Conte de faits

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CONTE DE FAITS L'ATALANTE voltou aos ecrãs. E eu voltei a ir vê-lo, pela vigésima vez, talvez, e senti de novo, intacta, a emoção da primeira visão — aquela que me decidiu a consagrar-me ao cinema. O que é que faz deste filme uma obra-prima? Não tem nem as audácias nem os efeitos discursivos de À PROPOS DE NICE — com a sua montagem vertoviana e a sua violência espontânea —, nem a elevação lírica de ZÉRO DE CONDUITE — com a sua alegria feroz e a sua sinceridade revoltada; está próximo de Renoir e de Murnau — mas não recorre, como Renoir, ao modelo pictórico (UNE PARTIE DE CAMPAGNE) ou à fantasia de pacotilha (ELENA ET LES HOMMES) para nela esconder o pessimismo, e não utiliza, como Murnau, o patético (L'AURORE) para dramatizar a sua mensagem. L'ATALANTE funciona como o barco que voga nos canais, indiferente ao mar. O seu encanto provém da forma como conta sem palavras, sem discurso, ou seja, da sua discrição. É exactamente o avesso dum conto de fadas. Os ouropeis e as tentações estão presentes, mais mágicos ainda por não serem sobrenaturais — Gilles Margaritis seduz a heroína mas também o espectador — e ao mesmo tempo visivelmente irrisórios. L'ATALANTE não é só o nome da embarcação, é o título do filme que nos conta o trajecto da heroína, as suas três miragens — as maçãs de oiro do mito: o casamento, a aventura e a cidade, e a corrida louca que a leva a casar-se com um sub-herói (Hypomène). Filme pois sobre a renúncia, como os de Renoir e de Murnau, porventura os de Scorsese, mas onde a escolha final triunfa magicamente sobre os sonhos frustrados: revela-se essencial que seja Michel Simon (aquele que faz cantar os discos sem pick-up, cujo corpo é todo ele um poema) a ir buscar e trazer de volta a heroína, porque não se trata dum romance cor-de-rosa, desses em que a palavra amor parece em si suficiente: ao reencontrar o marido, a heroína é devolvida à sua casa flutuante, ao seu barqueiro rabugento. Mais e menos do que uma família. Porque a causa do desencanto fora um falso mito do amor: o casamento tinha a aparência dum enterro, o maravilhoso sedutor não passava de um ilusionista, a cidade só conhece o amor que se vende. A heroína aprende a amar outras magias que não as dos postais, outras felicidades que não as das fadas. É muito pouco; L'ATALANTE distingue-se da maioria dos filmes pela ausência quase total de argumento — apenas uma trama. Porém, é justamente esse percurso ínfimo que o espectador é convidado a acompanhar. Donde um ritmo ao sabor da corrente em que a emoção brota de cada imagem. L'ATALANTE contém, ao nível da sua estrutura global, o primeiro embrião da imagem-tempo definida por Deleuze: «A situação dispersiva, as ligações deliberadamente frágeis, a narração-balada, a tomada de consciência dos chavões». L'ATALANTE é um filme que mostra pessoas simples, nas quais todos nos podemos reconhecer sem ficcionalização — ao contrário do cinema habitual em que o herói, mesmo sendo um operário, um camponês ou um barqueiro, tem de possuir um dom que pretensamente justifique o interesse do espectador —, pessoas que sonham simplesmente até se darem conta que o sonho e a realidade são feitos da mesma massa. Um filme optimista, não demagógico. S.


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