Cine e bêdê

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CINE E BÊDÊ De todo o objecto existem várias «Histórias» conforme o ponto de vista que se adopta. Cada ângulo pelo qual se aborda o objecto implica os seus próprios quadros de referências, a sua própria evolução, as suas próprias conquistas e convenções. Assim, a história do cinema não é exactamente a mesma se a encararmos na perspectiva da história da arte moderna, na dos media ou na das formas narrativas, na dos valores sociais difundidos, na dos desafios económicos do século, etc. O essencial é que, na zona em que se cruzam, estas histórias diversas surgem como um conjunto de campos coerentes entre si, antes de divergirem de novo, e, sobretudo, que uma faceta do conjunto ilumina o sentido das outras. Do ponto de vista estético, a montagem cinematográfica permite classificar o cinema entre as artes do tempo, ao lado da música, enquanto do ponto de vista semântico a montagem deve ser analisada em função dos efeitos de aproximação que possibilita e inscreve-se na vasta reflexão poética em torno da «imagem» que se desenvolveu a partir dos anos vinte. Os dois ângulos raramente são considerados em simultâneo — é aliás a esse título que Eisenstein constitui uma excepção e tem continuado a ser a principal referência até aos nossos dias. A perspectiva histórica dos media também pode decerto trazer novas luzes ou, pelo menos, revelar novos parâmetros. Os media desenvolvem-se — no sentido específico de meios de comunicação de massas — a partir da revolução francesa. Os meios técnicos são então principalmente a imprensa, muito antes da rádio e da televisão. Cada novo suporte assimilou, para além de todo o proveito que tirou das técnicas de expressão mais próximas, as convenções elaboradas pelos media anteriores, tanto ao nível temático como no plano formal. Mas, sobretudo, todos eles se vão doravante situar numa franja em que a antiga dicotomia entre cultura «culta» — do clérigo e da nobreza — e cultura popular se vai esbater, muito embora não desapareça. A literatura emerge então enquanto conceito novo e traduz este alargamento do campo de difusão — o conceito de «arte» adquire a sua actual acepção na mesma época. Até aos finais do século XIX, a dicotomia permanece devido ao simples facto de que a maioria da população — população à qual o direito de voto será concedido em França no ano de 1848 — não tem acesso à palavra escrita. A preocupação de atingir as massas vai favorecer o desenvolvimento de uma linguagem icónica, que funciona, conforme os casos, juntamente com o texto ou independentemente dele, e do qual o cinema é o herdeiro e a apoteose. A montagem só se desenvolveu — no plano prático e teórico — a partir de 1900, porque o cinema representava a primeira alternativa à linguagem verbal: após a primeira articulação que foi o plano — composição e inscrição de acontecimentos —, a montagem constitui efectivamente uma segunda articulação que organiza o sentido e o ritmo de imagens cujo poder é, acima de tudo, emotivo — como a articulação lexical e sintáctica organiza os fonemas em palavras e frases (o som, em 1930, apareceu de início como uma dimensão complementar


transformando o cinema no instrumento mais complexo jamais concebido pelo homem, mas rapidamente o verbal reintroduzido dominou a organização do filme e relegou os enquadramentos e a montagem para meras funções de ilustração e de continuidade). Todavia, antes do advento do cinema, já existia um primeiro embrião de montagem de elementos icónicos, sob a forma das mais antigas bandas desenhadas, cuja evolução acompanhou a do cinema e não deixou de exercer sobre ele uma considerável influência. Distinguindo-se das ilustrações e das caricaturas, as primeiras BD são bandas de quatro a seis imagens que contam travessuras de crianças: Max und Morise (de W. Busch) na Alemanha, já em 1870, retomada a partir de 1896 por Outcault nos Estados-Unidos sob as designações de Yellow Kid e depois de Katzenjammer Kids. A escolha de crianças como heróis não significa uma premonição do abaixamento da idade visada para o consumo mediático, mas sim uma assimilação intuitiva do público popular ao irracional infantil — e à sua profunda dependência. (Aliás, o adulto operário, na época, encontra-se bruscamente inferiorizado mesmo em relação aos seus próprios filhos com a introdução do ensino obrigatório). Em França, a partir de 1889, Christophe cria as aventuras da família Fenouillard e do sapador Camember, representativos dos tipos sociais — o militar sem instrução, a família pequenoburguesa — da 3ª República Francesa. O desenho, sem ser «realista», é pouco estilizado. Os desenhadores conhecem apenas dois enquadramentos: o plano médio e o plano de semiconjunto — excepcionalmente, o plano aproximado pode ilustrar uma página de título; o grande plano, invenção própria do cinema (cf. B. Balazs, «O espírito do cinema», bem como o meu artigo «Relevos do plano» in XL, nº 0), é totalmente desconhecido. A bem dizer, trata-se de um guignol sofisticado em que, a cada episódio, corresponde um cenário e um ângulo de visão — a posição privilegiada das personagens é o perfil. Ou seja, neste antepassado da BD encontramos precisamente os enquadramentos e os ângulos dos primeiros filmes tanto de Lumière como de Méliès. No entanto, cada cromo é legendado por um curto texto na borda inferior que contém a narração e produz o cómico do sketch através dos diálogos. As imagens funcionam ainda como ilustrações. Christophe, ao tentar libertar-se da preponderância do texto, criou uma sequência muda que corresponde rigorosamente — inclusive ao nível do enquadramento — a um dos primeiros filmes de Lumière: L'ARROSEUR ARROSÉ (apesar do meu esforço de pesquisa, foi-me impossível determinar a anterioridade do filme ou da banda desenhada; a questão é de importância secundária visto que, na época, os dois meios de expressão estão num estádio equivalente de balbuciamento). Não é meu fito elaborar aqui uma análise comparativa das histórias dos dois media, mas sim realçar o facto de que se desenvolveram paralelamente, cada qual procurando autonomizar-se em relação ao outro e tendo ambos, no fim dos anos vinte, sido subjugados pelo texto verbooral, sob a forma de balões na banda desenhada e de diálogos no cinema. As conquistas de cada uma repercutiram-se indirectamente na outra: o NAPOLÉON de Abel Gance provoca


uma libertação do formato na banda desenhada mais rápido do que no cinema; o carácter estanque das imagens entre si na BD prefigura os gags de HELLZAPOPPIN, etc.

Porém, as ligações entre cinema e BD são mais profundas e de natureza mais técnica: a preparação dum filme não compreende, por falta de uma notação adequada, uma préminutagem precisa. Ainda hoje, o cinema recorre, na etapa da planificação, à técnica própria da banda desenhada. Por um lado, a ordenação alinhada dos enquadramentos permite trabalhar a montagem por antecipação — em vez de se reduzir a uma simples operação de encadeamento das acções em continuidade —, fornecendo uma antevisão de conjunto repartida espacialmente e não temporalmente. Por outro lado, como o story-board serve algures de partitura — posto que indica o enquadramento, o ângulo, etc. —, favoreceu uma gramaticalização da montagem. Frequentemente, cada cromo corresponde a uma duração média — Hitchcock, a título de excepção, indicava grandes linhas de aceleração para tal ou tal outra sequência de suspense. Em verdade, na sua essência, os efeitos visuais e semânticos da montagem são sensivelmente os mesmos que a banda desenhada produz dado que esta obedece a um sentido de leitura. Os outros, que se prendem com a dimensão do tempo, são a maior parte das vezes evacuados, isto é submetidos às estritas variações do tempo de


decifração da imagem, ele mesmo dependendo da complexidade dos elementos que a compõem, complexidade essa parcialmente redutível ao inventário numérico de objectos enquadrados.

A época gloriosa do cinema hollywoodiano coincide, na área da banda desenhada, à criação de aventuras divididas em episódios diários ou semanais compostos por meia dúzia de


imagens. Os autores são por vezes os mesmos: D. Hammett, nos anos trinta, tanto escreve argumentos para filmes como assina a banda desenhada «Secret Agent X9». A pesada imposição que o número limitado de imagens representa, obriga os desenhadores a resolver de maneira original vários problemas de montagem; a saber: — Contraste: o jogo formal a partir das zonas de preto e branco, tendo em conta a carga simbólica das duas cores; a montagem paralela; a variação dos enquadramentos, etc. (estes parâmetros aparecem bem ilustrados na sequência final de TOUCH OF EVIL; cf. o nosso artigo «Para uma teoria a montagem» in A Grande Ilusão, nº 8). — Concentração: os campos/contracampos são reduzidos no máximo a duas imagens para evitar que os leitores se aborreçam. Além disso, os enquadramentos, a fim de escaparem à monotonia da gramática cinematográfica, vão buscar engenhosamente ângulos originais (todo o sistema de montagem de Scorsese é tributário da técnica dos desenhadores do grupo «Marvel»). — Descontinuidade: a sucessão no espaço reforça, a partir do momento em que os desenhadores abandonaram o ponto de vista fixo adoptado por Christophe, os efeitos de salto espacio-temporal entre as imagens. Já em 1908, Forton resolve acentuar esta descontinuidade em vez de a apagar («Les pieds Nickelés»). Conquanto Godard o cite abundantemente em PIERROT LE FOU, convém sublinhar que não se trata dum mero piscar de olhos cúmplice, dado que a banda de Forton serve efectivamente de referência à organização narrativa descontínua do filme. Acima de tudo, recordemos que a planificação em curtos episódios capazes de manter o suspense e prender a atenção está na base de toda a dramaturgia folhetinesca, que somente a televisão continua a praticar hoje em dia, mas que o cinema desenvolvera antes da primeira guerra mundial (não só as bandas desenhadas eram na altura unicamente sob forma de episódios na imprensa diária — os primeiros álbuns são editados por volta de 1937 —, como os próprios romances, em particular os ditos «populares», aparecem publicados sob a mesma forma antes de serem impressos como livros). Por último, observemos que algumas condicionantes do desenho vão encorajar a exploração de novos «campos» da imagem cinematográfica: a banda desenhada, até a uma fase muito recente, não conhecia o desfocado para os segundos planos. É certamente a influência dos desenhos minuciosos em que os fundos são tão nítidos e recortados como as personagens em primeiro plano que levou Orson Welles a «redescobrir» a profundidade de campo com CITIZEN KANE — i. e. a empregá-la sistematicamente e a conferir-lhe um papel dramático. E visto que todos os caminhos vão dar a Welles, não será inútil lembrar as unidades formais cinematográficas que não se inspiram na banda desenhada, aquelas que a banda desenhada é tecnicamente incapaz de (re)produzir. Estamos a falar concretamente dos processos de raccord — fundidos ao negro, fundidos encadeados, sobre-impressões — que condicionam a narratividade — cf. toda a sequência da viagem em LADY FROM SHANGHAI. Resta mencionar também o plano-sequência que continua a ser, pelo facto de se escrever na duração,


o ponto culminante da pesquisa de quase todos os cineastas formalistas — de Eisenstein e Welles a Godard e Tarkovski, passando por Oliveira ou Paulo Rocha, Rossellini ou Scorsese, etc. Se alguns o tomam como padrão — é o caso dos cineastas portugueses, de Angelopoulos e alguns outros, que desenvolvem uma estética e uma técnica narrativa singulares —, os restantes ordenam a montagem clássica em torno do aparecimento de um plano-sequência. Este ocupa sempre um lugar excepcional: no fim do filme — a vela e o travelling para trás em NOSTALGIA, o grande plano de LA MAMAN ET LA PUTAIN, a caminhada na floresta em WEEK END, a dança em IVAN O TERRÍVEL; em abertura — em TOUCH OF EVIL, THE PLAYER, ou o travelling ao longo do engarrafamento em WEEK END; ou no clímax do filme — o interrogatório de TOUCH OF EVIL ou o de SIROCO DE INVERNO. Se os planossequência de Scorsese ou Cassavetes parecem corresponder a momentos de relaxamento em que os actores podem entregar-se ao improviso é porque esses momentos são justamente aqueles em que se situa o nó do drama — não tanto no plano da acção, mas ao nível do dilema que ela provoca: quando os «bons rapazes» em GOODFELLAS tomam consciência do carácter patológico da susceptibilidade do seu amigo, quando os maridos em HUSBANDS descobrem a vacuidade da sua festa... O cinema começou por produzir filmes de um só plano. Porém ainda não se filmavam planossequência, na medida em que o objecto dos planos rodados, que condicionava a sua duração, era o movimento em si. O plano-sequência é a unidade fundamental da imagem-tempo (cf. Deleuze) que transcende já a narrativa icónica. E é neste ponto que a história do cinema e a da banda desenhada se separam. Contudo, a banda desenhada continua a influenciar os subprodutos «populares» que a televisão produz: clips, folhetins, etc., ou até certos jogos televisivos. O cinema «adulto» continuará a pertencer ao domínio dos media? Mas isso é porventura outra questão, pois também é verdade que para cada objecto existe uma história dos mal-entendidos que suscitou. S.


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