Cinema rico

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CINEMA RICO Isto não é um artigo sobre cinema alemão. Porém, visto que me congratulo com a ausência de artigos sobre as últimas diarreias de Wim Wenders (eminência parda das altas instâncias do cinema europeu) e como esta revista significa também a grande ilusão de dizermos o que nos vai na alma, não resisto a começar pelos seguintes recados: 1. Ponham o homem a fazer publicidade. Para bancos de dados. 2. Um cineasta para quem Lisboa (Portugal) é uma cidade onde se encontra a Amália Rodrigues no eléctrico e o «fim do mundo» é a Jeanne Moreau ceguinha e besuntada de creme já não está na plena posse das suas faculdades críticas. Posto isto, podemos entrar indirectamente na questão. E a questão é: na Europa ainda existe um cinema que ostenta sinais exteriores de riqueza. Por esse cinema de lantejoulas muitos militam. Foi, a título de exemplo, o BEBÉ DE MÂCON que por aí passou. Contudo, ele vem-nos, as mais das vezes, da máquina de produção da França, único país da Comunidade que ainda dá ao mundo à roda de uma centena de filmes por ano. Assim, foram sendo estreados, em Paris e ailleurs, com grande pompa e circunstância, no rasto brilhante das comemorações do bicentenário de 1789, as obras que compõem a trilogia BLEU/BLANC/ROUGE de Kieslowski. Curiosamente, a consagração europeia do autor polaco não o impediu de tornar conhecida, rejeitando os caminhos que a glória lhe viria porventura a abrir, a sua decisão de abandonar o cinema. A visão de A DUPLA VIDA DE VERÓNICA deixara-me um travo desagradável de misticismo de bolso e grandiloquência barata que dificultaram seriamente a minha apreciação do filme. Para um espectador ateu, nada mais irritante do que os filmes que brincam com o sagrado, tirando um partido pouco escrupuloso de uma das feridas dolorosas que o consumismo desferiu no nosso imaginário: a deriva ou o puro desaparecimento do valor cultual. Kieslowski é sem dúvida, esta trilogia atesta-o, um cineasta capaz de rasgos formais muito acima da média dos autores europeus. Ele filma com uma genica apenas comparável à habilidade com que manipula e corporiza o material simbólico, fabricando puzzles visuais que o gótico das histórias das suas estranhas personagens vão ajustando à maneira de pedras duma abóbada. O seu savoir-faire como director de actores é também notável: a cena em que a viúva do compositor pretende suicidar -se no hospital, engolindo pastilhas, e não é dissuadida do seu acto pela enfermeira, lapso de eternidade durante o qual o sistema encarnado pela profissional de saúde dá razão à pulsão de morte, é um momento inesquecível (BLEU); a chegada a uma Polónia alva e gelada (no law's land onde se lava dinheiro, página branca onde se inscrevem as mais negras intenções) do emigrante que se rebola na neve, com a convicção de quem se rebola na lama redentora, é outra sequência de inegável fôlego (BLANC); a composição de Trintignant transformado em insecto numa espécie de DAY AFTER onde a única saída é a predação moral e emocional parece convincente, sem reticências (ROUGE). O que de facto estraga o quadro de honra, onde Kieslowski pode aspirar a ver distinguidas as suas obras, continua a ser, como em A DUPLA VIDA DE VERÓNICA, a estonteante futilidade com que, de artifício em artifício, destrói o edifício dramático dos seus filmes, submetendo a força irracional que os percorre à lógica do excesso de argumento. Ao corrigir a trajectória espiralada de todos os percursos apontados pelos seres e pelos símbolos que as imagens jogam no tapete, qual lance de dados que, como disse Mallarmé, não consegue abolir o acaso, Kieslowski desfigura as suas ficções inquietantes metamorfoseando-as num sucedâneo de soap tranquilizador. E Deus habita as personagens porque, no fim de contas, elas descobrem explicações para todas as perguntas, soluções para todos os males. No fim da fita, o público volta sereno para casa. E Deus é um mau argumentista. A garra da câmara de Kieslowski, a agudeza do seu olhar, a energia com que dirige os actores são meros escombros na hora da derrocada final, sob a pressão duma lógica fictícia e, há que dizê-lo, romanesca no pior sentido. E é assim que os filmes de um autor talvez demasiado talentoso se afogam numa catadupa de coincidências e conciliações, à maneira das telenovelas com que a TV intoxica milhões de pessoas. O Wim Wenders também vê anjos por toda a parte. Não vê? R. G.


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