CINEMA POBRE O PONTO DE VISTA Um objecto só existe a partir do momento em que adquire sentido (i.e. a existência pode até preceder a essência mas só se constitui como tal quando deixa entrever o seu objecto, simultaneamente pois à essência que precedeu, ou antes aos sentidos). Assim, o cinema é constituído por filmes, mas só existe a partir da altura em que esses filmes permitem definir um campo de expressão, uma ética e uma estética. Somos alguns a acreditar que a língua não só constitui um domínio privilegiado, reflexo das instituições e dos valores das super-estruturas sociais (cf. M. Ferro: Cinema e história), mas sobretudo que modelou a nossa representação do mundo e dos seus valores, contribuindo para a edificação desta super-estrutura. Mais ainda, ao contrário do avião (cf. E. Morin), a história do cinema coincide totalmente com a do nosso século, e começam a tornar-se visíveis os sinais duma substituição a curto prazo por outros media. Ora o cinema vai desaparecer sem ter explorado todas as suas possibilidades de expressão. O nosso militantismo é portanto duplo: defesa do cinema — vontade de assegurar a sobrevivência de um meio de expressão para além da sua contingente adequação social (como o circo, os fantoches, etc.) — e luta por uma desenfreada descoberta das suas potencialidades ainda inexploradas. CAMPOS E DOMINIOS ENCANTADOS Nesta perspectiva gostaríamos de propor como trabalho a delimitação dum campo do cinema que seria não aquele que se pode imaginar (a utopia) mas aquele que existe e se não pode ver (o lumpen, o lugar da transgressão — cf. Bataille: O Erotismo). Este campo coexiste ao lado do cinema standard; numa primeira abordagem podemos apenas descrevê-lo em relação e em oposição ao tal cinema standard (como é verdade que ser negro só tem sentido num mundo branco); o imperialismo do cinema standard é de tal modo vigoroso que qualquer cinema outro se deve definir em relação a ele (do interior). Vigor e visão de morte. O cinema standard tem vindo a adquirir, pouco a pouco, os estatutos de arte, de linguagem e de indústria. Esta terceira essência é dada unanimemente como negativa, daí advindo que só a uma ínfima minoria de autores (arte) é permitido exprimir-se (linguagem) apesar e contra a organização industrial. Cineastas como R.W. Fassbinder, que se exprimem enquanto autores, graças à constituição duma prática industrializada (porque afinal talvez haja uma prática industrial que não a capitalista), são demasiado raros para que possamos avançar contra-propostas generalizáveis (o que não invalida que a prática de Fassbinder põe efectivamente em causa todas as ideias preconcebidas sobre as condições de trabalho de um «autor»). Em contrapartida, um bom número de cineastas começaram por praticar aquilo a que chamamos um cinema «pobre». Alguns abandonaram esta prática logo que puderam (Lam-Lê, Kramer) — em geral a deserção inscreve-se já em palimpsesto nas primeiras obras — outros nela se mantiveram definitivamente e consideram a sua prática como um empenhamento (Rouch, Rivette, Dvoskin); finalmente outros ainda conseguem conciliar; intermitentemente, práticas diferentes (R. Ruiz, W. Shroeter). O facto de que prática nem sempre corresponde a um empenhamento assumido dificulta a delimitação de dois campos distintos: assim se promovem a valores tão semelhantemente culturais os filmes de Godard e de Rivette quando as práticas respectivas diferem consideravelmente. Fixemos pois a nossa proposta: um filme caracteriza-se por uma tomada de posição ética e estética directamente dependente dos meios técnicos e financeiros em jogo. MODOS E MODELOS O termo cinema pobre não deve ser ligado a uma concepção pauperista da arte mas à reivindicação duma identidade possível em relação ao modelo americano (pais pobres versus tio rico); retomamos um conceito bem-aventurado no domínio do teatro pela mão de Grotowsky.