À BEIRA DO QUE VEM À LUZ Charles Chaplin foi o maior professor do século XX. Como todos os grandes mestres ele conseguiu dar sempre a mesma aula de maneira diferente e cada vez mais convincente. Escolheu para si próprio a missão de mostrar que o mundo pertence de direito aos vagabundos do coração porque a eles cabe defender a beleza com unhas e dentes: as garras da fome mais antiga e o sorriso que escancara as portas do inferno. A bailarina das Luzes da Ribalta e a cega das Luzes da Cidade são uma só figura da beleza inválida, invisual, indigente, que é necessário salvar à beira do precipício e a única forma que há de o fazer será mesmo saltar a pés juntos. Charlot tirou o chapéu de côco, deitou fora a bengalinha, descalçou o sapato roto, apareceu sem disfarce que não a máscara universal da tristeza. E o actor ficou mais perto de si próprio mais perto de nós, tocando com o dedo do olhar a ferida de estar vivo que não quer sarar. Eu soube os filmes de Chaplin antes de os ver; foram-me contados por uma velha ama à hora difícil de adormecer sozinha no quarto escuro. E porque os vi amiúde em sonho, narrados que me foram por uma voz sem quarta classe, vivo na ilusão de os ter vivido duas vezes, a primeira bêbeda de sono, a segunda ébria de despertar. E é talvez disso que se trata nas Luzes da Ribalta,
no cinema de Chaplin, no cinema que conta: viver duas vezes como Calero para poder assistir à morte. Ser a vela que se volta a acender e arder à cabeceira da beleza que desperta. Morrer à beira do que vem à luz. Regina Guimarães