casamata
Casas da Alma Os Egípcios acreditavam na vida além vida e na morte vivida. Donde os longos rituais fúnebres e a preparação dos cadáveres. As pessoas do povo não tinham posses para embalsamar corpos ou construir túmulos. A fim de garantirem um abrigo ao defunto e lá colocarem seu alimento moldavam casas da alma em barro, parecidas às habitações dos vivos, e depositavam víveres no pátio.
A CASA DO XADREZ casa de jantar casa de pasto casa de passe casa mãe casa das bonecas casa de pouca permanência casa das máquinas casa das damas casa de banho casa do botão casa UTO pia casa de CORrecção
CASAMATA Estava D. Chicote de la Manca sentado e sentada à soleira na menos cómoda cadeira a que chama decisão obra e graça de um feitio zelosamente hesitante. Estava e estaria e nem isso não fora a cadeira coxa lembrar-lhe as necessidades e a verdade dos prazeres. Bebeu da primeira água bebida abrenunciada ora porque permitida ora porque permissiva e enche a barriga de sol nascente ‒ pois a manhã, essa sim, a todo o bicho careta e carente pertence Escuta por dentro o tumulto da barriga e por fora o gato em cio e a gaivota em terra. As ideias de tão novas furam-lhe a fraca cabeça entrando por um ouvido e pelo outro saindo como balas que se perdem da arma e do alvo alva. Por fim desce à rua ela ele com a velha casa às costas fugindo devagarinho debaixo de amante cega e cego amor de morar.
Lá do alto tombam pedras duma ruína previsível… Se D. Chicote caminha é por não querer morrer soterrado soterrada no seu morar luminoso. Calça sapatos de palco que agarram carne de chão D. Chicote de la Marcha viaja até haver mar para perder o lugar e tornar ao seu princípio. No ventre vazio e vago digere sem se apressar legiões de anjas e anjos que nos hão-de acompanhar em jornada mais estranha e em vida mais segunda. Sendo assim imundo imunda nenhum perdão na cozinha nenhum rancor na despensa sala de estar no entanto sala de estudo do meio sala do estado de sítio
AS FOLHAS DA PEQUENA IDADE abre-se o livro que nunca se fechou completamente e o silêncio da carne separa-se do cântico dos ossos e a carne cantante da separação é silenciada pelos ossos e a casa fumegante distribui toda a sua luz pelas janelas e as janelas casam com a luz distribuída do fumo e tu levantas-te ainda mais cedo do que é costume e perguntas-te com a voz arranhada na infância dos joelhos quantas folhas pode uma velha árvore carregar enquanto o tempo por ela passa mais velozmente devagar do que já foi costume
OS CANTOS DA CASA Pela janela via passar a cabeleira acesa e apagada a crina enriçada e escovada e o focinho dos cavalos brancos os olhos atravessados na garganta as mãos acenando a outros donos e os cães de circo montados sobre andas Rogaram-me pragas esses que eu não pressentia atrás da minha clara janela com vista para fora e para dentro mas rasgada desde sempre na fachada da casa e para sempre emprestada à pessoa do meu medo e à minha culpada de haver corpo. Por essa janela entreaberta entrava o perfume do fumo e do frio o barulho da fábrica fechada o pregão do vendedor de pernas para andar o harpejo do amolador de facas o batuque das ancas de um bando de criadas de folga estugando o passo ou de serviço para chegarem adiantadas a encontros de amor vário Ó corações passados a limpo ó roupa engomada e abandonada ó sujidade conhecida de perto ó flora das intimidades continuai sem mim
a soprar no vidro da minha janela tomado de ardência apesar da invernia por entre arrepios e suspiros ou continuai comigo como já sem mim como já sem voz
I SECÇÃO INFANTIL A A O O A O A A A A A
sala dentro da sala cozinha subterrânea quarto ora crescente ora minguante sótão desdentado cave labiríntica escavada pela toupeira corredor onde dormem elefantes casa de banho com vista para o alto mar escada de serviço religioso clarabóia incapaz de flutuar despensa cheirando a marmelada varanda baloiçando ao vento lento
A A O O A O A A A A A
sala espumante cozinha clandestina quarto do molusco sótão com ponte à lua cave onde se enterram os novos gatos corredor de fundo escada com degraus de cristal casa de banho forrada a espelhos clarabóia cega despensa quase vazia varanda quase inacessível
A A O O A O A A A A A
sala buscando o sul com seu ponteiro trémula cozinha em miniatura quarto escuro dentro da câmara clara sótão onde dormem fantasmas de criadas cave repleta de armas e alfaias corredor para veículos lentos casa de banho aos quadradinhos escada de caracol babado clarabóia sem fio umbilical despensa em tempo de guerra varanda da velha Julieta
A A O O A O A A A A
sala em chamas cozinha no meio do palco quarto em kit e tac sótão aceleradamente imaginário cave atravancada de nuvens corredor das correntes de ar escada que conduz a si mesma clarabóia fracturada em mil vermelhos despensa reservada aos forasteiros varanda de pompa e aparato
A A O O A O A A A A
sala de espera e de esperança cozinha onde só cabe uma pessoa quarto com cama de corpo e meio sótão às costas do ciclista cave transformada em dormitório corredor que acaba onde começou escada lavada com sabão macaco clarabóia aberta à chuva musical despensa fechada a sete chaves varanda portadora de vírus
A sala visitada pelos espectros e seus sinónimos A cozinha aberta aos mendigos e aos mastins A quarto onde neva salitre O sótão onde se esconde um amante maneirinho A cave onde brincam cadáveres O corredor entre duas pessoas A casa de banho fechada para obras A escada de degraus barrados com manteiga A clarabóia embaciada pelo bafo dum animal espacial A despensa invadida por formigas A varanda de ferro em brasa
A A O O A O A A A A A
sala de fumo cozinha de bolso quarto de hora sótão ocupado pelos corvos cave cavada e semeada corredor de patinagem casa de banho banhada em lágrimas escada dos quatro corrimãos clarabóia opaca despensa disposta a ser roubada varanda onde as paisagens se atropelam
II A casa aonde voltamos sempre só para dizer adeus.
III RUร NAS O caminho de casa cheira a รกrvore genealรณgica. Volta apenas quando invejares a majestade corcunda das oliveiras.
De regresso a casa desejo intensamente despir-me ou ser despida. A cada passo cai uma peça. Todos os transeuntes circulam em sentido contrário do olhar. Recuo no tempo para me ver passar e avanço para agarrar a nudez que só desta vez era completa. O amor levanta-se mais cedo em sua casa agora adormecida. Sobe aos telhados de vidro e ruge como uma fera. O amor morde e deixa a marca de mais uma ferida consentida.
Aqui como soberana como se come se escrava o resto do resto deixado no prato à espera que alguém reze por aquilo que já falta.
IV CASAS DE SONHO
V Zzzzzz
Sonho muitas vezes com casas as que conheço e as que não conheço. Nas que conheço descubro por acaso mas sem que isso pareça pesadelo aposentos nunca nunca visitados. Nas que não conheço eu habito desde sempre ou desde então. Como peixe em sua antiga água mexo nas coisas e moro sem pudor. Por vezes as casas mais distantes são vizinhas, comunicam entre si, sejam ou nunca fossem minhas. São cativas dos jardins que as libertam há homens moribundos que lá gemem suas caves e mansardas tremem porque ali o terramoto é permanente. São casas de toda a gente porque se entra sem pedir licença e sai-se sem promessa de voltar. Seus perfumes são recordação das nossas vidas não vividas muitas delas à mão de semear mas poucas as mãos de as colher. Sonho e o sonho é grão gigante em celeiro exíguo.
Vste dpressa e dspe dvagar o sno qu t ensna ond drmir e outr vz t prmite acrdar ond mens speras consguir Vste o dspe o corp qu t hbita dspe a csa e a cma e o q rstar vste a imgem de tronc q s gita poi à arvor te pdes encstar
VI MORCEGO ALBINO Voltarei às casas onde as paredes falam e se calam as portas às pequenas salas onde se esconde o cheiro das ilhas encantadas das filhas que o mar abandonou em praia incerta para lá serem encontradas. Oh trabalho de uma só mente: parede e porta filhas cor de ameixa e o veludo coçado das retinas a devolver o anonimato a todos os seres. Ouvirei a razão de queixa no ninho ainda quente das ruínas.
VII ALICE Alice absoluta A minha casa é um modesto cogumelo roído quase podre doce e quente como vinho novo num velho odre.
Alice obsoleta O meu amor antigo regressa a casa. Primeiro não me vê atravessa-me como se eu fosse luz duvidosa. Depois dá meia volta e vem a mim. Desfaço-me em lágrimas que o meu amor bebe sem sede nem medo. Por fim veste-me de gestos e eu sou borboleta obsoleta sou filigrana de ferrugem rainha adivinhada num truque de cartas.
VIII OBJET TROUVÉ
IX OBJET INTROUVABLE
Certos objectos vêm ao nosso encontro: quem os põe em movimento não concebo.
Na casa há passos a que não dou rumo presenças que desconheço suspiros que ferem o ouvido.
Bebem sumo de sol, chá de raiz. Hesitamos em saber se os descobrimos ou se por sorte pouca os perdemos. Quando menos se espera entendemos com que coisas de outrora nos parecemos.
Bebendo lentamente o sangue das coisas estavas muito perto de não ser como borboleta bruta. E o coração lançado em sua corrida ia esborrachar-se de bom grado contra uma parede de cal viva. E o coração bom gado bebendo lealmente as coisas à escuta.
X CAMA
XI MENINA RUIM
Quem é vivo sempre apodrece.
Ela era assim: Braços soterrados pernas a inchar como balões e o tronco crucificado entre dois galhos ladrões. A menor agitação da copa podia alterar o texto das raízes suas imundas actrizes em nudíssima preguiça
A cama do doente com gestos largos se areja e pela janela sai aroma de suor e urina e pela porta penetra um cheiro a malva e a jasmim e um fedor a poeta que até dá dor de cabeça. Que é vivo sempre se esquece. A cama de amor pode nunca ser lavada. Não fora o denso perfume da nossa roupa vazia quem de nós se lembraria?
E berrava assim: Vinde, ó casas dos ouvidos tapados desertadas por aranhas e por ratos e rascunhos de outros tantos animais Vinde,casas rasas casas rama e raiz casas cama e caminho que o corpo acama sozinho fazendo cova fazendo calo. Só ficava quieta e caladinha quando as palavras lhe dobravam a espinha. Ela era assim em seu pequeno palácio ácido. E berrava por não caber lá dentro.
XII O BATENTE Batem cedo à minha porta: a casa treme e as coisas que dormem em cada quarto despertam antes que eu abra dolorida, derreada, como depois de uma sova. Entre abalos e pancadas melhor conheço que outrora a história do chão que piso. Tremor de terra e de corpo fissura que se faz larga até me ser boca ou cova. Visto do avesso o vestido não sei mais do que ganir e ser o bicho ferido de quem se deve fugir. Saio à rua ainda assim: mais do que o peso da casa a leveza deste dia me é grande fardo e fadiga.
XIII DA VIDA DAS PAREDES
XIV O GUARDADOR DE PAREDES
As paredes falam para nos ouvirem. Falantes se mantêm de pé com a ciência impaciente de quem escuta ali está para isso mas para isso já não está.
O guardador de paredes sonha rebanhos de sonhos. Seu velho cão repousa em laje fria como uma pergunta derrubada ou uma estátua comestível, desdentada e desdenhada.
Elas têm enchimento, preenchimento. Para além de pedra, tijolo, cimento, suor, aborrecimento, - às vezes palidez de cal, outras risos de bolor elas ocultam sémen, sangue, tinta, restos concretos de escrita, berros, bocejos e beijos.
Quando se abrem as portas àqueles luares tão amarelos que dizimam razões e reses, ele senta cada coisa à sua mesa e oferece a outra face para que amanhã seja mais um dia e de ultraje em ultraje se cumpra o desfile e sua vã coreografia.
A plenitude das paredes, seu máximo esplendor, é a ruína. Então, mais do que nunca, afirmam verticalidade finita... sua lenta lava nos queima agora a vista. As paredes falantes ficam de pé sofrem de cãibras e varizes - enfermeiras competentes de uma cirurgia sem motivo, de uma autópsia de tudo quanto oscila entre o vivo e o não vivo.
Mas quando casa roubada e trancas à porta, ele enfia agulhas no escuro, picando-se noites a fio para não dormir. Seu duro catre flutua acima da linha onde rompe a aurora. Senhor de suas horas cerzidas, alinhavadas, remendadas, ele sabe desejar e deixar a desejar. As paredes falam com seu guardador e ele já admitiu que sonhando cai em si.
XV ÀS ORDENS DE QUEM AS DÁ entro em casa como se alguém me esperasse entro em casa como se ninguém me esperasse entro em casa como se lá vivesse há muito, há pouco entro em casa como se lá não vivesse ninguém entro em casa como se ela estivesse a ruir devagar entro em casa como se ela já fosse ruína de pleno direito entro em casa e o incêndio vem atrás de mim entro em casa pois fachada após fachada ela se me fecha entro em casa pela porta das traseiras entro em casa por uma janela aberta entro em casa mas afinal enganei-me na porta
entro em casa e lá dentro chove entro em casa mais devagar do que um raio de sol entro em casa e levo com uma porta invisível na cara entro em casa e não vou além da entrada entro em casa à procura da luz interior entro em casa mas sou impedida de avançar por uma matilha de cães que me lambem os pés entro em casa a casa descola brutalmente onde me agarrar
do solo e eu não sei
entro em casa rastejando como a serpente soldado entro em casa e esvazio imediatamente os bolsos entro em casa e demoro muito tempo a esfregar os pés entro em casa e anuncio que o regresso à ficção será realmente ficcionado
entro em casa e descalço os sapatos do futuro entro em casa e reparo que ainda lá não vivi entro em casa porque alguém me levou ao colo entro em casa empurrada pela ideia de guarda-costas entro em casa e posso começar a chorar por mim e para mim entro em casa e chamo por todos os que lá viveram entro em casa e sou decapitada por um sonho saio de casa e afinal a minha rua só pode ser outra
Sala com luz própria
Quarto fora de órbita
Compilação e Complacência
Crescimento de garras mas Polimento de unhas
Cozinha satélite
Sótão povoado de asteróides
Cosmos e Cosmética
Arca do velho mas Arco da velha
Cave em contagem decrescente
Casa láctea na via de banho
Colecção de cromos excepto Cromos repetidos
Enxoval embora Enxurrada
Corredor cauda e até caudal de cometa
Escada infinita
Camisas de Vénus excepto Rascunhos
Escrita cursiva embora Escrevência
Clarabรณia supernova
Varanda observatรณrio
Claras em castelo nomeadamente Ovo mais do que ova
Passeio Passeio Passeio Passeio Passeio Passeio Passeio Passeio Passeio Passeio Passeio Passeio
Despensa buraco negro O negro nรฃo compensa nomeadamente O crime em barco negro
Passeio Passeio Passeio Passeio
dos dos dos dos
Tristes Trajos Trevos Trastes
Ícaros e Cristos Cristo subiu ao céu apesar de estar pregado numa cruz Ícaro tombou infinitamente até às profundezas do inferno embora quisesse voar embora confiante pulasse para o abismo. Ícaros e Cristos por instante planam de barriga esvaziada – pode-se imaginar que se cruzam mas em imagens e paisagens diferentes e ofegantes. O suicídio de Ícaro é solar o de Cristo é sombrio. Ícaro salta vestido Cristo ascende nu. De ambos herdámos o desejo de ver o mundo ao contrário mas o chão de cada um é o contrário do outro como também pode ser a si mesmo tão contrário que escapa à esfera do mundo. Ícaro e Cristo agem com a precipitação de quem não treme
nem duvida da sua própria boa fé da sua própria boa vontade e da causa que os arrasta até ao extremo sem medo de encontrar um recomeço sem medo de que não seja um fim sem a vidência do horror e sem sentido de humor.
APENDICITE jardim da eterna infância - desenhar de olhos fechados - desenhar num quarto escuro - desenhar as figuras ao avesso - desenhar com a mão esquerda - desenhar com um lápis preso à ponta de uma vara - desenhar sem rumo deixando o lápis deslizar na folha - desenhar sem levantar a ponta do lápis do papel - desenhar a 4, 6, 8 mãos - desenhar num papel com relevos regulares - desenhar num papel amarrotado interpretando as rugas - desenhar num papel onde há pontos, linhas, manchas aleatórias interpretando-as como se fossem uma charada - desenhar com tracejados - desenhar a partir de impressões digitais - desenhar com corrector branco sobre cartolina preta - desenhar accionando a mão de outra pessoa munida de um lápis - desenhar zonas de sombra mais ou menos escuras ou claras e depois apagar bocados para fazer aparecer outras formas - desenhar nas costas de uma folha já desenhada tentando repetir parte do que se vislumbra no verso
- desenhar o dia cansativo de um triângulo - desenhar sem régua mas só com figuras geométricas - desenhar à vista uma mão em traços largos - desenhar à vista uma mão em tamanho natural e - desenhar durante um terramoto (os solavancos do comboio também servem, com vantagens bastante óbvias) - desenhar na areia da praia - desenhar no vidro embaciado - desenhar a bâton sobre o espelho - desenhar no puré e com mousse de chocolate - desenhar nas bordas dos jornais, nas toalhas de mesa - desenhar nas paredes das retretes e nos tapumes - desenhar sobre papel impresso com texto e até com imagens - desenhar e mais nenhuma outra forma com letras do alfabeto - desenhar nas costas da mão ou nas outras costas de outra pessoa - desenhar na cara mas sem imitar efeitos de maquilhagem convencional - desenhar com carícias e com beijos - desenhar com os olhos - desenhar nas paredes da cela de monge ou de prisioneiro - desenhar a porta da saída, saindo e entrando por ela ao mesmo tempo - desenhar nas cinzas com pés de velho faquir - desenhar depressa antes de ser desenhado
Este livro foi escrito por Regina GuimarĂŁes desenhado por Paulo AnciĂŁes Monteiro composto por Joana... editado por Nuno Moura e Joana Bagulho DOUDA CORRERIA Janeiro de 2017