Contradição não ambiguidade

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CONTRADIÇÃO NÃO AMBIGUIDADE Um dos debates mais vergonhosos — na medida em que revela a mediocridade teórica em que caiu certa crítica — lançados nestes últimos anos pelos «Cahiers du Cinéma» tinha por tema o estatuto a atribuir a Fellini: artista ou artesão, palavras pomposas e vazias, reveladoras de uma incapacidade em analisar o trabalho e a problemática de um cineasta (o consenso em torno de Godard é talvez a prova real desta mediocridade). Fellini interpela uma certa intelligentsia crítica pelo facto dos seus meios, isto é, a sua estética, se situarem claramente no quadro das superproduções, isto é, do cinema «comercial» — o «show», o espectáculo, está definitivamente ligado ao «business», valor exclusivo de troca. Ora a singularidade de Fellini reside sem dúvida no facto de ter posto em causa esta equivalência grosseira, ou pelo menos em tê-la formulado em termos mais complexos. Porque a oposição entre arte e dinheiro é uma conjectura do espírito, enquanto não for definida a função social do artista, totalmente inadequada no que diz respeito ao cinema, veículo histórico da substituição do valor cultual da obra pelo seu valor de exposição. Fellini baralha as cartas todas. Fellini compromete-se pessoalmente em todos os seus filmes — quer falando na primeira pessoa (OS CLOWNS, ROMA), quer fazendo-se representar por um duplo (Mastroianni em OITO E MEIO, LA DOLCE VITA, A CIDADE DAS MULHERES, os apresentadores em AMARCORD e O NAVIO) — e o espectáculo é assumido como representação de fantasmas pessoais. OITO E MEIO constituiu certamente um patamar importante, ao fixar o abandono da continuidade ficcional: apesar do projecto — mostrar G. Masina, simultaneamente divinizada e derrubada do seu pedestal — ser o mesmo em A ESTRADA, AS NOITES DE CABÍRIA e JULIETA DOS ESPÍRITOS, o tratamento é diferente, e a continuidade, neste último filme, explode numa «montagem de atracções» em que o fio condutor se reduz à permanência das personagens — estrutura descosida que Fellini parece ter definitivamente adoptado. A primeira contradição surge pois entre uma representação narcísica e um aparelho de produção pesado ao qual se vem juntar a necessidade de dar às imagens pessoais um conteúdo suficientemente arquetípico para poder encontrar eco nos fantasmas do público. O facto é que Fellini transforma, através do cinema, o seu universo pessoal numa série de clichés; neste sentido, assemelha-se a Baudelaire, do qual ele retoma espontaneamente certas figuras — das gigantas, prostitutas e outros «monstros» aos mares e crepúsculos de pacotilha; retoma sobretudo, desviando-o, o conceito de «artificialidade». O que separa Fellini de Baudelaire é o dandismo, o desejo de chocar, ausente em Fellini, isto é, toda a dimensão de ordem moral. Baudelaire interpreta o mundo em relação a si, Fellini procura situar-se numa história (a da cultura italiana, a do cinema). Com efeito Fellini fala sempre do cinema. Não só o mundo do cinema aparece representado, pelo menos pontualmente, em numerosos filmes, do CHEIK BRANCO a GINGER E FRED, passando por LA DOLCE VITA, OITO E MEIO, TOBY DAMNIT, OS CLOWNS, ROMA, A CIDADE DAS MULHERES e O NAVIO, como também, de forma mais ou menos metafórica, todos os seus filmes têm por tema central o espectáculo e a comunicação. Ora é ao nível do discurso metalinguístico que a originalidade de Fellini se revela: já não se trata de citações para cinéfilos — pelo contrário, todas as imagens de Fellini se caracterizam pela sua originalidade plástica —, nem de efeito de distanciação — o referente metalinguístico só intervém para exprimir uma escolha pessoal de Fellini —, nem sequer de um elemento do cenário (como em certas comédias musicais americanas). Quando a câmara aparece, torna-se actuante e desempenha um papel no sentido estrito. Ocorremme dois exemplos, ambos tirados de O NAVIO, que certamente explicitarão o que atrás se afirma: 1) No princípio do filme — imagem muda, cor sépia (toda esta parte encena a problemática de uma inserção na história do cinema) —, os figurantes vêm todos apresentar-se . perante a câmara: esta imagem é inédita (das tais que se cortam quando acontecem durante a rodagem) mas corresponde tão rigorosamente a um reflexo partilhado pelo espectador que a sua verdade faz duvidar um instante que se trata de uma encenação. 2) No fim do filme, o cenário é mostrado enquanto tal, com toda a equipa técnica (resposta exacta aos primeiros planos, como se o espectador pertencesse ao plateau e fosse posto perante a câmara),


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