CINEMA QUE PARIU Toda a gente se prostitui. Seja qual for a mercadoria — as ideias, a força de trabalho, o tempo — transaccionada, no fim de contas é sempre o corpo que se dá ao manifesto. Em todo o caso —«trabalho» ou «prostituição» —, o prazer está excluído ou limitado a estreitas margens, a actividade não responde a nenhuma necessidade vital — nem de sobrevivência, nem de reprodução — mas apenas ao imperativo, social, de recalcamento da violência e de banalização do desespero. O termo prostituição está contudo reservado ao comércio carnal que, relativamente a outras formas de trabalho, apresenta algumas características: a) O carácter estritamente humano do instrumento principal. b) A dependência directa em que se encontra a(o) prostituta(o) face ao seu protector, verdadeiro beneficiário da actividade. c) A classificação quase clínica das «perversões» às quais a prostituta responde — oral, anal, sado, maso, homo — que permite uma especialização e que evita ao cliente qualquer surpresa — traço fundamental da apresentação. d) O hiato entre os fantasmas suscitados pela personagem da prostituta e a banalização máxima das práticas sexuais imposta pela necessidade de rentabilizar o trabalho. e) A eficácia — relação entre o resultado (ejaculação) e o tempo de trabalho — e a rentabilidade — relação entre a tarifa e o tempo de trabalho — notáveis para uma actividade artesanal, dados que no entanto escamoteiam o considerável tempo de inactividade — espera do cliente — inerente à profissão. A arte é um conceito recente, nascido a partir do momento em que a subjectividade do autor prevaleceu sobre os critérios estéticos socialmente impostos (padrões da iconografia cristã) ou reconhecidos (realismo da representação burguesa). Porém, nos nossos dias o artista não pode ainda reivindicar esta subjectividade absoluta, sendo obrigado a submeter-se ao critério do reconhecimento público — se bem que este nunca se exprima directamente e se nos afigure totalmente manipulado e fictício. A actividade artística enquanto prática social pode então ser considerada como arquétipo da prostituição máxima, aquela que toca simultaneamente o produtor e o produto, a ideia e a matéria. É fácil estabelecer um paralelo entre a prostituição e a arte — cinematográfica por exemplo, que apresenta as seguintes características: a) O carácter humano do instrumento principal (os actores). b) A dependência directa na qual se encontra o realizador face ao produtor e ao distribuidor, verdadeiros beneficiários da actividade. c) A classificação genérica dos espectáculos e das emoções que o filme pode provocar — guerra, western, thriller, terror, comédia — que 1 permite uma especialização e evita ao espectador qualquer surpresa — traço fundamental da publicidade, cartazes, fotografias, etc. d) O hiato entre os fantasmas suscitados pelas imagens da ficção fílmica e a banalização máxima da narração e das situações, imposta pela necessidade de rentabilizar o produto. e) A eficácia — relação entre o resultado (emoção) e o tempo de projecção — e a rentabilidade — relação entre a tarifa e a duração da sessão — duma actividade de espectáculo que se pretende industrial mas continua a ser artesanal, dados que no entanto escamoteiam o carácter artificial — deserção das salas — da sua sobrevivência. Se o chulo organiza a prostituição, quem a sustenta é o cliente. Mais ainda: o maior inconveniente do trabalho da prostituta reside no facto de ela não poder escolher o cliente; mas será que o cliente escolhe mesmo a prostituta? A prostituição transforma o indivíduo que a pratica num instrumento e o cliente aceita transformar o acto sexual num acto maquinal. A degradação da prostituta acontece antes de ela começar a «andar na vida», a do cliente opera-se a cada passe. «O cliente é rei e senhor» mas a personagem do rei é historicamente assimilável à duma marioneta. Ao aceitar reduzir a sua sede de amor a uma ejaculação rápida, quem se prostitui no momento do passe é o cliente. Do mesmo modo, o público é soberano, mas a sua soberania exerce-se de forma puramente passiva: vai ver o que lhe mostram. Não escolhe: queda-se para ali de olhos abertos como a prostituta fica de
pernas abertas. O facto de pagar bilhete não pode intervir na análise: o contribuinte português paga a produção cinematográfica portuguesa — produção de estado regida pelo I.P.C. — e não a vê. Pagar não significa nada numa sociedade onde se está sempre a pagar tudo. Existe aliás uma segunda acepção do termo prostituição, num sentido estritamente moral, quando um indivíduo submete o produto da sua actividade intelectual a imperativos alheios às suas convicções ou aos seus desejos. Esta prostituição abstracta é mais fortemente condenada do que a prostituição física, socialmente útil e integrada. A este nível, é forçoso reconhecer que a maioria dos realizadores são modestos e não reclamam o estatuto de artistas, esforçam-se conscienciosamente por responder, não às exigências do público visto que este não se exprime, mas às supostas expectativas deste. Em contrapartida os cinéfilos que se pretendem «esclarecidos» aceitam submeter a sua fruição intelectual a filmes de todo em todo alheios às suas convicções ou aos seus desejos. O cinema é ao mesmo tempo um meio de intoxicação controlado pelo poder e um meio de comunicação condicionado pela adesão do público. Este último não se exprime — outro traço comum com a prostituta. Quem é esse público? Muitos realizadores portugueses acabaram por renunciar ao contacto com ele. Mas então toda a reflexão parece falseada: se não se sabe quem vê o quê, de que cinema se está a falar? Em Portugal distribui-se uma ínfima parte da produção mundial — a distribuição, neste país, constitui praticamente um monopólio —; enquanto em todos os países da Europa existe uma distribuição paralela que difunde por um lado os clássicos do cinema, por outro os filmes de «arte e ensaio» (films d'art et essai) e as produções de pequeno orçamento, o espectador português só tem acesso aos filmes que atingiram uma certa cotação no box-office internacional e continua totalmente desinformado sobre a evolução do cinema. O espectador privilegiado, cinéfilo — convém não esquecer que o privilégio cultural corresponde sempre a um privilégio sócio-económico — resigna-se a não poder escolher os filmes que efectivamente vê. Realizar filmes diferentes no contexto actual da produção moribunda representa um acto militante condenado se a este não corresponder o acto militante do espectador ir ver esses filmes — e julgálos —, o acto militante pois de assegurar os meios desse visionamento. É a prostituição actual do espectador que condena os realizadores a maquilharem grosseiramente os filmes e a murmurarem «Tu viens chéri?». S.