores estalam de prazer como se tivessem sido pintadas há milénios sob o mesmo sol que as ilumina mas mais moço e mais seu

Vá que a praça cabe na mão e a mão cabe no cosmos e o cosmos na gaveta das camisas

126


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 127

À REVELIA

Não tenhas medo dizias. É só farinha dizias.

E que mal teria então meter a mão no saco e enfarinhar a cara com a mão que sairia sem truque muito mais branca?

Respondo sim prontamente agarrando esta barriga com as mãos e fitando o vasto céu azul e azul desmaiando ou talvez demasiando pois já sem ponta de sangue... E que mal teria então esquecer lá dentro a mão trocar de corpo e de arquivo proclamar a américa de bolso e os estados unidos do ser vivo?

Não respondo com bons modos porque ninguém me pergunta. E se julgam ver-me só é tão-só por não me verem e tentarem apagar a luz que faz companhia. 127


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 128

eu não sabia de mim nem de mim saber podia – segredaram-me ao ouvido que aquele que a dor promete só se cumpre em alegria como se alguém nos ouvisse como se além nos houvesse esta é a lição do pequeno dada a quem quer recebê-la por quem ama pela rama e ao cabo da boca crê que a alma fica em segredo como se alguém já escutasse as falas do pensamento lição ou ferro malhado numa casa de milagres onde a porta se abre apenas por raríssima excepção: é lição e dá-la em vão por mútuo consentimento

escrever este além desejo como se fora na folha acto e relato a um tempo caravanas de poente maré de povoamento

escrever entranhas estranhas e pedir-te que procures o verso que é invisível no poema que se apaga à medida que o lês

128


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 129

A LOJA FECHADA PARA OBRAS

Vestindo a tua roupa irreversível não te atrases, boa noite, ó conselheira que eu busco menos forma e mais maneira gritando a quem me julga inaudível Suspeito que a matéria me é rival e abusa em me pedir cumplicidade mais dura e mais dúctil nesta idade mais fútil e mais fera quando é útil

Tomara eu calar como quem pode cavar como quem come e mostrá-lo fardar como quem canta e fazê-lo falando em seu igual para outro igual


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 130

O FANTASMA DA CARTA

No princípio era nada quase nada um ninho vazio apenas nem ave nem ovo apenas.

Mas agora é mais que texto mais agora que pretexto não tanto lar doce lar mas mais.

Pois é carta há muito escrita e há muito não enviada responde a tudo e respira deixada a um canto da casa não por ter sido esquecida. Ler-se-ia em voz mais alta acima do sono solto e da beleza já surda porém não se lhe conhece ou revela o paradeiro.

Longa frase nos vigia pesada como destinos em tudo subentendida como seu destinatário e a cor dos nossos desejos.

130


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 PĂĄgina 131

Para morar como morta fora mas dentro da coisa essa prosa vigilante respira ao ritmo inconstante deste servo verso e serva cujos passos estĂŁo contados. Oh poder mudar de linha atravessar sem olhar a rua que me separa desse horizonte de escrita sabendo que a frase esmaga.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 132

Ao nascermos era tempo de cinema já falante em que a luz sabia a pouco e a palavra empanturrava por não parecer distante.

Mas à luz nunca bastante a mais velha mais-valia... E a escola à revelia como uma esmola humilhante na rejeição nos juntava. Semeando paraísos no encalço dos mendigos amantes em cama incerta, a todo o vapor amigos cada qual sua legenda...

Deserto em jardim desperta tu quixote e eu alerta futuro que se desmancha tu archote e eu ofensa em teu porte sancho pensa. Se é moinho, não me canso, e às velas presto tributo corveia, talha e mão morta, mas pelas nuvens eu luto punhal em lugar de aorta.

Locais de encontro não faltam – porém em que língua marco terreno que só pertence ao céu servindo de cama ao chão servindo de manto?

132


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Pรกgina 133


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 134

Lavar-se em águas profundas é trazer toda a lama à superfície. Porém ninguém exigia que eu acordasse de um sonho e o mantivesse à tona antes de entrarmos noutro. Eu e apenas eu me deixara envolver em intermináveis querelas e já não resistia a resistir contra o despertar imediato contra o lento adormecer e contra o próprio sonho supostamente exacto que me colava a mim mesma como um rótulo

Em águas tão profanas tão profundas eu me lavei pois trazia à flor da pele paisagens de raciocínio estradas por entre cabelos e olhar que parece triste por jamais se rebaixar a quebrar onde partiste. O destino não é isto. Isto é: já não existe.

134


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 135

Eu beijei a boca de Babel sem querer arrancar-lhe uma só frase e trepei às palavras mais agudas sem querer encostar-me às sílabas. Mas aninhei-me aos pés da torre como uma gata gigante ronronando para deixar de ouvir as ordens gritadas e o fogo cruzado que se lhes seguia.

Sim, como tigre me comovia na espera de pisar o meu próprio risco. Eu beijei o incêndio e a fonte. O incêndio. E a fonte.

Boca a boca não mais respirei. Apenas vi com a língua. E escrevi.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 136

Vou escrevendo à luz da língua sem querer e sem dizer o que quer isso dizer. Escrevo e a dor introduz-se por onde falho e me engano. Chamar-lhe-ei oceano à dor que erra e tão pequena sai de mim entra por cano, pobre mar engarrafado...

Escrevo, troveja uma flor e a árvore mais efémera a fogo está desenhada no fundo destes meus olhos que me trocam por palavras e por mãos sem dama ou dona. Escrevo onde já não me sou onde caí fulminada.

Escrevo e já fujo bandida onde me apanho e me prendo. Escrevo onde vai doendo e onde não sou chamada.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 137

CANÇÃO DITA DO CELEIRO

esse que nasceu na neve dizia a quem não podia ouvi-lo que a montanha não faz perguntas

esse que nasceu falando como mestre dizia a quem não podia ouvi-lo que a montanha não dá respostas era mentira mas ele não sabia que o sabia apenas se repetia como quem dobra roupa e arruma no gavetão com perfume a esquecimento

esse que não nasceu no ouro da palha mas fala alto como se quase me perdoasse não vê no entanto e estranhamente não sente o que de mim vem depois de mim e quem também entre aqui e aquém misturando a luz e o pó tecendo a matéria e a pausa nos seus olhos grandes como tachos de actriz já ofuscada que chora para limpar a maquilhagem o seu não ver o que vem nem quem são as linhas com que me escrevo cortando rente ao que creio lembrando nada após nada

137


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 138

POP UP

Estaria num lugar que eu medisse com a ponta das minhas pestanas talvez órfã cega de sol e viúva de mar marsupial. Assim tu espremesses o suor dos meus vestidos deixasses a música pingar dos teus cabelos rezasses ao lado de um pastor alucinado e amasses as costas das minhas mãos.

Chove timidamente como a ternura das coisas que não podemos dizer a quente. Chove no meio na cama para molhar humilhar para melhor e pior e essa água corre até ficar mais cansada do que os próprios corpos acusados de estarem no lugar um do outro inseparáveis. Estaria num lugar onde ninguém pedisse para o tempo jogar em nosso favor porque adiar magoa e magoar adia.

138


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 139

SINE DIE

Despregou a tela onde o mundo estava há muito pregado e levou o rolo debaixo do braço.

Nem pregos nem tinta nem pano nem cola o mundo é mais leve que a pasta da escola.

Não venhas agora com mundos e fundos outros fundos outros mundos ou mundos que não existem quando este é leve e caminha rua abaixo e rua acima. Sabemos, amor, sem falta que chegou a Primavera quando a voz da poesia já não nos deixa dormir.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 140

Dizer que lhe caíam pelas costas os cabelos e que juncavam o chão desolado por não poder ir mais longe do que chão sobre chão, dizer que lhe ardiam as pontas dos cabelos e que por onde passava distribuindo queimaduras com sorrisos de madeixa cheirava a lume, dizer que das raízes dos cabelos nascia uma floresta impenetrável de palavras únicas, dizer que eles escorriam entre fissuras de luz no escuro e eram torrentes de céu, porém fazia-se tarde, tão tarde que a cabeleira fora de horas tinha como graves companheiros de tiro e queda esses raros cadáveres de guarda-chuva tombados na calçada duma noite a preto ou branco, porventura a preto e prata, cometa cauda nem vê-la, dizer que até ficar careca se lhe não vira nunca o corpo por detrás do biombo de crina farta, só o mundo inteiro para além dela se despia corando de verdade e vergonha mas só amanhã isso aconteceu.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 141

Amor, onde mora agora o vão dever do devir se a minha mão se mostra para melhor se esconder? Lúcida ou cega de mais, loba amante mater cabra basta que a porta se fecha para que outra já se abra.

Mas não aquela em que toco.

Se há mais portas e batentes onde tocar e bater e a rua mostra os seus dentes ou as garras da guitarra para arranhar e morder, eu te peço, meu amado, que não risques e apagues cicatrizes e cesuras alinhavos e remendos costuras onde sou rasto.

Para ferir eu não basto porém em ferida sobro eu me curvo eu me quebro me vergo ajoelho dobro sangro da boca que escreve não pelas pernas abaixo.

141


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 142

O LIVRO DOS MORTOS

Entra sim mas não repares no estado em que a casa está. Não repares no que vês por mim já não vale a pena o estado, a casa é pequena, e os olhos sempre cruéis. Se entrares fica então sabendo que o corpo só de si fala se de pés e mãos atadas e se paisagem correndo tapar todas as entradas. Não passes além da porta e escolhe um ponto de vista que te dê razão de sobra para não seguires em frente – quem irá adivinhar que não mandas, obedeces, que escutas e não te ouvem? Não entres, nem que quisesses não poderias galgar o estorvo que significa chegar sem ser convidado. Existe um pacto do corpo com o espaço e com o tempo no primeiro o corpo pára no segundo julga andar. Em vez de quereres entrar onde nem porta nem fecho repara no que há lá dentro e não esqueças que a nudez vestida como castigo 142


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Pรกgina 143

e usada no pensamento por desgosto delirante viria a ser castigada. Ou seja: se nรฃo entrares darรกs a subentender que sรณ de livre vontade que sรณ por vontade tua ficas no olho da rua. Quem sai da mira dos deuses passa a ser presa dos homens. Ou alvo em movimento.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 144

Tratado

Paisagem de pele somente onde agora tudo aflora nada se abisma ou enterra e o amor se aprofunda. Só a pele mente

– paisagem onde não abunda gente e não onde a gente abunda.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 145

Estão de visita os fantasmas e como não recebê-los de peito e braços abertos? Mais do que familiares eles se afirmam família nossa variavelmente próxima e longínqua é conforme o nosso atrevimento. Estão de visita e como não atrasar as razões de virar costas ao que não tem frente? São capazes de nos atravessar e de se atravessar nesse caminho que reconhecem nosso. Sem variações. Estão de visita e vêm comer à mão. Depois comem a mão mas deixam gentilmente o polegar pendurado nas forças que nos restam e que gastaremos a chorar. Estão de visita os fantasmas e gracejam divertidos porque segundo nos dizem fomos mais que prevenidos. Sim estamos a ser visitados e talvez já confundamos olhar com ameaçar quando não somos olhados.

145


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 146

ROAD FOR THE ONE

Há o escuro que sobe e desce escadas e o escuro que faz gala em seus sinais. Há mesmo alguém por detrás. Alguém a mais.

Há alguém que traz a paz sob um disfarce e um disfarce que nos serve de refém. Há quem não precise da história dentro da história. Apenas estrada fora e um farnel cheio de pomos da discórdia.

Mas só uma cantiga de embalar poderá sem mudar de trajectória ir directa ao que é memória de um assunto Se aquilo que cantando te pergunto dormia muito antes de dormir não digas, meu amor, que te desperto.

Diz-me o que te foge e de que foges diz-me onde se esconde o que te esconde entre letras e entre linhas entre páginas roubadas ao enredo...

Possa o meu pó ser-te estrada e doce berma bruxedo a olho nu e manto de magia já cá não está quem passou e já chegou quem fugia.

146


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Pรกgina 147


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 148

À entrada do templo, descalcei os pés sujos e cansados como crianças. A meio do templo, tirei a cabeça e escondi-a atrás de uma coluna.

A quem pertencem estes pés imundos? gritou a deusa fazendo coro consigo mesma? Felizmente, eu não podia ouvi-la estava surda de mim própria e tinha o tempo todo para me reconstruir em alta enquanto que o templo entrava lentamente em ruína.

Porém se toda a casa é rascunho merecendo por isso o respeito sem limites das coisas que melhoram com o tempo, eu não passava da derradeira emenda por cima da qual a menor rasura faria em texto meu o estrago de tornar mais ilegível tudo aquilo que não era ou não era apenas eu.

148


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 149

Caminhas sobre águas doces como se foras eu não conheço este homem como se foras páginas de rosto como se foras primaveras e outonos a bordo remando contra o sangue dentro e fora das veias e pintura descolada da tela suando cores nas pregas e nas rugas

Caminhas sobre tinta forçando o divino e o destino e tudo o que não se conhece.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 150

PROUST INTUIÇÃO I Sonhei que sonhei ou pelo menos prefiro pensar nisto assim como sonho de sonho já fora de mim. Sonhei que algures me morria uma filha que eu não tinha. Tinha amontoado fardos – de palha fresca ou roupa suja isso não sei – para se elevar até a dado lugar onde podia ouvir música. Porém caiu no seu próprio abismo antes de lá chegar. Sabíamos que ela viveria adulta e sem memória da queda noutras partes que eram apenas suas. Mas isso não me consolava apenas me chamava à razão.

150


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 151

II Raramente trazes coisas da rua e dou comigo a pensar que costumas trazer luvas apanhadas do chão. São de senhora ou criança e pretensamente íntimas como lenços vêm sem a sua dama. Ou talvez não.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 152

VOZ DE CARNE PAPEL E FACA E porque a paciência vinha a ser a melhor arma da impaciente já sem saber que o fazia eu te esperava, arrumando guerras mais frias estios mais quentes em gavetas indiferentes.

Mas tu buscavas provas de inexistência em qualquer coisa por instantes minha enquanto eu saudava leves e lentos os momentos da tua voz lendo e de cortar o fôlego não percebendo nunca nem querendo a razão pela qual era tão raro agarrares o fio do que não leras ainda deixares vir por tua livre mão esse sotaque rebelde e o desejo que não se adia da leitura de cada dia.

152


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 153

A plenitude parece não chegar aos calcanhares do vazio. Mas é seu desejo beijar-lhe os pés. E é seu desejo parecer que os beija. E ser, nessa parecença e posição, como um sol que se põe. Que ousa pousar-se. Depravar-se. E até desaparecer.

153


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 154

em tempos de Primavera envergonhada quando os dias e as coisas nos caem das mãos sem nós suspeitarmos como e onde eles elas foram lá parar

quando a porta se fecha em tempos de Primavera desavergonhada mas tudo quanto fecha fica aberto também o batente trémulo

a pessoa a quem amamos pode queixar-se mudamente de maus tratos porque intenções e actos enjeitam o filho tardio enjeitam o cio e as palavras então dirão quantas vezes e apenas isso

154


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 155

SPOT IT STOP IT

Sim, agora vejo do outro lado da margem qualquer coisa que se agita um pé um peixe um sapato pendurado num anzol. Sim, estes meus olhos de chupar veneno no curto lapso de tempo que separa qualquer coisa da sua morte, estes meus olhos em branco zelosos de preguiça que os guia avistam agora as pequenas encenações para eles montadas na outra margem. É fim de tarde e fome de noite. Pousei a mão na barriga como se fora uma nuca e de lá saíssem frases fragas fragrâncias e fadas sangue na farda às golfadas ou na curva da cabeça mas sobretudo esta falta que já sinto e me permito de haver fora de mim a vontade de conversa.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 156

A HERÁLDICA DA FOLHA Virar páginas – saltá-las para trás – às arrecuas pois haverá que encontrar os tempos mais que volvidos em que do céu se falava com os ossos já comidos pela terra. Entre linhas e nervuras cavam-se quedas em poço espelhos de travessia passados muito esperados nas inúmeras esquinas desses corpos derrotados que por amor nos venceram.

Queixam-se os homens por vezes de jamais terem pedido para virem ao seu mundo. Mas nada no universo reclamou ter existência e o fundamento de ser é ser vencido à nascença. Por isso o amor se pensa como desejo primeiro a tudo o resto anterior.

156


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 157

Repetir como se agora desdissesse aquilo que jamais me foi forçado entregue com leveza de recado mas sem o tom que ao objecto conviesse. Repetir por ironia certamente contudo contra a sua obra e graça se um dia nos apontam mordidelas do estilo que só ferra nas canelas.

Repetir porque ensaio e lançamento terreno onde esta queda é experimental sabendo já de cor improvisar um texto só do próprio tempo feito. Repetir porque tudo se repete até chegar a hora e não seu eco de sermos a bagagem extraviada e também uma partida irrepetível.

Repetir o que parece repetido com pudor da dor que soa a novidade e com medo da origem que se esgota no vestido que se usou até ao fio à falta de alegria e de vaidade.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 158

IMÉDIA

E que farei com estes ombros estes seios se me rebentam nas mãos outros vulcões se o sorriso te parece lento luto se o silêncio te soou a confidência? A paixão é pedregosa. É declive e encosta. É ascensão. Trepar sem galgar sem saltar etapas. É o pico a cada passo em frente e o cume a cada olhar que se lança ao caminho percorrido ao caminho a percorrer duvidando contra tudo e contra todos que seja e que não seja o mesmo. E que farei com estes joelhos aos quais o chão se agarrou quando se dobraram pela primeira vez das vezes? E que farei com a cabeça que me subiu à cabeça?


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 159

EU COLAPSO

de todos os lados me apontam armas de brincar e por todos eles me apontam maus pensamentos quando eram apenas pensamentos o céu dá-lhes com um pau a terra dá-lhes com os pés

e eu duvido que o meu guerreiro esteja em vida nesse campo de morte que é a forma de expressão

de todos os lados me obrigam a imaginá-lo tombando epifania contra puzzle quebra-cabeças contra causa consequência contra ciência mas o meu guerreiro é legião de borboletas e colónia de crisálidas.

o que é que se pode fazer contra uma criatura assim como eu incansavelmente cansada e por isso já não?

159


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 160

Há uma morte de trazer por casa uma morte mimada que deixou os seus brinquedos espalhados pelo tapete debaixo da mesa e da cama. Há uma morte fulminante tão dentro e lá dentro que obriga toda a gente a sair à rua em busca de improvável cura para a vida que não dura. Há uma morte que rega os vasos de avencas levanta a cortina do lábio superior e a bainha da saia para que se lhe veja o sexo de nascer e morrer ao mesmo tempo e o seu sorriso de alicate. Há uma morte de passeio com trajo mas sem contorno definido e o seu andar é de chapéu que o vento leva é de lenço que a mão larga. Há uma morte tão culta e literata que não mata. Há uma morte por atacado em loja de grossista mas como é branco e delicado o empregado que avia as encomendas como se ele mesmo fizesse parte do embrulho e da mercadoria. Há a morte deste dia em público para que não seja vista nem achada 160


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 PĂĄgina 161

apenas vala apenas comum apenas pira incĂŞndio de lira mais quente do que o lugar vago onde se espera o inferno.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 162

Vinham hordas de inimigos com braçadas de flores para eu beijar e espezinhar para já nem me lembrar do peso dos meus passos soletrados veras respostas à letra e para que não recorde a estação de pé a estação sentada o estio em declínio a extremidade de tudo.

Vinham altruístas como prosa que me couro e me cabelo cabedal se o tivesse já nem vê-lo e eu era a felicidade da louca que encera as escadas com os dois joelhos até a carne e a madeira serem sangue e era a felizmente crente porque a escada levava até ao céu mas eu só aprendera a descer ou a subir às arrecuas. Vinham e eram nuvem sobre nuvem até apagarem a linha que me servia de horizonte e de baloiço e de ponte. Porém eu nada choro quando observo pois contrário a mim mesma é servir -me ou observar -me.

162


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Pรกgina 163


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 164

A nossa história paira por cima de outras e de si mesma cruzando-nos em atlânticos e pacíficos com espécies em vias de explosão.

Mudando de tema mas não de conversa conseguimos ouvir-nos a anos-luz do lugar donde falamos com eloquência de gagos com aflição de jovens velhas mães com delírio de moribundos com alegria de parentes afastados com a surdez prática dos grandes náufragos e do bicho mulher dentro do bicho homem.

A nossa história conversa-nos e diagnostica-nos por ser doença da qual se desconhece causa e cura mas ainda assim se trata com toda a intimidade. A nossa doença é histórica contrariamente à crónica dos astros e à voz cónica dos arautos e à volúpia chique dos maus pagadores.

A nossa história rói-nos e reconstrói-nos é o castor e a sua casa a bordo de um rio com infindo retorno.

A nossa conversa faz subir a temperatura e para baixo nenhum santo a ajuda.

164


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 165

A nossa história é muda mudança assim a dizias e rias porque ainda não sabias até onde.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 166

último minuto. primeira hora. o pássaro não conta as penas que perde. apenas as perde. e canta. tu. vinhas à velocidade de mil noites. ou. vinhas com quase mais de mil tapetes ao ombro. ou. eu era uma. a partilhar por mil noites debaixo do céu que só tu desenrolavas e voltavas a enrolar. como tapete. tão-só poeira de estrelas incondicionais.

ora. quem sacode estrelas colhe histórias de tormenta incontáveis a quente. mas. arrefecidas entre os dois cantos dos lábios.

mas. os sábios cansaram-se de saber.

166


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 167

CEDO ERGUER

vinhas só como se não trouxesses uma criança sob a chuva de verão, vinhas só e levantavas a voz como se fosses esse que viaja de mão dada com uma criança roubada ao madrugado da madrugada, vinhas só e ouvias chiar o meu corpo como uma carroça em tempo de estrada e a chuva de verão tombando me fosse e fizesse criança muito cedo levantada talvez para nada para nada mais para nada menos vinhas só e no frio do túmulo aberto a tua voz ecoava afastando a hora de fecho do verão à prova de bala a criança na criança inabalável como luva dentro de luva a chuva por entre a chuva a chuva cirúrgica a criança em urgência hospitalar a voz mais que nunca hospitaleira e vinhas tão só como se já não sentisses falta do que roubaras e do que te roubaram em criança até e o verão inacabado inacabável no limiar do túmulo voltasse de mão dada com a criança e com a voz levantando a mesa, a sobrancelha, a perna, o cerco, o castigo, o voo. 167


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 168

1 Quando o nome se perder não falhará a memória a quem se viu rodeada por sinónimos de vida e paráfrases do nada. Não falhará o que falha e só por falhar se prova como existência impensada dinamitando a muralha para calcetar a estrada.

2 Quando o nome se perder e não der sinal de si a coisa ao nome ligada, quem se viu a vida inteira a esse medo abraçada mas pelo medo liberta – como se escapam vapores aromas, hálitos, auras, que o corpo já não agarra – fará da tábua mais rasa uma montanha.

3 Nasce a ferros o lugar e serve a todos os amos que jogam às escondidas contando até mais que cem.

168


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 169

Porém o olhar não pode repousar na imagem com a qual faz corpo nem o corpo pode repousar na margem que o rio lhe dedica nem mesmo na moldura bradando bruma bordando nuvem.

Porém o olhar não pode repousar no escuro com o qual fez aliança nem esse infame laço prende ou solta do dever de ver aurora a hora certa.

A luz ainda é ilusionista em seu palco falsamente improvisado procurando partenaire decorativa de meias negras picantes como urtiga e plumas de cores berrantes espetadas no lugar do rabo. Talvez o que luz nos diga o apego dos mortais às coisas que todos tocam por serem imateriais.

169


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 170

com a mão mais insegura se cava funda uma ideia que serve de sepultura.

contudo a eternidade ficou ao virar da esquina e dura um virar de costas.

usa os nomes da infâmia para ocultar muitos outros que lembram esquecimento... perante esse prazo imenso te juro que farei face e ficarei frente a frente – isto é: velha imatura.

pois face a face não busco o que não trazes nem mostras quando me viras as costas. repara: a terra fumega fingindo que foi criada ontem e só hoje olhada.

amor, escasseia o nada, há pois que distribuí-lo racionando o seu consumo.

170


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Pรกgina 171

eu em ti me sigo e sumo instalada em vรกrias eras e entre as vรกrias migrando por afecto e afoiteza...

guardo mares na gaveta mas nรฃo arrumo o que guardo nem arrumo o que me guarda.

provo sem ser aprovada que se pode estar aberta e ao mesmo tempo fechada.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 172

A razão queixa-se apenas das suas razões de queixa: este atalho, por exemplo, e a alegria de encontrar-te por teres tido a mesma ideia; o dia usado à cintura como grinalda de munições; e luz a tiracolo largada na primeira ocasião; ou este cair na tentação e levantar-se mais cedo porque foi difícil atravessar a noite. A razão que aqui nos traz é parecida ao passeante que ora se adianta ora se deixa ficar sagazmente para trás e o faz magistralmente pois a cadência da marcha de que é senhora absoluta é uma lição para todos quantos o vêem e a vêem passar. Mas a razão rói as unhas até a carne sangrar até ao sabor do sangue se confundir com o ferro e o desejo de gume.

172


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 173

Cordeiro mais doce ainda e dócil do que é costume morre em altares e alturas visível sob todas as costuras.

E cada vez que interroga trata apenas de afastar a pergunta que se afoga no sangue de quem pergunta.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 174

vem donde nunca veio mal ao mundo despindo peça a peça o que ainda traveste a sua fala como o jogador derrotado se sente na obrigação de limpar o tabuleiro de xadrez vem e confessa que foi assombrado e que isso lhe esvaziou o peito em lugar de lhe encher os dias mais curtos em lugar de lhe encher o luxo dos pulmões com rumores de corredor e volúpias de corrimão vem anunciando-se e também a guerra prestes a rebentar ainda sem inimigo fixo mas já com tréguas e tratados já o rol dos heróis e a cantiga sotto voce das grandes consolações


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 175

Ainda eu não lia ou escrevia já alguma gente me dizia que o saber não ocupa lugar. Ora o meu não saber esse não tem limites ao contrário do saber que eu não sei porém me ocupa e me rodeia a ponto de me fazer seu mar e sua ilha sua mãe e sua filha. Ocupa-me sim o não saber com móveis e roupas sempre novas impróprias para casa e para corpo. O meu não obriga-me a saber formas de gratidão e formas gratas. Mas o não saber nunca me obrigou a refugiar-me no saber e na busca dos seus limites. Digo mão e logo a montanha me tapa o sol. Digo outra mão e logo o sol me destapa a montanha. E assim sucessivamente.

175


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 176

O que é isto que escrevo a não ser obrigar a que me obriguem a dizer o que não digo não dizendo o que não digo mas dizendo esse pesar esse apesar esse peso a todo o comprimento a toda a largura e quanto à altura se mais fraca mais figura e a paisagem conspirando contra o muito que respira fora da sua moldura


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 177

Diante de alguém que finge não estar ou pelo menos se comporta como uma pequena vida eterna e sôfrega nasce o tampo de uma mesa imensa onde só resta o que ninguém quer petiscar e um vinho adamado a não condizer. O fingimento de alguém luar de dentro lustre de palato essa sua luz fungando essa sua luz assoando-se são sinais bastantes para não alimentarmos naturezas mortas. Diante da mesa que não se levantou alguém pensa que o pássaro só se estende ao comprido quando morre; que o pássaro só vira a barriga para cima quando quina. A noite cai sobre a mesa. E não sobre a cama.

177


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 178

Com esse ar de quem volta e traz muito que contar me houveras de arrebatar e dar a ver entrevendo o lugar onde a árvore vinga no céu a flor cresce no telhado e ninguém faz distinção entre estrelas e formigas ou entre outras contagens astronómicas. Com esse ar de quem volta me houveras de ensinar a ficar equidistante moradora e visitante a um só tempo. Sim, será árdua a missão se te empenhares em provar além do que é cozinhado o antegosto e o travo. A mais doce maioria das lembranças, das heranças sabe ainda (teimosia dos sabores...) a esquecimento e abandono como a velha ferramenta se desfaz quando ao cabo de mil anos nos quer servir. Sim, será ardente a tarefa cada vez que enfrentares contra ti e contra tudo isso que já te detém: a nenhuma ideia fixa corresponde exactamente uma certa imagem fixa. 178


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 PĂĄgina 179

NĂŁo posso ler nas ruĂ­nas mas sim no ritmo das pausas com que chega e sobe ao tecto o desejo de desastre e o seu eco.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 180

Em lugar sem assinatura nem excepção recordava a cara amuada da princesa cuja tristeza se recusava a olhar-me como eu recusava arrancar asas a moscas mas de bom grado cegava os olhos das flores. Era também eu recordada aí e então pela nudez de nuvem pelo vestido de vegetação usado até ao fio e pela própria natureza da dúvida como se fora de facto um benefício, uma felicidade, digamos, competente. Ó ama, que já tinhas calo no colo grossos crescentes nas unhas encardidas e rugas na voz de embalar, diz-me de que lado me viro para não ver o que sonho e não sonhar o que vejo. Vê bem, ó ama minha, que o meu amor trouxe respostas capazes de destruir todas as perguntas sem me deitar por terra. Pelo menos, ama, assim o espero pois vai alta a noite e alto o mar ávidos de vivos e de barcos.

180


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 181

O MAL DAS FLORES

deixará de ser como de ser se de ser como se e as mãos buscarão apenas nódoas e nomes no negro da noite pálida

deixará de ser à vez e porventura com mãos tisnadas de vestir os santos com mais expeditas de vestir os mortos com mãos trémulas de vestir quem nasce tu descolarás a etiqueta da testa e terás vontade de carimbar o meu peito o teu coração no meu peito a minha barriga a tua cabeça na minha barriga tocarão à nossa porta e seremos todos nós os dois à porta entreaberta


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 182

CANTILENA

na nossa cama há cavernas neves eternas e quentes ursos polares e solares ursas menores e escolares um livro deixado a meio recheio de papo de anjo canja de galo letrado há sangue correndo em fio rio mudando de rumo e papoilas de toucar há machados por achar gumes de seiva manchados florestas já tresmalhadas cantigas de despertar morrinhas de molha-tolos e comes bebes e bolos sonhos de faca e alguidar na nossa cama há banhos de lama lunar e fria lume que noite e dia celeiros incendiados filhos de pulga amestrados quebra-nozes-e-cabeças um fedor a mulheres presas gente que fala sem pressas aves que cantam sem dentes melodias imprudentes e as cores de todas as dores as mais fundas e suaves e outras sempre evanescentes na nossa cama há palavras

182


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Pรกgina 183

que achamos belas imundas que achamos molas emendas e achamos bolas que mandas para o meu campo o meu colo meu amor a duo e a solo


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 184

Uma vez entreaberta a arca a porta a arca a porta todas as velhas roupas do amor como que animadas por sopro ou vontade própria por montes e vales se espalham flutuando enfunando e depois pousando quase formando sendas lendas estradas. Mas se alguém ordena que voltem a pensar cada coisa em seu lugar as roupas do amor já não cabem na arca na porta e os seus vários tamanhos que a mais ninguém servem possuem doravante a qualidade por inteiro dos corpos celestes confinados na fronteira das galáxias. São corpos ácidos sem corpo. São corpos máximos. São corpulências.

184


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 185

A SUBALTERIDADE

Invariavelmente bela a mosca cola e descola da parede e da janela. Ela é presa de mil teias antes do consentimento em fundir-se o arco-íris com o rigor mortuário.

Enquanto isso e depois numa cozinha do cosmos ora as coisas se acumulam ora as coisas se esvaziam sem que lhes seja exigido calendário ou cadência.

E entre nós será dito que só graças ao rumor e por sentido de humor se declara a guerra em paz – dito por outras palavras: se encontram significados mas não o número a bordo.

Pelo que concluiremos que mesmo os mais longos prazos já venceram. Contudo ninguém se deu por caduco ou convencido.

185


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 186

são saias as páginas que escreves vira-as o vento que é dor do impudor em movimento se não te agarras à imagem à margem descolando de seu rio ou do leito vazio de seu leito e se não te lamentas do lamento cortando a respiração que era talvez esse vento

só me vejo quando fico à tua beira cavalo mordendo o freio e sacudindo com fúria aromas de maresia

estão salvas as páginas que escreves de um naufrágio entre linhas – cantavam em seu porão mais piratas do que escravos mais palavras que as escritas porém como tu bem sabes quem salva apenas pele não se salva de ser salvo

eram de lava tão secreta essas palavras matéria em combustão que forma ilhas aquecendo o oceano onde eu nascia à revelia de quem?

186


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 187

pelos beijos com sabor a sabre pela segunda esposa da esposa pelo olhar cuspido para a ribanceira pela clemência que se abstém aqui pelo esófago do poente à tua beira pelo perigo das casas em perigo pelo alfarrábio que só não pode ser lido pelo fim do futuro levado a passear pela palavra cravejada de balas e diamantes pela palavra cravejada que se levanta ainda pela palavra frente ao muro do fuzilamento por ti soldado que não reparas nem disparas e serás abatido eu te digo sê bendito amore mio


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 188

DON QUI SHOT SANG CHAUD PENSE

sei de outras coisas sem desfecho que não são histórias, nem vidas nada que se troque, conte ou coma, para quê falar-te delas sabendo que o tédio nos vigia pelo canto do olho? no começo era que verbo que começo e que ser era ser

sobra-me isto aquilo de dormir dançando de dançar dormindo isto aquilo de não fugir mesmo nos sonhos que perseguem ideias disfarçadas de outras ideias porque durmo e danço contigo por essa ordem ou outra ainda que não esteja autorizada percebo talvez tarde de mais ou inutilmente cedo que todas as histórias buscam autoria autoridade e autorização nos sonhos

188


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Pรกgina 189

se hรก nuvens no horizonte abracemos sem esforรงo a vertical horizontalidade ou seja: caminhemos osso a osso


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 190

RETÁBULO E PÚLPITO A imagem que turva a água A pedra dissolvendo a imagem O olhar incapaz mas ágil A palavra como praga. O futuro quebrando a pedra A água mais mineral ainda A imagem até ser petrificada Cada frase apesar de ser infinda.

.

O espelho a morrer de sede. O texto sem testemunha.

Diante do inaudível o galanteio magoa mais do que toda a injúria.

.

190


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 191

É escusado argumentares até à inexistência de Deus. Prova-me apenas que tu estás aqui.

.

Jamais. E já.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 192

SEM PADRÃO

O corpo manobrando por vezes rastejando até à obra

O corpo irremediável tingido de sangue e de saias de vaias O corpo de actor e anjo decapitado mas agitando-se ainda ave

O corpo raro e o seu ovo confessado sob um céu de pedra e cal azulando o sol extinto O corpo olho por olho no meio da conversa que nasce desdentada O corpo crasso desterro erro de contagem

Chamar-lhe-emos narrativa para que sofra em vida e lume a lume

o que à morte nunca se resume

192


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 193

MATINA

Manhã sem fome esta em que o sexo seca no seu caule e a cabeça em seu tronco sem saber para que lado a árvore vira a sombra o repouso será nunca merecido. Puderas tu dizer-me: o teu nome é inferno ardes sozinha sozinha te acendes e só te arrependes de ser chama e não incêndio.

Tiravas uma máscara a primeira de muitas que há muito se descolava e buscava a situação em que cair é apenas cair. Mas esta pessoa plana a ferros já arrancada ao rosto que lhe servia de parede passará a ser fachada de nada quase e quase nada?

193


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 194

Vamos falhar falando até que nos falhe a voz à custa de jamais cantar. É tarde e os olhares viajam agora em bando de passado em passado até não sermos nós.

As aparências não mentem por que razão nos iludem desde sempre desde então?

É tão tarde que se vai tornando cedo como o tempo já verbal que me destinas como o tempo já carnal que te ofereço.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 195

Falasses tu de outros anjos Estivessem eles em perigo Falasses tu de diabos sem abrigo Falasses e eu não sentisse de que ausência não tiras os olhos e de que nudez te vestes Falasses tu e eu não visse

Cometesses tu o sol de uma breve confidência ora lago ali ao lado ora céu já mais pesado

Velha cratera eu seria e sorrindo te diria com receio da verdade

de anjos estará o inferno mais cheio que o paraíso

Assim estão feitas as coisas seja ou não seja preciso falar delas 195


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 196

NÃO PAGAMOS! Há a maneira um rebentamento uma zona onde as luzes já não se apagam quando se apagam.

Ao invés do que foi prometido, logo tido como certo, essa zona calcinada, alicerce e ruína permanente, só pode expandir-se e não pode senão nos antípodas da mente.

Um círculo de fumo e mirones rodeia o fenómeno ofegante ou a imagem que dele se consagra até ao limite da profanação a mando da água. Uma vulva, uma verga e uma vela em cada mão e mais uma mão em cada mão até se esgotar a carne. Mas há uma maneira e uma promessa não cumprida, logo válida ainda, de rebentação.

196


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Pรกgina 197

A humanidade juntarรก os trapos com os corpos e o feitio da roupa serรก daqui para a frente como daqui para trรกs. Quanto mais bela a luz menos capaz de alumiar.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 198

POMBA E CORREIA As coisas prontas a comer como os frutos maduros ou o ar que respiramos são promessas de combustão. Nisto pensava eu a caminho de casa jurando a mim mesma investigar a questão. Será que eram armas isto que eu transportava na pasta tão pesada – ou pesada seria eu talvez? Não aprendi a fazer-me de leve nem ao de leve. E quem as tinha posto na pasta sorrateiramente entre livros e cadernos para depois as tirar num abrir e fechar de olhos sem que jamais eu tivesse dado por elas a não ser agora que. Queimei mais cartuchos ideias formas e munições do que estava previsto no transporte. Resta-me a memória aguda do desejo de promessa do caminho da combustão. Da investigação. E de ser o elo mais fraco. 198


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Pรกgina 199


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 200

A tua boca trémula sobre a dobra do lençol. A tua boca molhada repousando sobre isto que quer ser página para que não a vires sem eu nela embarcar.

E a bordo estaremos em estarmos ora mais perto ora mais longe de haver margens até nos tornarmos leme, lama, lume, lume ou geração espontânea de rios extravasados entre enchentes de pé de página e textos tão-só lidos em voz de luz ao sabor de poderem ser ou não ser escritos. A tua boca pousada na cara e escrevendo-se ainda.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Pรกgina 201


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 202

A paisagem obscurecida cobre-se de olhos que se esquivam mal são olhados e vistos. São olhos em fuga por entre rugas que ardem como carvão destinado a ser brasa tão-só. É noite de lua cheia. Mas quem se contenta com uma e essa ideia de noite?

Nos jardins do palácio onde passámos ou passeámos no primeiro dia do nosso conhecimento, o grito carnívoro dos pavões é de todos os enfeites cortesãos o mais justo.

Desejo que lá me busques às apalpadelas colado ao pasmo das árvores e eu leve de paixão caindo em desuso a cada instante. A paisagem obscurecida cobre-se de olhos que se esquivam mal são olhados e vistos. Sempre que reparamos perdemos humanidade?

202


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 203

Dormir um sono roubado ao mito rumando sempre àquele instante antes do adormecer por descaramento. A manhã nasce branca como carne de velha monja – então há que roubar ao roubo roubar sono ao sono e ao despertar rumando ao instante que precede o ócio e o trabalho de roubar. Dormir simulando o crime e adiando o passatempo de já reviver vivendo ou de o reconstituir. Dormir antes de fechar os olhos com eles pregados no tecto ou no céu. E acordar em tom de desculpa por ainda ser eu.


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 204

ÍNDICE

CINCO ...........................................................................................................................2 O SENTIDO DA INOPORTUNIDADE .............................................................3 Empurravas a porta ..........................................................................................................4 Numa fracção de céu inacabado ..........................................................................................5 Uma mulher de outro tempo ...............................................................................................6 CORPULÊNCIA .........................................................................................................8 tes arbres fluides .................................................................................................................9 estou sentada entre dois sonhos ..........................................................................................10 escrever mas só com as mãos ..............................................................................................11 FAÇANHA ..................................................................................................................12 andei perdida na floresta dos estames ................................................................................14 fazer dom da vida .............................................................................................................15 FRICÇÃO ....................................................................................................................16 MATADOURO ..........................................................................................................17 Nos limites do tempo a ser presente ...................................................................................18 Irreconhecível é .................................................................................................................19 Todas as caras ingratas ....................................................................................................20 SOB E SUB ..................................................................................................................22 A noite aperta agora o cinto .............................................................................................23 O galo da falésia ..........................................................................................................24 EN PEINTURE .........................................................................................................26 OBSERVANDO O SONO E A IRREALIDADE .............................................28 POMPEIA ...................................................................................................................30 ANDOR .......................................................................................................................32 colecciono solidões ..............................................................................................................33 Há coisas que só se fazem .................................................................................................34 A HISTÓRIA DO VELHO HOMEM NOVO ..................................................35 204


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 205

às vezes penso que olho para a minha vida ........................................................................36 Na hora em que a luz molhou a pena ...............................................................................37 Talvez devolvendo a fera sonâmbula .................................................................................38 MOITE ET MUETTE .............................................................................................39 Estou em vida ..................................................................................................................40 VAISSEAU ET VAISSELLE ...................................................................................41 encantar mas decantar ......................................................................................................42 a parte mais recatada .......................................................................................................44 quem dera derapasses no meu corpo ..................................................................................46 atirado pela borda fora .....................................................................................................47 LE LOUP FAIT SORTIR LA FAIM DE LA FORÊT ......................................48 Por toda a parte te espero ..................................................................................................49 A CRUZ VÁRIA ........................................................................................................50 há o trabalho forçado ........................................................................................................51 Venha então prato do dia .................................................................................................52 o amor sujeito à fome se habitua .......................................................................................53 FERRO VELHO E FERRO NOVO ....................................................................54 Não posso ler nos teus olhos ..............................................................................................56 a partir dos quinze anos ...................................................................................................57 O Caldo de Caos .........................................................................................................58 CONTORCIONISMO .............................................................................................59 é-se por um tempo o que sendo se altera .............................................................................60 poema de 1 de Novembro .........................................................................................61 cresceram flores esta noite ..................................................................................................62 o corpo luminoso é mais obscuro ........................................................................................63 fiquei como que agarrada ..................................................................................................64 cai a noite tão mais longe da manhã ..................................................................................65 A FADA DISPARATADA .......................................................................................66 poema natal ..................................................................................................................68 INICIAÇÕES AO FÓSSIL POSSÍVEL ...............................................................69 Com névoas de dicionário .................................................................................................70 É linda a melodia do amolador ........................................................................................72 SEM CENOGRAFIA ...............................................................................................73 FANTASMAS DA ESCRAVATURA ....................................................................74 A IMPREVISÃO VISIONÁRIA ...........................................................................75 POEMA DE AMOR ONDE ELE EXISTE .......................................................76 ANAMNESE DE JANEIRO 2011 ........................................................................78 O DOCUMENTO COMPROMETEDOR ........................................................80 A INCANDESCENDÊNCIA ................................................................................82 A DENSIDADE DO ACASO ................................................................................83 Dizem-me que certas solidões ............................................................................................84 SUBURBURINHO ....................................................................................................85 205


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 206

O barulho das botas do labrego ........................................................................................86 O estilo da figura .........................................................................................................87 Quem fala em sonhos .......................................................................................................88 Havia pó .........................................................................................................................89 CORREDOR ..............................................................................................................90 A IDADE DO VELHO OURO .............................................................................92 STRICTO SENSU .....................................................................................................94 morar porém não morrer ..................................................................................................96 cinÉ-rêvÉ-exprEss .....................................................................................................97 Ficavas cativa do pormenor ..............................................................................................98 o abismo que se estampa numa cara ..................................................................................99 EPÍSTOLA ................................................................................................................100 Aprendiz de feiticeiro .....................................................................................................101 Depois do torpor galante ................................................................................................102 não agora sim .............................................................................................................104 HERE COMES THE S ..........................................................................................113 Poema com pés e cabeça .........................................................................................114 Saí de casa dos meus pais ...............................................................................................116 PINTURA E CINEMA ..........................................................................................118 LÍNGUAS DE GATO ............................................................................................120 Talvez tapes os ouvidos ...................................................................................................122 Em todas as estações e apeadeiros ...................................................................................124 Posso eu .........................................................................................................................125 SAGRAÇÃO .............................................................................................................126 À REVELIA ..............................................................................................................127 eu não sabia de mim .......................................................................................................128 A LOJA FECHADA PARA OBRAS ...................................................................129 O FANTASMA DA CARTA .................................................................................130 Ao nascermos era tempo .................................................................................................132 Lavar-se em águas profundas .........................................................................................134 Eu beijei a boca de Babel ...............,...............................................................................135 Vou escrevendo à luz da língua ......................................................................................136 CANÇÃO DITA DO CELEIRO ........................................................................137 POP UP ......................................................................................................................138 SINE DIE ..................................................................................................................139 Dizer que lhe caíam pelas costas os cabelos... ..................................................................140 Amor, onde mora agora ................................................................................................141 O LIVRO DOS MORTOS ....................................................................................142 Tratado ........................................................................................................................144 Estão de visita os fantasmas ...........................................................................................145 ROAD FOR THE ONE ........................................................................................146 À entrada do templo, descalcei os pés...............................................................................148 206


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 207

Caminhas sobre águas ...................................................................................................149 PROUST INTUIÇÃO ............................................................................................150 VOZ DE CARNE PAPEL E FACA ....................................................................152 A plenitude parece não chegar ........................................................................................153 em tempos de Primavera .................................................................................................154 SPOT IT STOP IT ...................................................................................................155 A HERÁLDICA DA FOLHA ..............................................................................156 Repetir como se agora desdissesse ....................................................................................157 IMÉDIA .....................................................................................................................158 EU COLAPSO .........................................................................................................159 Há uma morte de trazer por casa ...................................................................................160 Vinham hordas de inimigos ...........................................................................................162 A nossa história paira por cima de outras ......................................................................164 último minuto. primeira hora. ........................................................................................166 CEDO ERGUER ....................................................................................................167 poema de 20 de abril 2011 .......................................................................................168 Porém o olhar não pode repousar ....................................................................................169 com a mão mais insegura ................................................................................................170 A razão queixa-se apenas .............................................................................................172 vem donde nunca veio mal ao mundo ..............................................................................174 Ainda eu não lia ou escrevia ..........................................................................................175 O que é isto que escrevo a não ser ....................................................................................176 Diante de alguém que finge não estar ..............................................................................177 Com esse ar de quem volta ..............................................................................................178 Em lugar sem assinatura ...............................................................................................180 O MAL DAS FLORES ...........................................................................................181 cantilena ......................................................................................................................182 Uma vez entreaberta a arca ...........................................................................................184 A SUBALTERIDADE ............................................................................................185 são saias as páginas que escreves .....................................................................................186 pelos beijos com sabor a sabre .........................................................................................187 DON QUI SHOT SANG CHAUD PENSE .....................................................188 RETÁBULO E PÚLPITO ....................................................................................190 SEM PADRÃO .........................................................................................................192 MATINA ...................................................................................................................193 Vamos falhar falando ....................................................................................................194 Falasses tu de outros anjos ..............................................................................................195 NÃO PAGAMOS ....................................................................................................196 POMBA E CORREIA ............................................................................................198 A tua boca trémula ........................................................................................................200 A paisagem obscurecida .................................................................................................202 Dormir um sono roubado ao mito ..................................................................................203 207


depois do regresso_Par quatre chemins 24-12-2016 16:53 Página 208

Estes poemas foram escritos em muitos sítios... Estes desenhos foram pintados em muita folha branca. Estas páginas foram compostas na Casa da Achada-Centro Mário Dionísio pelo Saguenail e pela Eduarda Dionísio.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.