Cinema marciano

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CINEMA MARCIANO TATI E O MUNDO Bergson analisa o riso como sendo o desfasamento entre o resultado antecipado e o resultado efectivo — constante aplicável tanto ao cómico de situação como ao cómico de palavras —, desfasamento este muitas vezes aliado a uma aceleração da velocidade — este funcionamento é verificável tanto no burlesco como na paródia. Ora Tati inverte os dados: o desfasamento existe, mas entre dois comportamentos cujo resultado nunca é previsível; a manipulação da velocidade também é constatável, mas no sentido de afrouxar. O cómico de Tati não provoca o riso, desagua na poesia. Hulot não é perseguido mas inspira desconfiança; não é obrigado a ultrapassar obstáculos mas a integrar-se num meio que vai revelar e perturbar. O cómico de Tati é essencialmente visual: o implícito nos seus filmes é a nossa concepção do mundo, da sua coerência, do seu funcionamento, etc.; Tati limita-se a mostrá-lo tornando gritantes a inadaptação, o absurdo, etc.. Hulot não se defende (como Charlot), não se desenrasca (como Pamplinas) mas ao seguir o seu próprio rumo — que aliás não considera diferente do rumo dos outros — vai parar ao lugar onde não deveria estar: o cemitério, a cabana do fogo de artifício em AS FÉRIAS DO SR. HULOT, o stand de demonstração, o restaurante em PLAYTIME, etc. Adapta-se imediatamente (como ZELIG), contudo a divergência de motivos provoca um distúrbio de funcionamento que a mecânica social e rotineira pretende reparar mas só acentua... Hulot distingue-se do que o rodeia — quer pelo tamanho quer pelo embaraço — e é a sua inserção num espaço que lhe não está adaptado que obriga a ver, aponta para o defeito dissimulado pela coerência aparente. Tati multiplica esses relacionamentos incongruentes — a criada e o olho eléctrico da porta da garagem (O MEU TIO); o porteiro velho e o quadro de ligações, o padre e o snack-bar que o santifica com uma auréola de néon (PLAYTIME), etc. Paralelamente, Tati joga com a diferença de interpretação dependente do número de elementos conhecidos ou tidos em conta para perceber um acontecimento visual: o carteiro a gesticular/o carteiro a enxotar uma abelha (HÁ FESTA NA ALDEIA), o porteiro a abrir a porta/o porteiro a segurar num puxador absurdo (PLAYTIME). Esta reinterpretação implica uma distanciação constante do espectador perante as cenas susceptíveis, não de se transformarem (como poderia acontecer com a intervenção dos irmãos Marx) mas de mudarem de sentido. O primeiro plano de PLAYTIME é a este título exemplar: à medida que as personagens surgem, o espectador julga identificar o cenário como um prédio de escritórios, uma maternidade até finalmente reconhecer um aeroporto. Outro exemplo: o engarrafamento final à volta da rotunda não se transforma em carrossel antes funciona como um carrossel, e é esse movimento metafísico que retrospectivamente dá sentido a todo o filme. Acrescente-se que este trabalho de «monstração» assenta na duração: a observação em que se baseia o cómico de Tati deve por sua vez ser efectuada pelo espectador. Tati utiliza planos de conjunto nos quais o espectador tem que descobrir uma quantidade de acções simultâneas que se desenrolam em continuidade. Esta atenção constante a que o espectador é forçado impede o desencadear do riso, tanto mais que a simpatia notória de todas as personagens favorece a aproximação, senão a identificação, e que o cómico torna flagrantes os hábitos irrisórios ou absurdos engendrados pelo meio social: nesses mesmos, todo o mundo, algures, se reconhece. TATI E O CINEMA Esta originalidade do discurso está ligada à vontade de inovação dentro da estética cinematográfica. É Tati, plenamente consciente desta preocupação, quem afirma sem pretensões, após o insucesso de bilheteira de PLAYTIME, que a máquina de produção lhe não perdoou: «Tenho a sensação de ter trazido qualquer coisa ao jovem cinema»... «abro portas a coisas que não se faziam antes»... Com efeito, Tati abandona todas as concepções da montagem até então formuladas: serve-se unicamente do raccord no movimento em continuidade. As rupturas são quase invariavelmente elipses temporais. Mas a continuidade, em vez de se efectuar em torno dum gesto, duma personagem, engloba a totalidade dos actores presentes no cenário — sempre enquadrado em plano de conjunto —, e a mudança de plano corresponde à introdução dum novo elemento sem constituir uma ruptura — o número de elementos idênticos continua a ser superior ao dos elementos


diferentes (cf. o nosso artigo «Para uma teoria da montagem» neste mesmo número). A encenação obedece a uma sincronia total, tal um bailado; não conhecemos outro realizador capaz de dirigir assim uma centena de actores — não-profissionais — como em PLAYTIME. Esta encenação só é possível na medida em que as acções fundamentais começam e acabam dentro do mesmo plano. Donde um ritmo original, baseado na duração condicionada por um espaço real — ritmo esse julgado lento, na altura em que os filmes de Tati estrearam, em comparação com o ritmo convencional da ficção; porém, é a necessidade de captar as diferentes acções que ocorrem num dado espaço que preside à escolha do ritmo. Porque Tati exige do público uma participação — não de dentro (projectando-se na ficção), mas de fora, assumindo o lugar de espectador — perante este «panorama» (os enquadramentos em plano de conjunto funcionam como janelas) que desfila sem que a atenção e a emoção sejam guiadas. Tati utiliza a cor de maneira discreta, por pequenas pinceladas com uma função expressiva imediata — das cores da bandeira tricolor pintadas à mão em HÁ FESTA NA ALDEIA às medalhas coloridas dos retratos na sala de espera e, sobretudo, à iluminação verde intermitente que dá um aspecto nojento aos pastéis no snack de PLAYTIME. A cor não sublinha — ela perde-se no plano de conjunto — antes destaca. O som é trabalhado de forma deveras notável: inteiramente pós-sincronizado e dotado do irrealismo que este método permite — como nos filmes de Fellini —; as palavras são tratadas como barulhos — o sentido dos diálogos passa mais pela gesticulação do que pelas poucas palavras que sobressaem —, e os ruídos pertencem à pista de música. Assim o ritmo das acções traduz-se, ao nível dos barulhos, por um ritmo musical que reforça o carácter coreográfico da encenação. O conjunto da progressão funciona pela repetição de acções segundo um esquema musical — Tati é talvez o realizador mais próximo da experiência musical moderna, voltada para o ruído e para a repetitividade — em contradição com o ritmo das acções banais encenadas — ou a ausência de ritmo devida à ausência de consciência. Aí reside talvez o segredo do tom de Tati em que o cómico e o poético se confundem: Tati musicaliza, transforma o movimento em dança e os objectos em brinquedos. Em Tati, a ficção cede lugar à duração: sem espalhafatos nem ostentações. Tati inventa um cinema inédito no qual a regra de antropomorfismo da convenção ficcional é substituída por um marcianomorfismo das nossas convenções sociais. S.


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