Campos de batalha

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CAMPOS DE BATALHA Como se renova uma estética? Sabemos que as mutações da estrutura económico-social — especialmente ao nível dos «progressos» que esta desencadeia — se repercutem ao nível da superestrutura intelectual. O problema, contudo, desenha-se de forma diversa para o indivíduo produtor, na medida em que este deve assumir um papel activo na transformação estética, apesar de não controlar a evolução dos modos e meios de produção. No espaço fechado da estética, o critério é, desde há um século (tal como Rimbaud inicialmente formulou: «É preciso ser absolutamente moderno»), a modernidade. Assenta este critério na consciência de convenções demasiado paralisantes, que o criador se recusa deliberadamente a respeitar, ou, mais correntemente, modifica, perverte, adapta com maior ou menor grau de transparência. De há um século a esta parte, as escolas estéticas sucederam-se, como nunca outrora acontecera, mas, curiosamente, todas acabaram por elaborar novas receitas desaparecendo muitas vezes antes de serem explorados todos os domínios que abriam. Para o cinema, a questão da renovação estética põe-se com uma acuidade superior, na medida em que, enquanto indústria, adaptou um modelo único, condicionado por uma infra-estrutura de produção que domina praticamente o seu mundo: o filme «hollywoodiano». A existência de uma rede de pequenos produtores, por um lado, e a impossibilidade financeira de continuar a realizar filmes em estúdio, por outro, criaram na Europa as condições necessárias para uma total renovação. Esta veio a impor-se como necessidade quando o modelo americano foi «reconhecido» como tal pelos cineastas da Nova Vaga que, ao defini-lo, deixaram de o poder respeitar. Voltaremos necessariamente a este assunto noutra ocasião; assistimos hoje em dia ao despontar dum novo modelo — de certo modo, a síntese estética entre o cinema americano e o cinema europeu —, após uma longa fase de tentativas mais ou menos agressivas, individuais ou não, de rejeição do primeiro. Wim Wenders, cineasta europeu radicado nos Estados Unidos parece ter adoptado, deste ponto de vista, um percurso exemplar. Optámos por nos debruçarmos sobre uma figura particular do modelo, unanimemente considerada como «clássica» — o campo-contracampo — figura esta que se impôs pela necessidade de fixar certas «leis» estéticas as quais permitiram racionalizar o trabalho dos técnicos. O campo-contracampo permite «dramatizar» — confrontação — uma situação banal — conversa; obedece contudo a certas leis secundárias que constituem a regra estética propriamente dita: a simetria e a permanência. 1) A simetria: o campo-contracampo «clássico» baseia-se numa alternativa binária de planos simétricos: plano A personagem X 3/4 frente direita imagem, personagem Y 3/4 costas limite canto esquerdo imagem — plano B personagem Y 3/4 frente esquerda imagem, personagem X 3/4 costas limite canto direito imagem. Não se passa dum enquadramento em que os dois personagens estão no campo a um grande plano de um deles; os planos sucedem-se como se os raccords se operassem no limite de um espelho. Estabelece-se portanto a igualdade entre os personagens. Acrescentemos ainda que, a priori, se enquadra de frente o personagem que fala, pois estamos num cinema em que a palavra continua a ser suporte da narração.


2) A permanência: a fixidez da relação ecrã-espectador implica necessidade duma fixidez das marcações respectivas dos personagens no ecrã — Y permanece à esquerda, X à direita — e, pela força das coisas, à permanência da parte do cenário no campo e fora do campo — lei dos 180°. Esta disposição elimina qualquer espécie de surpresa. O sentido da leitura da imagem no ocidente (esquerda-direita) permite induzir uma superioridade oculta de X, por detrás da igualdade aparente dos enquadramentos. A convencionalização da figura levou à redução do seu poder significante. As primeiras modificações sofridas pelo campo-contracampo limitaram-se à adjunção de elementos que permitiam reactivar o sentido depauperado da figura. Assim, Antonioni, grande utilizador desta, roda em O GRITO uma sequência em que X de frente é filmado em contrapicado (X conduz um camião) e Y, no contracampo em picado (Y acompanha a pé a deslocação do camião); como a cena acontece em movimento, as duas personagens, que seguem uma direcção paralela, são obrigadas a virar a cabeça para conversar. Citaremos ainda um exemplo colhido num filme de François Truffaut: em JULES E JIM, o realizador enquadra as personagens de frente nos momentos em que estão a escutar (aqui o motor da ficção já não é o discurso, mas a reacção dos personagens a este); o suporte é visual e gestual. (NB — Carecemos dos meios necessários para encetarmos aqui e agora uma análise histórica exaustiva da evolução do campo-contracampo; convém sublinhar que, apesar de esta figura se ter fixado e codificado no fim dos anos trinta, poderíamos mencionar exemplos que datam do mudo; da mesma forma, os exemplos aqui expostos não pretendem ser dados como primeiras infracções ao código; trata-se antes de apontar para uma mudança global da atitude dos realizadores europeus em relação à convenção.)

A infracção sistemática das normas do campo-contracampo vai ser obra de J. L. Godard. O cineasta começa por omitir o contracampo em À BOUT DE SOUFFLE, escolha aliás que, a avaliar pelas explicações do próprio, se devem mais a imperativos económicos fortuitos do que a uma clara opção estética; mais tarde, Godard vai montar grandes planos em alternância com planos semigerais (MASCULIN- FÉMININ), sucessão de grandes planos de frente (VIVRE SA VIE, PIERROT LE FOU) reunião dos dois planos num só movimento de câmara, panorâmica (WEEKEND) ou travelling lateral (TOUT VA BIEN). Entretanto, o desejo de sistematização formal em Godard alia-se a uma vontade de agressão que o leva a renovar as suas propostas de filme para filme. Godard destrói o código, mas não permite a elaboração de um outro que o substitua; serão talvez Straub e Eustache os motores da coerência duma outra estética. Paralelamente, no cinema americano, a disponibilidade de instrumentos que permitem uma maior mobilidade da câmara menos pesada em termos de custos, traduz-se numa redução do emprego do campo-contracampo baseado em planos fixos; contudo a figura reaparece frequentemente intacta em cenas introdutórias — por exemplo, na primeira cena de APOCALYPSE NOW, perfeitamente convencional por oposição ao deboche de movimentos de aparelho que eclode no seguimento do filme (em contrapartida não é utilizada para confrontação final). Wim Wenders parece-nos simultaneamente herdar a pesquisa levada a cabo na Europa e procurar uma conciliação com o modelo americano do qual, no fim de contas, é um dos raros cineastas europeus a conhecer o desgaste, através de uma experiência vivida. Desde sempre (abrindo uma excepção para A ANGÚSTIA DO GUARDA-REDES...), a situação de duelo se evidencia central nos seus filmes. Mas as personagens só entram em confronto no decorrer duma acção que devem enfrentar juntas: trata-se, na maioria das vezes, de uma viagem — ALICE NAS CIDADES, AO CORRER DO TEMPO ou até O AMIGO AMERICANO —, logo a estrutura da oposição afirma-se antes entre as personagens, filmadas de frente, e o cenário. Em ALICE NAS CIDADES, quando as duas personagens estão dentro do carro, cada uma a olhar para o seu lado da estrada, a montagem alternada X (perfil esquerda) paisagem direita estrada/Y (perfil direita) paisagem esquerda estrada (como se a câmara estivesse entre as duas), o desrespeito pelo princípio de permanência, torna a solução visual mais próxima da montagem paralela do que do campocontracampo: os protagonistas efectuam uma viagem diferente percorrendo a mesma estrada.


O mesmo acontece em AO CORRER DO TEMPO que se assemelha a ALICE..., em muitos dos aspectos temáticos. Wenders constrói uma estrutura de base que é um falso campo-contracampo: estando a câmara entre as duas personagens, cada uma delas fica envolvida por um fora de campo — através dos vidros da cabina — diferente, cada uma segue uma estrada paralela, e a montagem passa sem transição nem choque deste tipo de falso campo-contracampo à montagem paralela. Figura-se uma apresentação de alguém a outro alguém, mas esse «outro» é de facto o espectador, sem intenção de afrontamento. O único afrontamento potencial jogar-se-ia contra o pai na tipografia, mas não há campo-contracampo nesta sequência — o pai adormece. Também não se chega, aliás, a produzir verdadeira troca — o cúmulo surge na sequência da conversa com o marido da suicidada: um está separado pela parede da cabina, os dois outros têm a mesma direcção de olhar — são escassos os instantes em que as personagens se «encontram», ocupando ambas o enquadramento, o écran. O andamento «europeu» de O ESTADO DAS COISAS é muito demonstrativo deste ponto de vista: os actores e os técnicos são mostrados individualmente, separadamente, ou em grupo, sem que a câmara possa alterar o curso da ficção que estes vivem — a câmara trabalha no vazio no pleno sentido da palavra. No andamento americano, a ausência de campo-contracampo é ainda mais dramática: o afrontamento não pode acontecer, o realizador acaba engaiolado com o seu produtor sem ter de medir forças com ele: morre — e com ele o filme — devido à falta de materialidade do obstáculo. Acrescentemos que, em todos estes filmes, a violação do princípio de permanência — ou seja o facto do plano A estar ausente do contracampo B — implica que os contracampos — que, de facto, representam o fora do campo do plano A — são todos «subjectivos», isto é sujeitos a caução. A câmara do realizador não capta a imagem do seu assassino no desfecho de O ESTADO DAS COISAS. O afrontamento — o contracampo — vai contudo emergindo aos poucos nos filmes de Wenders. Duma forma geral nos encontros com as imagens paternas: Wenders/Nick Ray em NICK’S MOVIE, B. Ganz/D. Hopper e depois D. Hopper/N. Ray – em O AMIGO AMERICANO —, situação simbólica que remete aliás para a tradição (de Ray a Kazan) e para o arquétipo. Em AO CORRER DO TEMPO representava apenas um desenlace, em O AMIGO AMERICANO constituía o núcleo inicial, mas vai tornar-se o fio condutor dos filmes rodados por Wenders nos Estados Unidos. Estes dois últimos filmes retomam voluntariamente os esquemas mais explorados pelo cinema americano: o inquérito policial — com referência obrigatória ao filme negro dos anos 40, mas já fora o caso de CHINATOWN de Polanski — e o reencontro do casal desfeito — tema mais recente mas abundantemente tratado, de KRAMER CONTRA KRAMER a DO FUNDO DO CORAÇÃO. A estrutura de base, em ambos os casos, é justamente o campo-contracampo, na medida em que se trata de combates verbais, logo a evolução da acção passa pelo discurso — no sistema limitado do cinema americano, esclareçamos, pois Miklôs Jancsó mostrou-nos, no brilhante interrogatório de VENTO DE INVERNO, que esta situação não está intrinsecamente ligada à estrutura formal do campo-contracampo. Ora, a repugnância evidente em empregar o campo-contracampo «clássico» no seu HAMMETT, para além de reforçar o carácter subjectivo da acção, constitui um índice de indecisão quanto à personalidade do interlocutor e à natureza das relações que se vão estabelecendo. Todavia, dado que a montagem de HAMMETT foi desaprovada por Wenders, não devemos arriscar grandes conclusões. É em PARIS, TEXAS que se opera verdadeiramente a síntese entre as pesquisas formais dos cinemas americano e europeu — e é neste sentido que mencionámos a propósito, o despontar de um novo academismo. Obviamente não encontramos neste filme o campo-contracampo clássico e, do mesmo modo, não deparamos com uma intriga simples e estereotipada como aquelas que referimos anteriormente. As personagens são vistas de frente, como em Godard ou Eustache, mas não falam ostensivamente para a câmara. A materialidade do espelho sem aço que as separa justifica cenicamente este ângulo; mas simultaneamente permite reencontrar, duma forma quase inalterada, os dois princípios da figura clássica: 1) simetria absoluta, uma vez que as linhas do enquadramento são por vezes sobreponíveis: o espelho latente que referíamos é neste caso manifesto; 2) permanência do campo

S.


— o lado dela, ora visto por transparência, ora reflectido; o lado dele, que não está iluminado fica por definição fora do campo, tal como a sua história até à chegada ao deserto fica fora de filme. A figura assim modificada ganha inúmeras possibilidades de substituição das cabeças que a fixidez de lateralização impedia: ele de costas, ela de frente (através do vidro); ele de frente (reflectido), ela de frente (através do vidro) até à sobreposição absoluta dos rostos. A situação não é de afrontamento, não existe igualdade à partida. O objectivo do encontro é reconhecer o outro e fazer-se reconhecer por ele. A igualdade será obtida pela anulação da luz do lado dela, ou seja da sua situação presente, mergulhada na sombra em que a materialidade do vidro que os separa se desvanece. Estamos perante uma coerência absoluta de todos os elementos cénicos — enquadramento e montagem inclusive — que intervêm todos na acção de maneira necessária. Assim, Wenders afasta-se do cinema europeu do início da sua carreira, em que a reflexão formal e ficcional não podia encontrar soluções. Não adere ao modelo americano clássico, antes o transforma para de dentro o pôr em causa, invertendo o curso da ficção: as personagens não surgem portadoras de uma história e de um contexto sócio-histórico rapidamente identificável, mas de uma ausência de história. A sua confrontação não visa a conquista do espaço de outrem — ou de um lugar nesse espaço — mas uma espoliação deste. O desfecho corresponde ao começo da sua história. Contrariamente aos filmes anteriores de Wenders, no fim de PARIS, TEXAS as personagens vão poder efectivamente cumprir a sua história. Este desenlace optimista é o contrário do «happy-end»: a derrota precedeu a batalha — pois a ideia de vencedor é o grande engano da nossa civilização. Wenders não nega a derrota; mas não procura reconstruir a mesma coisa sobre as ruínas, antes elabora outro cinema. S.


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