Coisas do estado

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COISAS DO ESTADO Um punhado de anos após o estreia em Portugal de O ESTADO DAS COISAS, pudemos assistir à projecção do muito badalado contributo de Wim Wenders para a iniciativa Lisboa 94, que dá pelo nome singelo de LISBON STORY, sem mais nem menos, título que tem a vantagem de opor o resto do território português à pobre mas desonesta ficcionalização de que a capital é objecto neste filme do realizador alemão. Em época de pesadelos identitários, de Europa — coração — à direita cada vez menos interessada em realizar o sonho comunitário, este apontamento de Wenders soará como canto dos serafins aos ouvidos de todos aqueles que anseiam manter o país preso à imagem fadistafascista de um sublime pitoresco da miséria para turista ver. Abril em Portugal, à moda antiga. Está lá tudo: o Tejo porta do império perdido, as fachadas leprosas de Alfama, o fado com aquele duvidoso sabor a uma pseudo-renascença que, como é consabido, foi a nossa única época de pura glória, e um sol radioso a banhar o conjunto. Nenhum parisiense teria apreciado um retrato de Paris que transplantasse para a actualidade o mítico Montmartre, vamos lá de Utrillo, povoado de simpáticos poulbots, alegres putas, talentosos pintores de rua e de bailarinas de cancan. Mas, por cá, o público não tuge nem muge, e cristalina voz de Teresa Salgueiro (uma verdadeira donzela... lá isso) até fará soltar algumas lágrimas da saudade. Claro está que a música dos Madredeus e a própria Alfama não passam, de facto, dum cenário plástico e sonoro para um discurso, esse ainda mais perigoso, sobre o cinema neste fim de milénio e último ano do seu primeiro século. Em O ESTADO DAS COISAS, Wenders dava conta da profunda fragilidade do cinema enquanto forma de expressão artística dependente de elevados financiamentos e duma estrutura de produção de tipo industrial. A paralisação das filmagens por falta de fundos, o desaparecimento do produtor e consequente angústia da equipa de rodagem significavam o estado de indefeso do media e do cineasta, ambos dependentes das exigências e limitações económicas que transcendem o campo e a problemática da «arte» e justificavam a atitude de autodefesa final. Em contrapartida, LISBON STORY coloca-nos perante um «no man's land» das contingências materiais (assim como existem paraísos fiscais, imagine-se um éden cinematográfico à beira Tejo) visto que a personagem do realizador (desempenhada por Patrick Bauchau que era o cineasta de O ESTADO DAS COISAS) não só se dá ao luxo de estar ausente e renunciar ao filme em curso (nem sequer se digna receber o engenheiro de som) como possui todo o sofisticado material de rodagem e montagem, e dispõe de um orçamento generoso que lhe permite distribuir câmaras de vídeo a um bando de crianças-assistentes no bairro (bambinos que falam inglês e se mostram desenvoltos nas relações humanas, até na confusa missão que lhes foi confiada). Tudo se possa como se para fazer filmes bastasse boa vontade num reino que pertence aos homens de boa vontade (a figura do produtor desaparece). O engenheiro do som, por seu lado, revela-se um autêntico anjo da guarda, paradigma da serenidade e da eficácia; ele «agarra» no trabalho sem precisar de instruções, visionando apenas os rushes mudos, que o autor deixou em caudalosa desordem no apartamento, e encarrega-se de captar os sons necessários, outros tantos exemplares clichés — o ruído do porto de Lisboa?! a voz da cantora galgando escadarias?! — e até de os fabricar — onde já se viu um técnico acumular a tarefa do registo sonoro e o «bruitage» que requer formação e experiência altamente especializadas?! Porém, não só destes chavões vive a fita de Wenders. Que pensar dos comentários imbecis sobre Pessoa (dos quais o mais radicalmente idiota será porventura o da assimilação do ortónimo «Pessoa» o «Ninguém», duplo sentido que só é possível no francês — «personne» — que nem é a língua do filme, nem a segunda língua do poeta; calculamos que o dito espirituoso provém de alguma explicação fornecida em língua francesa pela equipa durante a rodagem)? Que dizer da maneira como os Madredeus são apresentados, numa magnífica residência/local de ensaio, com azulejos do século XVII, onde todavia chove nas salas, ou à mesa dum nocturno e silencioso bar, onde a voz de Teresa Salgueiro se eleva, irrivalizável? Para não citarmos a cena com o rufia (João Canijo) dado que aí a mistificação raia o grotesco.


Salva-se para os amantes de Oliveira a sua intervenção no filme. Mas haverá palhaço de deus que nos faça esquecer que Wenders faz de nós palhaços? R. G.


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