CONVERSA COM ANTOINE BONFANTI Regina Guimarães — Fala-nos do teu percurso... tal como o vês, claro... Antoine Bonfanti — Haveria várias maneiras de o reconstituir. Mas talvez comece pelos meus 16 anos, idade em que entro para a resistência; aos 20 anos, estou na guerra de libertação, na guerra contra os fascistas. Dois anos de guerra, sou desmobilizado em 1945. Propõem-me um estágio de cinema. Porque não? Eis-me responsável pela «perche» em LA BELLE ET LA BÊTE. Já nessa época o cinema era um mito. Entrar no mito, descobrir a magia de uma rodagem, poder passear por todo o estúdio, ir assistir às misturas de LA BATAILLE DU RAIL e às filmagens de MONSIEUR VINCENT, de LES PORTES DE A NUIT... foi um verdadeiro sonho. Mas o sonho acaba em 1948 por causa dos acordos Bloom Burns que prefiguravam o plano Marshall. Os estúdios despedem o pessoal todo porque pretendiam adoptar o modelo de funcionamento das Majors. Vou então trabalhar para a rádio, de Julho de 1948 a Janeiro de 1950. Em 1950, um dos amigos diz-me que encontrou um emprego, que vai trabalhar para o Auditório da Éclair (que na altura era um grande complexo com laboratório e estúdios com «plateaux» de rodagem), e pergunta-me se o quero substituir na M. G. M. França. Lá vou eu para a Metro Goldwyn Meyer francesa onde conheço um homem importante, Jean Nenny, com quem simpatizo. Um engenheiro de som que encontrei por acaso convida-me posteriormente para ir dirigir o Auditório da SIMO. Ainda não me sentia preparado mas, em contrapartida, sabia que o Nenny estava perfeitamente à altura. O Nenny deixa a Metro e lança as bases da SIMO. Um ano depois, o Nenny chama-me para eu ir colaborar com ele. De 1956 a 1961, trabalho pois na SIMO. O Nenny está na origem de todo o som moderno. Foi ele que inventou tudo. O som moderno é obra do Nenny, nunca será suficientemente repetido. E o Nenny ensinou-me tudo. À partida ensinou-me a montar uma máquina, a saber servir-me das mãos como da cabeça. Não tínhamos direito à avaria, a priori. E se calhasse termos uma avaria, era preciso descobrir rapidamente «porquê» e encontrar logo o «como» para tudo voltar a funcionar. Em caso de pânico, de não encontrarmos a causa da avaria, telefonávamos-lhe imediatamente, a qualquer hora do dia e da noite. Nesta fase, conheci imensas pessoas, convivi muito. O Alain Resnais com NUIT ET BROUILLARD, o Marcel Camus na época de ORFEU NEGRO, o Clouzot durante a produção de LE MYSTÈRE PICASSO. Conheci as duas versões da LOLA MONTÈS do Max Ophüls — a versão do autor e a versão do produtor. Aliás, a versão do produtor nunca saiu. O produtor estava convencido de que o público era demasiado estúpido para perceber a LOLA MONTÊS do Max Ophüls. Então pretendiam montar primeiro o circo e depois a vida da Lola Montès. Hoje, toda a gente já compreendeu que a versão do Ophüls é uma obra-prima... O Nenny também me ensinou as misturas e a pós-produção. Quando um amigo me desafiava para uma rodagem, dispensava-me dos meus «deveres» e deixava-me ir. Foi assim que assisti a imensas filmagens e nelas participei. Comecei a assumir trabalhos de mistura de grande responsabilidade. Fiz a pós-produção de OS BANDEIRANTES do Marcel Camus e também de outro filme que me marcou muito, para o qual tive de dirigir as dobragens, os «bruitages» e as misturas: RASPOUTINE do Pierre Chenal. Saguenail — Nessa época, não havia som directo no cinema... A. B. — Era raro, principalmente fora do estúdio. E, muitas vezes, quando não havia dinheiro para alugar um estúdio caro, íamos para um estúdio «barulhento» e éramos obrigados a pós-sincronizar. Os profissionais da dobragem que tratavam da versão francesa — a versão original mas póssincronizada — do filme eram obrigados a pagar de novo os direitos para a versão inglesa. No RASPOUTINE também fiz a versão inglesa; fiz a mistura da versão francesa, fiz a mistura da versão inglesa e aí apercebi-me de que tinha utilizado umas cinco vezes a música do genérico porque eles achavam que não havia música suficiente no filme. Não se passava nada na fita então lá se voltava a pôr a música do genérico. Nessa altura disse para comigo que, no dia em que viesse a ser responsável por um trabalho desse tipo, não havia de consentir que mudassem os níveis que tivesse escolhido e, portanto, que a versão internacional seria sempre em mono, ou seja, com uma só pista. Entretanto, os anos foram passando e um dia o Marcel Camus propôs-me a rodagem do filme L'OISEAU DE PARADIS no Camboja que foi o primeiro projecto que assumi integralmente:
filmagem, pós-produção e misturas. Mais uma vez, aprendi que havia coisas a fazer e coisas a não fazer, porque o que se deve fazer descobre-se mais facilmente. Quando percebemos o que não podemos fazer, somos obrigados a descobrir o que fazer. Durante a minha passagem pela SIMO, conhecera o Chris Marker, o Alain Resnais e muitos outros... Ao regressar do Camboja, o Chris Marker pediu-me para rodar com ele o projecto LE JOLI MAI. Rodámos LE JOLI MAI e tivemos algumas dificuldades que nos obrigaram a inventar imensas coisas. Foi preciso inventar a reportagem, inventar a «perchette», a «perche» curta e as «bonettes» (protecção para os microfones) porque filmámos 90% das sequências nas ruas. Tivemos de arranjar um microfone que permitisse gravar inteligentemente na rua. Foi assim que descobri o M 160. S. — E isso foi em... A. B. — Em 1962. Em Maio de 62. Em Setembro/Outubro de 62, estava a filmar MURIEL com Alain Resnais. Durante os acabamentos de LE JOLI MAI e de MURIEL, pediram-me para ir fazer uma reportagem sobre Cuba, em Janeiro de 1963. Mais uma descoberta. Estive lá com o Chris Marker. Nasceu uma nova escrita cinematográfica. Tratava-se dum filme com base em fotografias no qual não podia haver som directo. Por conseguinte era necessário inventar e trabalhar um som em função duma história contada a partir de imagens pré-existentes. Era preciso dar vida a essas imagens, uma vida diferente da vida própria das imagens sobretudo porque eram fotografias filmadas com técnica de animação. Depois foi THE LOVE CAGE... Eu digo sempre THE LOVE CAGE mas trata-se de LES FÉLINS do Clément. Porque fizemos duas versões mas o filme foi rodado com a Lolla Albraight e com a Jane Fonda na língua das actrizes. O Alain Delon também entrava. A seguir, trabalhei em L'INSOUMIS do Cavalier, ainda com o Alain Delon. Fartei-me de encontrar pessoas e fazer filmes... o André Delvaux, o Jean-Pierre Sentier... S. — Para nós tu estás ligado à transformação radical da consciência do que pode ser um filme. Afinidades com o Resnais, com o Marker, com o Ivens, com o Godard... Essas pessoas conheciamse? Tinham muitos contactos? A. B. — Conheciam-se, mas sobretudo conheciam os filmes uns dos outros. Lembro-me de ter misturado LOIN DU VIETNAM antes das misturas de LA CHINOISE. Havia o Resnais, o Klein, o Godard, a Varda... até o Lelouch... e o Ivens. O Godard tinha-nos enviado a voz dele gravada, para falar do Vietname, e a imagem da câmara dele. E o Chris fez uma montagem. Levou até aos últimos limites a loucura da época, provocando efeitos de ruptura com planos contendo apenas 6 imagens. Ora o laboratório exigia 12 imagens para fazer «étalonnage» (escolha de luz). Pouco tempo depois, o Chris viu LA CHINOISE e disse: «Já percebi porque é que montei o filme do Godard daquela maneira!». Sem se conhecerem intimamente, através do conhecimento dos filmes uns dos outros, formavam uma espécie de família. Uma família com todas as contradições próprias duma família. Uma família é como um país ou um estado... é uma entidade cheia de contradições. Entre irmãos, nem sempre nos entendemos. Cada irmão encontra amigos noutros sítios. Amigos que virão a ser mais fraternos do que os irmãos por parentesco familiar. Uma sociedade funciona como uma família mas é formidável ter irmãos e irmãs noutras paragens, noutros círculos. S. — Mas o que contaste significa que reinava uma grande confiança. O Godard envia imagens ao Chris Marker concedendo-lhe toda a liberdade de as montar... A. B. — É mais do que confiança. O Jean-Luc pensou: «Não me vou filmar a mim próprio. Não vou filmar o Vietname que não conheço... Só posso falar». E falou. «Só posso mostrar o meu suporte». E mostrou a câmara dele. E o Chris montou esse material com imagens que criavam um contraponto, ou que se integravam nas grandes linhas do argumento. O que é a montagem? Um amigo escreveu um livro sobre isso onde afirma que essa é a arte da manipulação. Da manipulação no sentido positivo do termo: agarras com as mãos e fabricas coisas. Acho que estamos a perder um pouco essa arte da manipulação. E como a palavra também mudou de sentido, banhamos actualmente no novo sentido da manipulação quando fazemos imagem sintética ou por computador. Perdemos o contacto físico com o que fazemos. Nessa época éramos verdadeiros artesãos. Hoje pedem-nos que sejamos técnicos, o que é completamente diferente.
R. G. — Para todos os que conhecem o teu trabalho, é evidente que o teu som é imediatamente reconhecível. A tua «maneira», o teu «saber-fazer», ainda que adaptado de filme para filme, aparecem como marcas indeléveis... A. B. — Mas isso é absolutamente normal. Há um som Bonfanti como há um som Nenny. As misturas do Nenny reconheço-as no meio de mil outras. Como reconheço as do meu amigo Jacques Maumont. As misturas do Alex idem. E a princípio reconhecia as misturas dos meus alunos. Agora já não as reconheço porque «entraram na linha» por assim dizer. O nosso ofício do som deve ser assumido como um trabalho totalmente pessoal e subjectivo que deve condizer com o filme para o qual trabalhamos. Não se faz «cinema», faz-se sempre um filme. Cada vez que começamos um filme temos medo como o actor antes de pisar o palco. Enquanto não ouvimos a ordem «Motor» estamos tensos como o actor à espera das pancadinhas de Molière... Depois a cortina sobe e os actores são obrigados a atirar-se à água e a nadar até ao fim da travessia. Para um profissional do som que trabalha num e para um filme é exactamente o mesmo estado de espírito. Temos a segurança do saber e da experiência mas sentimo-nos cheios de incertezas. Quando ouvimos «Motor», acabou-se, começou a travessia e estamos todos no mesmo barco. É sempre uma aventura extraordinária e uma experiência que só se pode viver subjectivamente. Quantas pessoas tentaram copiar ou utilizar reminiscências de grandes realizadores ou músicos? Nunca conseguiram igualálos ou substituí-los. Só podemos ser nós próprios. Simultaneamente, no nosso trabalho temos uma relação com a matéria exactamente igual à do escritor que, mesmo quando volta a escrever uma página, nunca escreve a mesma coisa. Ou como um pintor que volta a pintar um quadro, ou um actor que nunca representa de maneira idêntica; cada tomada de vista é diferente e traz algo de novo. O interesse da nossa profissão é sermos obrigados à renovação. Somos obrigados a pensar de forma diferente em função do que se passa à nossa frente e à nossa volta e da história que se está a contar... R. G. — Falavas da época da guerra do Vietname em que a problemática política estava mais presente no cinema europeu dito de autor do que hoje. Achas que as clivagens políticas contribuíram para dispersar a tal família ou que, pelo contrário, a fortaleceram? A. B. — É como na vida. Temos outros encontros, formamos outra família mas, no fundo, é a mesma. Digamos que é uma família enriquecida. A cultura de um país ou de um povo vem dos encontros entre todos os povos, entre as culturas que opõem esses povos. Na nossa arte, também são os encontros e as trocas, mesmo quando são duros e violentos, que a fazem avançar. Às vezes o «tom» pode ser agressivo. Mas do confronto nasce sempre algo de enriquecedor, porque exercemos todos o mesmo ofício de forma radicalmente subjectiva. Um realizador só pode realizar os seus filmes. Escolherá temas muito diversos mas sempre ligados uns com os outros. Poderá optar por encenações totalmente diferentes mas haverá sempre um olhar. Não é por a câmara estar à esquerda ou à direita que o olho muda. O que muda é o ponto de vista, um ponto de vista de um momento situado na linha do tempo. É o ponto de vista de um certo momento, só que esse momento é o momento do filme. Esse momento do filme transforma-se num momento de vida e entra na vida como tudo o que é cultural. Há autores que mudam de estilo, mas não mudam de casaca. A dada altura escrevem com frases curtas, noutra escrevem com frases que nunca mais acabam. Descobrem maneiras novas de escrever... Tudo isso é válido conquanto se ajuste ao que estão a dizer e ao que querem dizer. S. — No sector do som, a tua imagem está ligada a duas áreas que muitas vezes aparecem como tarefas distintas. Uma é o som directo, ou seja, o filme enquanto acontecimento em que tudo é modificado, inclusive ao nível da percepção do tempo, no momento da rodagem porque algo de «único» se passa. A outra é a das misturas, não raro separada dos outros momentos da produção. Ora, eu sei que tu transformas as misturas numa espécie de segunda etapa da rodagem, uma re-rodagem, durante a qual se goza da possibilidade de reviver tudo em directo, não é? A. B. — Como é que se explica o trabalho das misturas? Pode ser uma orquestração. Pode ser um «étalonnage» (literalmente padronização) como se diz para a imagem... Ou seja, antes de se dar luz verde para a primeira cópia escolhem-se as «luzes» a fim de garantir uma continuidade luminosa. A passagem de uma luz para a outra deve ser harmoniosa na orquestração das imagens do filme. Na
mistura temos de encontrar o nível ideal entre 2, 3, 10 sons, exactamente como numa orquestra, posto que os instrumentos não tocam todos com a mesma intensidade. O maestro dirige e guia. O engenheiro do som, durante a mistura, vê a imagem ao mesmo tempo que ouve os sons e os seus dedos mexem «sozinhos» nos botões para corrigir tudo o que não está certo e criar o tipo de harmonia que se pretende. O objectivo é obter um produto o mais próximo possível da perfeição. Próximo, claro, porque a perfeição não existe. S. — A perfeição é o universo do filme, é interna ao filme. A. B. — A perfeição dum filme é-lhe interna. Quando se percebeu o espírito do filme, trata-se de o exprimir perfeitamente, primeiro na captação do som e depois, para os acabamentos e refinamentos, na mistura. Aí temos de avaliar, por exemplo, o significado de pôr um som mais ou menos forte. Porque o sentido pode variar muito, mas há uma conjugação ideal de sentido para o filme. Temos que decidir em três imagens o que é um lapso de tempo muito curto, um quarto de segundo. É extraordinário conseguirmos ter os reflexos totalmente condicionados pelo que vemos e ouvimos. O Godard um dia disse que eu misturo como um piloto de avião. Mas é verdade que o «tempo» deixa de existir quando estamos a misturar. Estamos numa dimensão em que o tempo se estica ou encolhe. Se entrarmos no tempo do filme, escolhemos os balanços certos. S. — E isso não corresponderá à negação de um tempo regular contra o qual se inventa outro tempo? A. B. — O que é um quadro se não isso? S. — Pois, o quadro cria o tempo da sua contemplação... A. B. — Que pode ser três dias para uma pessoa, como outra pessoa pode passar por ele sem o ver. O tempo existe sempre em função do que sentimos. As pessoas que sofrem de insónia, quando acordam ao meio da noite, dão uma olhadela ao relógio, viram-se e tornam a virar-se na cama, voltam a olhar para as horas, têm impressão de que se passou uma hora e passaram-se escassos minutos. Depois caem no buraco do sono profundo; acordam sobressaltadas e verificam que dormiram duas horas quando julgavam ter dormido dois minutos. O tempo é sempre subjectivo e ainda mais num filme. O filme pode contar três horas da vida de um homem ou cinquenta anos. Porém, não é possível contar tudo desses cinquenta anos de vida. Escolhem-se os momentos por alguma razão significativa. Mas, ao mesmo tempo, é preciso que se perceba o que não é mostrado. No fim da fita, os pessimistas pensarão que o homem não vai tardar a morrer e os optimistas acharão que ele ainda vai viver vinte anos. S. — Nos anos sessenta e setenta, para a nossa geração — eu era, na altura, jovem espectador — o teu nome andava associado a criadores cuja obra ia decerto ficar na História: o Chris Marker, o Godard, o Resnais. Nos anos oitenta e noventa, por ora o teu nome está ligado a pessoas que, na sua maioria, são pouco conhecidas do público: Amos Gitaï, Vecchiali... Como entender esta nova família? Isso significa uma nova vanguarda a emergir? Houve ruptura com os outros que nos anos sessenta eram personagens polémicas e agora são internacionalmente reconhecidos? Ou foste tu que mudaste? A. B. — Quanto a mudar devo ter mudado!... Mas convém não esquecer que o MURIEL do Resnais não teve nenhum êxito comercial. LE JOLI MAI também não. E o filme do Delvaux L'HOMME AU CRÂNE RASÉ ficou dois anos na gaveta antes de estrear depois de ter tido um prémio em Cannes. O Festival de Cannes não tinha o impacto comercial que hoje tem. Quando trabalho com pessoas como o Amos Gitaï ou o Paul Vecchiali ou o Michel Kleiffi, sou coerente comigo mesmo. E, se pensarmos um pouco, o que é um clássico? O clássico foi sempre uma obra de vanguarda em relação ao clássico anterior, seja na literatura, seja na pintura, seja na música... Há pessoas que levam mais tempo a furar. Mas quando me perguntam se sou pessimista no fim do primeiro século do cinema, respondo sempre negativamente. E com convicção. Enquanto houver pessoas a fazer um cinema diferente, pessoas que se recusam a entrar na linha do cinema-comércio, a gente do mundo inteiro poderá comunicar porque através dum filme os humanos compreendem-se. As barreiras de linguagem deixam de existir. Há um filme do Luc de Heusch que se chama LES GESTES DU REPAS no qual participei. Depois trabalhei num filme peruano que fala de camponeses que são expropriados por causa de um projecto de alargamento dumas minas; os camponeses partem para os montes e, após um dia de caminhada nas serranias
do Peru, param, acendem uma fogueira e cozem batatas nas cinzas. A forma como os camponeses peruanos e as personagens do filme belga pegam nas coisas, com as mãos, lembra quase uma missa. É um autêntico ritual. Quando os pobres comem, a refeição é um ritual porque se trata duma actividade primordial. A forma como agarram, como distribuem, como descascam as batatas e bufam porque ainda estão muito quentes é extraordinária. Mostrei este filme a uma data de amigos distribuidores que me disseram que as imagens eram demasiado belas. Rompi com eles. Não percebo porque é que um filme militante deve ter imagens de má qualidade, imagens mal enquadradas e desfocadas... Por que é que não se podem exprimir belas ideias com belas imagens? As belas imagens só servem para ilustrar as ideias medíocres? Não posso estar de acordo com isso. Como vês, não mudei. Escolho sempre filmes difíceis porque me interessam. E interessam-me também por serem realizados com os meios disponíveis. A casa de produção do Jean-Pierre Sentier chamava-se «Faire Avec» (fazer com o que há). E é verdade que não é por dispormos de muitos meios que vamos realizar bons filmes. Pelo contrário, quando há muitos meios, a tendência é descansar sobre os meios e ficar preguiçoso. Se só houver um ou dois microfones, somos obrigados a procurar e encontrar soluções, somos obrigados a entrar completamente no filme, no assunto por dentro. Avaliar, por exemplo, o valor de cada palavra, de cada som. Ora, a troca de ideias acontece graças à musicalidade da imagem e do som. Uma onda pode ser mais eloquente do que três palavras numa frase ou do que um longo discurso. A arquitectura do som serve para exprimir o contexto total do filme. S. — Como são hoje em dia as tuas relações com o Chris Marker, o Resnais e o Godard? A. B. — Tenho muitos contactos com o Chris Marker, embora nos vejamos pouco porque ele tem outra maneira de trabalhar. Quando precisa de mim, chama-me. Quando preciso dele, entro em contacto com ele. A verdadeira amizade e osmose entre as pessoas não é mandar cartões de Feliz Ano Novo a cada novo ano que passa. É ver um amigo depois de dois anos de ausência e continuar a conversa como se nunca tivéssemos estado afastados. Quando estou com o Alain Resnais, retomo conversas começadas há trinta anos. Não mudámos um em relação ao outro. Para a rodagem do STAVISKY, eu não estava disponível e ele trabalhou com outra pessoa. E entendeu-se muito bem com ela... porque é que havia de me preferir a esse bom colaborador? Com o Vecchiali, continuo a trabalhar regularmente. Com ele jogam muitas coisas pessoais, minhas e dele. Ele sabe perfeitamente quais os filmes que quer fazer comigo e quais os que eu talvez não queira fazer com ele. Não lhe faço perguntas... Com o André Delvaux, a relação é idêntica. Enquanto não havia engenheiro de som à altura na Bélgica, eu fazia a captação do som dos filmes dele. A partir do momento em que surgiu o Henri Morelle na Bélgica, se ele pedisse ao produtor para contratar o Bonfanti, o produtor não havia de perceber qual a necessidade de gastar mais dinheiro com despesas de deslocação. O Henri Morelle trabalha aliás muito bem. É excelente. Já faz parte da família. Fez um filme do Resnais e até «tentou» fazer um filme do Godard... sofreu imenso mas acabou mesmo por fazer um filme do Godard. E o Godard costumava dizer que se tinha enganado. Que em vez de misturar DEUX OU TROIS CHOSES QUE JE SAIS D'ELLE, eu devia ter misturado o ALPHAVILLE. Essa é a visão que ele tem das coisas... Entendeu-se perfeitamente com o René Levert; no entanto, para UNE FEMME MARIÉE, chamou-me... As opções dos realizadores são absolutamente normais. Durante muito tempo o Godard trabalhou com o Raoul Coutard. A certa altura, optou pelo Willy Kurant... mas não se entendeu com ele porque ele pedia-lhe para verificar o enquadramento. O Godard achava que não precisava de dizer se gostava ou não do enquadramento. S. — Numa certa época, há uma emergência de um novo sentido do som. Tenta reconstituir esse processo de génese do novo som... A maior parte dos cinéfilos associam esse fenómeno aos realizadores... A. B. — Isso é normal... S. — Sim, mas existem cineastas do som, como tu, como o René Levert... A. B. — Eu conheci o René na época em que fazia misturas para a SIMO. Trabalhei nas misturas do HIROSHIMA MON AMOUR... e havia alguns problemas com o som desse filme. O Nenny ensinou-me uns truques de engenheiro do som. Quando num filme tens níveis de sons constantemente muito baixos,
deves baixar a escuta para poderes aumentar o nível. Assim o realizador ouve o filme como quer ouvilo. É uma pequena ginástica técnico--intelectual porque é preciso ter em conta que os níveis deixam de corresponder à escuta normal. Mas, ao mesmo tempo, se tentares explicar ao realizador que está a ouvir X enquanto o resultado será Y, não dá. É muito difícil. Pelo contrário, quando o filme que estás a misturar tem níveis muito altos, sobes a escuta. Doutro modo, os níveis altos vão deixar de existir. Porém, nessa altura, tens de cuidar dos teus níveis baixos porque esses vão desaparecer. No INDIA SONG, quando tinha baixos níveis, também baixei a escuta, três ou quatro decibéis. A escuta era muito mais baixa do que é costume, mas, quando surgiam os gritos, deixava de olhar para o ecrã, e fixava-me na agulha de forma a evitar que o som saturasse. A orelha é que diz se está a saturar e não a agulha. Uma saturação de som significa que o som fisicamente tem problemas. Física e electronicamente... e isso ouve-se. Não é por a agulha entrar na zona vermelha que o som não vai ser bom. Já tive sons saturados com uma agulha estável ao meio. Porque havia demasiados sons complexos, desses sons a que chamamos «transitórios» que nenhuma filtragem pode eliminar na medida em que são muitíssimo rápidos. Esses sons fazem picos e os picos produzem parasitas. O problema é que, a partir de um certo limite, há sons que não podes montar. Ora, muitas vezes o realizador não percebe que não os pode montar. É preciso explicar-lhe e dar-lhe a ouvir. A gente chamava a isso «o jacto de água do MON ONCLE». Quando o Maumont estava a misturar o MON ONCLE, o Tati pedia-lhe para pôr o jacto de água mais alto. E o Maumont respondia-lhe que não podia. O Tati ficava indignado. Então Maumont explicava-lhe que o jacto ia fazer «crr, crr», coisa que o realizador não pretendia. O Maumont propôslhe começarem com um nível mais baixo e aumentavam até obterem o efeito desejado. O Tati aceitou e recomeçaram tudo. Os valores de som devem adaptar-se às passagens do filme que estão a ser misturadas. Uma explosão é um som saturado. Um grito são cordas vocais saturadas. Não se pode querer um grito «puro»... Só na música é que não devemos saturar certas coisas. Mas, na música, conforme a acústica, há metamorfoses que se operam e que o ouvido acha belas. Ora o ouvido não as acha belas se for uma gravação. Uma vez tive problemas com um coro e dois sopranos que cantavam lado a lado, porque se gerava uma intermodulação com as duas vozes, o que produzia um efeito horrível. Tive de pedir ao maestro para separar os sopranos ou modular cada voz de forma diferente. O maestro disse-me que era impossível. Então deixei o microfone em frente ao coro e gravei o resto em reverberação. O músico ficou muito satisfeito. Veio-me pedir para fazer reverberações num disco que ia gravar: uma missa «disco». Havia um camião de som com um gravador de 24 pistas que gravava a música e eu, com o meu pequeno Nagra, procurava colocações para o microfone onde ele só captasse reverberações. S. — A propósito de truques. Não sei se inventaste todos os truques que te vi fazer, possivelmente não os conhecia por pura ignorância minha. Já me passaste uma banda colocando-a do lado mate, já me passaste uma banda ao contrário e a metade da velocidade, já me gravaste um som com o microfone virado para a parede em vez de o orientares para a fonte sonora... Essas soluções, cujo resultado nos faz parecerem evidentes e adequadas, não se aprendem em lado nenhum. Como é que as «descobriste»? A. B. — Um filme que me marcou profundamente foi o BOUDU SAUVÉ DES EAUX. O som desse filme é muito moderno. É uma mistura à Godard. Tudo é sujo, tudo se entrechoca, é extraordinário. Ora, quando eu vi o BOUDU SAUVÉ DES EAUX, nem sequer ainda sonhava fazer cinema e o certo é que aquele som já tinha sido feito. Na nossa época, a filosofia grega continua viva. E, na nossa época, faz-se filosofia para o ano 3000. Onde está a modernidade? A modernidade é obra das pessoas que pensam e se deixam levar pelo seu pensamento. Se eu pensar que pondo o microfone ao contrário vou obter um som que é mais do que a imagem porque há algo que não corre bem entre os dois protagonistas, devo fazê-lo. Há uma personagem presente, a outra está escondida, aquela que está presente tem o microfone à frente, aquela que está escondida tem o microfone ao contrário mesmo que esteja colocada em frente à câmara. Esta solução é o resultado d uma cadeia de pensamentos que a dada altura germinaram. É uma experiência que se tenta. Se não resultar... paciência. Se resultar, óptimo. Se não tentarmos a experiência, nunca encontraremos a solução e, provavelmente, nunca ninguém o fará. Claro que há muitas pessoas que não concebem que se possa colocar um microfone ao contrário ou que se possa destimbrar uma voz. Mas quando se destimbra
uma voz e ela adquire uma outra dimensão no espaço também se confere uma outra dimensão ao sentido da frase que está a ser pronunciada. É uma solução que pode estar completamente ao serviço do filme e, se não funcionar, devemos admitir que nos enganámos e refazer. No filme do André Delvaux em que ele entrevista o Woody Allen, o Delvaux perguntava-lhe o que é que ele fazia quando não estava contente com uma rodagem. E o Woody Allen respondia: volto a fazer. Aí o Delvaux retorquia que os americanos têm meios de que os europeus não dispõem. E o Woody Allen: «Pois, mas, com meios ou sem eles, não vou contentar-me com uma sequência que não me satisfaz!». O Delvaux declarava que os europeus não podiam dar-se a semelhante luxo e o Woody Allen continuava a afirmar que podiam. O problema é que a lei económica é mais forte do que todos os princípios e, de facto, a maior parte das vezes não se pode recomeçar. Ora, o Woody Allen trabalha como um escritor. Quando não está contente com um capítulo, deita-o no cesto dos papéis. Claro que custa mais caro. Porém, se o filme for bom, também rende mais dinheiro. Porque quando um filme tem sucesso, dá dinheiro. Como nunca se sabe se um filme vai ter sucesso, parte-se do princípio que não se volta a filmar mesmo se o que se filmou for mau. No domínio do som, a questão é idêntica. É preciso poder fazer marcha atrás. S. — Há uma coisa que me parece significativa. Até aos anos 60, os artigos do Godard, do Truffaut, etc. — o Bazin constitui uma excepção — têm por referência o cinema americano. Quando passam à realização, dá-se conta que não podem fazer cinema americano e fazem outra coisa. Foi uma atitude duma lucidez excepcional que permitiu o salto. Hoje em dia, passa-se o contrário. Quando se interrogam as pessoas, a referência é muitas vezes o cinema europeu. Porém, mal passam à realização, tentam fazer cinema americano. Como é que isto aconteceu? A. B. — A minha ideia é que se trata de colonização. 95% dos colonizados económicos não se vêem como colonizados. Para as pessoas, a colonização é uma ocupação. Ora, a ocupação dos ecrãs é pacífica. Uma ocupação do campo das ideias é pacífica. Portanto os ocupados não podem defender-se. E se atacarem, o ataque parece gratuito tanto mais que ninguém pode prever as consequências. Dez anos depois, os ocupados percebem que o ataque justificar-se-ia, que a reacção era necessária, mas nessa altura já é tarde de mais. Só que se tu levantares a voz para criticar o sistema prevendo as suas consequências nefastas, vão-te dizer que estás louco e que exageras no pessimismo... Onde vai parar o nosso cinema se hoje não o defendermos? Onde vai parar a nossa cultura cinematográfica que supostamente todos na imprensa nos invejam mas que ninguém defende na imprensa? Quem defende a identidade do cinema europeu em relação ao cinema americano, invasor absoluto dos nossos ecrãs? Se essa reacção de defesa não for para hoje, amanhã será tarde de mais. Quando escorregas e não te agarras, cais e vais parar ao fundo. E agarrar-se é com unhas e dentes. Implica resistir. E se formos dez a escorregar e dermos as mãos, temos mais hipóteses de voltar a subir e de encontrar o equilíbrio. As lições da História têm muito que se lhes diga. Há 6 meses, tínhamos o Ruanda... uma catástrofe. Agora temos o Burundi e as pessoas dizem que é a mesma coisa. E o cúmulo é que acham isso normal. Ainda ninguém disse: parem com os massacres. Ou melhor, dizem, mas nada fazem. Aceitamos que os nossos governos continuem a fornecer-lhes armas. Consolamo-nos com belas frases enquanto eles continuam a matar-se uns aos outros. E mata-se o cinema como se matam Tutsis ou Hutus. Seja como for, no cinema é-se sempre Tutsi ou Hutu de alguém. R. G. — Fala-nos do som como enquadramento. A. B. — O som é uma forma de enquadramento. É evidente, só não é evidente para quem não ouve o que escreve, para quem não ouve o filme no momento em que o concebe. Quem só pensa em imagens e movimentos de câmara não consegue criar em termos de quadro sonoro. O enquadramento sonoro deve permitir à imagem transbordar o ecrã. O som é para mim uma espécie de zoom psicológico. S. — Na escrita do MA'S SIN coloquei a mim próprio essa questão. Ou seja, não haverá necessidade de escrever uma planificação sonora, um verdadeiro découpage do som? Indicar travelling sonoro. grande plano sonoro, etc. A. B. — Pois, mas o verdadeiro problema é o «como» e o «porquê». É na rodagem, no momento em que as coisas se passam que se sente a necessidade de inventar soluções. Escrever... não chega. Ou melhor, escrever é outra coisa. Aliás, já te fiz algumas propostas. Mas são propostas provisórias
cuja execução depende do que se vai passar na rodagem. Costumo preparar um leque de soluções. É preciso que a minha cabeça esteja preparada para responder. Se quero obter o resultado A, posso tentar a solução X, Y ou Z conforme o que acontecer no momento em que se está a rodar. Disse-te que queria quatro ou cinco «sons» do filme. E até já pensei em mais dois ou três. Por exemplo, utilizar unicamente a reverberação física do espaço. Talvez mesmo através dum tubo para obter um efeito de «língua», um efeito de som que gira. As palavras estão presentes mas possuem uma auréola de palavras. Se dispusermos duma provisão de dados muito diferentes, depois poderemos optar por aqueles que se revelarem mais expres sivos. Mas um filme não deve ser só visto e ouvido. Nos «Nouveaux Contes de Canterbury» (o último conto do Whisky), do Jean Ray, há três páginas sobre o som de Londres no nevoeiro. Que filme maravilhoso! E, em muitos romances, há passagens que descrevem ambientes sonoros, atmosferas sonoras construídas em torno do enredo. Mas nos textos dos guiões não. Quando se escreve o argumento, redigem-se os diálogos e, por vezes, indica-se a música. Mas dizer como é o silêncio do dia ou da noite e o que ele significa ou representa, ninguém se preocupa com isso. Portanto, quando trabalho para um filme, tenho de procurar ou inventar o vento, o mar, o barulho ou o silêncio que convêm ao filme do ponto de vista expressivo. Sou obrigado a fazer esse trabalho sozinho. E ainda por cima é preciso ter sempre três ou quatro ideias diferentes para poder combinar cada som com os sons circundantes. Porque, quando se acrescentam instrumentos numa orquestra, é necessário repensar a orquestração, não é possível retomar os primeiros arranjos orquestrais. Portanto é indispensável ter margem de manobra... para pôr três violinos em vez de dois. O «terceiro violino» traz alguma coisa, logo servirá de contraponto ou de reforço ou... Um som que se acrescenta a uma imagem terá a função do tal «terceiro violino» que não estava lá antes. Quando se compreendeu esta dimensão do som, tudo se torna mais fácil. Se numa rodagem encontrares um décor extraordinário e ao colocares o microfone perceberes que tudo bate certo, não é preciso mistura. Não precisas de acrescentar som. Queres lá saber que não se oiçam os passos... seja como for, hoje em dia já não se ouvem passos... S. — Tu insistes sempre na ideia de que os teus sons têm uma coerência em relação a um filme e que esse filme é datado no melhor sentido da palavra. Isto é, corresponde também a um testemunho sobre um estado da percepção, no momento em que foi realizado. Cada filme é um testemunho. LA CHINOISE diz-me, através do som como através da imagem, o estado das coisas antes de 68. Falanos da relação com o nosso tempo. A. B. — LE DERNIER TANGO é um filme sobre um tempo. E também é uma música total. Enquanto filme italiano, o som de LE DERNIER TANGO devia ser apenas um som-testemunho, no sentido estrito, quer dizer para deitar fora. Isto porque os italianos não aceitam os filmes em versão original. Esperámos três dias pelos rushes visto que eram revelados na Cinecittá. Quando os rushes chegaram, o produtor veio assistir à projecção. Estávamos na expectativa. Era preciso decidir se o som ia ser mero testemunho ou se ia ser som directo a sério. E tivemos uma sorte inaudita porque havia o grande plano do Marlon Brando. Lembram-se do plano em que ele emite uns ruídos estranhos e desata a contar a vida dele? O produtor rendeu-se à evidência e disse: «Isto não é som, isto é música!». E aceitou que houvesse uma versão original de LE DERNIER TANGO. Porém existe também uma em italiano. Existe uma versão americana. Nenhuma vale a versão original, em que cada qual fala a sua língua. A Maria Schneider fala em inglês com sotaque francês. O Marlon Brando tenta falar francês com a sua pronúncia tipicamente americana. Esses valores do sotaque acrescentam algo do ponto de vista expressivo. Por outro lado, sublinhe-se que o Brando é extraordinário. Só tive dois problemas com ele: a cena do metro e a primeira cena em que se entra no apartamento. Tive de lhe dizer «Sorry, Brando... não ouço nada». E dei-lhe uma pancadinha na orelha. O Brando respondeu-me: «Wait a minute!». E lançou à equipa: «Please. Microphone! Camera! OK!». E soube imediatamente colocar a voz para a tornar audível sem estar propriamente em «grande» plano. Ouve-se mantendo a perspectiva sonora. R. G. — Então entendeste-te bem com o Marlon Brando... A. B. — Muito bem. Muitíssimo bem. Repito que o nosso papel é fazer o som que convém a um filme. O som que lhe corresponde. Se não fizermos o som que corresponde a um filme, não somos verdadeiros engenheiros do som. Tive uma discussão com o Coppola que me dizia que um
engenheiro do som é mais do que um engenheiro do som. «Não», respondi-lhe eu, «são os outros que são menos». Eu tento fazer o som do filme dum autor. Pega num filme do Resnais, num filme do Godard, num filme do Marker, encontras sempre uma ideia bem definida, uma marca, uma assinatura, tanto do realizador como do director da fotografia. Mas cada filme tem vida própria tanto ao nível da imagem como ao nível da encenação, tanto ao nível do desempenho dos actores como ao nível do som. Não existe um som standard para o Godard, nem para o Resnais, nem para o Marker. A partir do momento em que se muda de realizador, é preciso adaptar-se aos projectos de cada um. Mesmo com Jean-Pierre Ruh. Com o Ruh fiz LE CORNIAUD, LA GRANDE VADROUILLE, LA FOLIE DES GRANDEURS... São filmes que não renego. Fiz o som que lhes convinha. E dizia ao Oury: «O som, sou eu» — sempre que se tratava de colocar microfones, por exemplo. Para o resto, ele era o patrão. «Se quiseres um som mau, faço-to», preveni-o... «Mas é o teu som, não é o meu». E quando me pego com um realizador, o que por vezes acontece, não o poupo. «Cada um tem o som que merece. Se queres um som mau, vais tê-lo». S. — O cinema é um trabalho que envolve muita gente. Porém, em regra geral, é um trabalho que não se baseia na comunicação. Raramente se faz uma reunião onde estão presentes todos os membros duma equipa. A. B. — Já viram uma cirurgia do coração? É como um filme. O mais pequeno gesto é um gesto vital. Se há um participante que não faz parte da equipa, é um fracasso. Há certos filmes em que se sente que cada um fez o seu ofício e nenhum trabalhou realmente no filme: um fez o cenário, o outro a luz, um terceiro a música, uma série deles falaram, um fulano encenou, um sicrano captou som... mas não há osmose. Ora, nós temos a sorte extraordinária de fazer um trabalho colectivo. Um trabalho de equipa em que todos são supostos gostar da profissão. Quem não gosta da sua profissão nesta área deve escolher outro trabalho, outro ofício. Se não se é capaz de sentir as coisas no momento em que se passam, como o fotógrafo sente ao tirar uma fotografia, é melhor desistir. As mais belas fotografias-testemunho do nosso tempo são fotografias que toda a gente rejeitava e agora são valorizadas, apreciadas. É preciso antecipar, pensar de forma a que o nosso pensamento vá mais longe do que o nosso trabalho, e crie uma corrente que nos ponha em sintonia com os objectivos do esforço comum. Tirando os pequenos defeitos ou pormenores muito secundários, mal qualquer coisa corre mal, faço marcha atrás na mistura. Porque sinto que me «desliguei» e, entre mim e o ecrã, algo não bate certo. Exactamente como na rodagem. Faz-se uma tomada de vista. Para mim não correu bem. Peço 30 segundos e mudo de colocação de microfone. Porque aquilo que eu pensara não corresponde ao que está a acontecer, a ser feito. Quantas vezes não digo: «Este plano, vamos fazê-lo mudo». Claro que depois será sonoro. Apercebo-me, por exemplo, de que vai haver uma respiração importante e, que se não a conservar, a imagem ficará como morta. Ganhei este hábito porque nos rushes passavam o som todo, mesmo o som dos planos de corte, um som que não corresponde a nada visto que esses planos são rodados posteriormente e a atmosfera (tráfico, ruídos ambientes, etc.) já não é idêntica. Se na mistura venho a apanhar com esse som abusivamente montado, fico furibundo. Então decidi passar a rodá-los em mudo, pois assim são obrigados a procurar o som que lhes corresponde e não podem utilizar o som desadequado da tomada que não tem nada a ver. Num dos filmes em que trabalhei e de que não gosto, há uma refeição que levámos três dias a filmar. No «bout-à-bout» perguntaram-me: «Mas que merda de som é este?». E eu respondi: «Mas que encenação de merda é esta?». Porque durante a rodagem fizeram-se tomadas de diálogos em que os actores que «respondiam» estavam ausentes, filmaram-se «detalhes» sem que houvesse cuidado em dirigir a globalidade da encenação. Nesses casos, sinto-me no direito de afirmar que a encenação é uma merda e penso para comigo: viva o plano--sequência! Num planosequência, todos os acidentes sonoros passam bem porque acontecem no tempo do plano e se inscrevem na duração. Muitas vezes os realizadores esquecem-se na planificação de que, quando se corta, quando a sequência é «découpée», deixa de existir o tempo da sequência. Há tempos diferentes e não é com base nos tempos diferentes que o som pode ser avaliado. Esse som de tempos diferentes tem de ser trabalhado, refeito, porque não é bom. É necessário tratá-lo ou recriálo. A coerência da colocação dos microfones impede-me por vezes de apagar as atmosferas que funcionam como fundos sonoros. Não quero ouvir «aquela» rua, mas posso arranjar outro ruído de
rua que se encaixe e sirva melhor como som do filme. Aí intervém a dobragem. Na tal malfadada cena da refeição, choveu a dado momento. Então colocaram um toldo para proteger a mesa. Eu fiz notar que se ouvia o barulho da chuva e que não havia raccord de som com o que já tinha sido filmado, nem com o que iria ser filmado mal a chuva parasse... Ninguém se preocupava com este pormenor. Em contrapartida, no C'EST LA VIE do Vecchiali também tivemos um problema do mesmo género para o qual arranjámos solução. Começou a chover. Estávamos a rodar num bairro económico dos arredores. Foram dados guarda-chuvas aos actores. O décor estava instalado em frente aos prédios e representava um apartamento. Quando ouvi o barulho da chuva, achei que era perfeito porque ela tanto caía no toldo que protegia o décor, como batia nos guarda-chuvas que protegiam os actores. E o Vecchiali alinhou na ideia de filmar tudo com som de chuva. Não lhe passou pela cabeça exigir que não se ouvisse chuva. Devo acrescentar que se trata dum filme que rodámos em três dias e meio. Começámos a ensaiar no sábado à tarde, no domingo iniciou-se a rodagem, acabámos quarta-feira e na segunda-feira seguinte tínhamos a cópia standard. R. G. — Esses records de tempo são típicos do Vecchiali... A. B. — Pois, mas era o Vecchiali, angustiado, que me perguntava: «Bonbon, o que é que vamos fazer? Temos falta de tempo. Vamos ultrapassar os prazos previstos no plano de trabalho!!!». O nosso ofício é belo e interessante porque nos obriga a descobrir, a inventar soluções que condigam com o filme. Admito que seja um pouco subjectivo e talvez por isso se fale do som Bonfanti. Mas reparem que isso é normal e que aliás não há só o som Bonfanti: há o som Jean Pierre Gamay... há o som de todos os nossos engenheiros de som normais que é igualmente identificável caso a caso. S. — E com os músicos? Como são as tuas relações com os músicos? A. B. — Só tive uma vez uma zanga com um músico que no fim acabou por concordar com a minha manipulação, aliás a nossa manipulação visto que foi uma ideia do realizador. Foi no SWEET MOVIE do Makavejev e o Xenakis tinha-lhe dado a cantata «Hino a Katyn». Começámos a misturar e, a dada altura, o realizador manda parar tudo porque achava que o trabalho não estava bem. E eu não percebi logo o que o estava a incomodar e não sabia o que fazer para o ajudar. Então o Makavejev disse-me que a culpa não era minha, que a terceira estrofe do canto devia estar no lugar da segunda estrofe porque funcionava melhor com a estrutura das imagens dele. Então voltámos a misturar pela seguinte ordem: 1ª estrofe, estrofe, 2ª estrofe, 4ª estrofe. E pedi-lhes que prestassem bem atenção à alteração, que verificassem se funcionava do ponto de vista musical, se não havia nada passível de incomodar alguém no meu «raccord» calculado. A solução agradava ao realizador que não viu defeito nenhum na execução. Estava eu já a gravar, quando entra o Xenakis que faz um drama em 4 actos e me insulta do piorio. E eu lá tive que dizer-lhe: «Desculpe lá, você fez uma música que vai ser difundida em disco, em concertos, tocada por orquestras. Você deu essa música para um filme e, a partir daí, ela torna-se música do filme e deixa de ser a sua música. E se o meu realizador acha que a terceira estrofe fica melhor no lugar da segunda estrofe é porque o filme assim o quer, eu obedeço-lhe. E digo-lhe uma coisa: você tem o resto do mundo para a sua música... deixe-nos pois a possibilidade de fazer o melhor para o filme». E porque é que não se há-de poder modificar a matéria musical? Eu cortei músicas, estiquei músicas, encolhi músicas conforme as necessidades do filme. Só os autores é que dão conta da manipulação. No UN SOIR UN TRAIN fui obrigado a esticar uma música. Entre a cronometragem de um plano escrito no guião e a duração dum plano rodado há diferenças. Os músicós, de uma forma geral, trabalham com o cronómetro e não com a imagem, portanto, às vezes, há coisas a mais ou a menos. Se calhar, num trecho repetitivo tira-se uma repetição ou acrescenta-se uma repetição e o espectador não dá conta de nada, se o trabalho for bem feito, só o músico é que se apercebe logo. E como nas projecções os músicos estão à minha beira! (Risos) Contudo, repara que foi o André Delvaux que me pediu para prolongar o trecho e o André Delvaux é um homem com sólida formação musical. É um grande músico, e nunca me pediria para fazer uma modificação que não funcionasse do ponto de vista musical. Aliás ele tinha a certeza de que o Freddy, autor da música, concordaria. No DIERIC BOUTS coloquei repetições na flauta do canto dos pássaros e, quando elas se sobrepunham aos pássaros, eu não gostava nada. Então pus as flautas mais alto do que os pássaros, porque mais baixo não ficava bem e mais alto funcionava como uma progressão. A música torna-se uma agressão naquele plano. O filme continua, há toda a sequência de trinados e os trinados são integrados na música «normal» e passam muito naturalmente. Mas se eu
tivesse baixado os «pássaros», se não os tivesse realçado, a relação entre os vários planos não teria sido estabelecida. São soluções que por vezes encontramos e aplicamos de maneira «inconsciente» pois no momento em que as fazemos não conseguimos explicar por palavras o «porquê». Só sei que algo não batia certo e que tive de encontrar uma solução que, neste caso, foi subir um nível em relação a outro. É isso a mistura. Se não encontrarmos níveis relativos, é preciso eliminar. Quando na mistura aparece uma música que não consigo misturar, é porque ela não tem lugar no som. Quando não consigo encontrar o nível ideal para a música, é porque ela perturba o filme. Então é necessário tirá-la, porque vai incomodar toda a gente cada vez que o filme passar. Não é por a música estar escrita que temos de a aproveitar. Não é por termos colocado um canto de pássaros algures que ele tem de ficar lá a todo custo. E isso é o filme que o vai ditando à medida que está a ser projectado no estúdio das misturas. Não sou eu que dito, eu sou apenas receptor do filme. O filme é o emissor e eu sou o receptor. E devo agir conforme sinto. A única pessoa que pode interromper-me é o realizador. Não é o produtor atrás de mim que manda. A ele não obedeço. Ele não existe para mim. Pode falar, dizer o que lhe passa pela cabeça, mas a única autoridade que tem é parar tudo e mandar toda a gente para casa. Não faço som para um produtor ou para um director de produção. O meu ofício é fazer som para um realizador. R. G. — Já agora gostava que me falasses da tua experiência portuguesa. A. B. — As minhas experiências em Portugal foram boas. Tivemos alguns problemas técnicos de incompatibilidade entre os laboratórios franceses e os laboratórios portugueses. As duas vezes em que fiz negativos em França para serem revelados em Portugal, tive problemas que vêm de diferenças de banho e de outras diferenças de tratamento da película óptica. Problemas também ao nível da afinação das máquinas. Esses problemas decorrem igualmente de uma nova concepção da transferência para som óptico. Por questões puramente económicas, já não se executa a transferência óptica num auditório mas sim directamente no laboratório, ou seja, por técnicos que não conhecem o filme e que não vêem as imagens. Para esses técnicos, quando o som oscila é porque há um defeito, pois eles não sabem o que se pretendia e não podem entender as razões dessa oscilação. Dantes eram os engenheiros de som que faziam as transferências, logo a seguir às misturas, e tínhamos uma escuta para som óptico, ou seja, menos «rica» do que a escuta magnética. Pessoalmente, não gosto de misturar com uma escuta demasiado «rica» porque os balanços são falseados. Trabalho com os ouvidos e portanto estabeleço os balanços entre as frequências que consigo captar. Se depois das misturas me cortarem certas frequências, os balanços que estabeleci são falseados... por isso prefiro trabalhar com uma escuta menos «rica» que se manterá no som óptico, em vez de ter uma escuta óptima em som magnético que se perderá no óptico. Não se trata de trabalhar para as más salas de projecção mas sim de trabalhar para o verdadeiro suporte com máquinas bem afinadas para esse suporte. Quando as máquinas estão mal afinadas, mandam-se afinar, não se atiram as culpas para o som. As instalações sonoras das salas de exibição são frequentemente deficientes. Se o dono da sala me disser que o meu som é mau, eu, engenheiro de som, não tenho o direito de ir verificar o amplificador ou o estado das cabeças de leitura. Por que é que o som há-de ser mau naquele cinema e bom no cinema ao lado? R. G. — Não podes imaginar a que ponto o cinema português tem sido prejudicado por essas deficiências nas salas de exibição. O cinema português apresenta por vezes alguns defeitos de ordem técnica, mas, no meu entender, tem sofrido principalmente das más condições de projecção, o que não raro leva a que os filmes sejam injustiçados pelo público. O público vai ao cinema ver um filme português e não percebe nada do que os actores dizem... donde que todo o som de todos os filmes portugueses seja considerado mau, todos os actores sejam considerados medíocres, etc. Não digo que em Portugal se tenha atingido o top nível no que diz respeito ao trabalho do som, mas o certo é que o mesmo filme ouvido em duas salas diferentes torna-se um filme diferente. Só que, quando o público se sente defraudado porque não consegue compreender os diálogos, parte do princípio que o defeito é do filme. As pessoas não podem saber nem são obrigadas a tolerar isso... O estado geral de degradação das salas é intolerável. A. B. — As minhas relações com os realizadores portugueses foram sempre muito boas. Entendime muito bem com o António Reis nas misturas. Misturei primeiro o TRÁS-OS-MONTES e depois
o ANA. O trabalho correu depressa e bem. Misturei o OXALÁ e O LUGAR DO MORTO do António Pedro de Vasconcelos, o REPÓRTER X... S. — Também trabalhaste com o Fernando Lopes... A. B. — Sim, mas nunca tinha feito misturas para ele até ao MATAR SAUDADES no qual fiz a captação do som. E, mais recentemente, trabalhei no ROSA NEGRA. Mas tive um problema de som óptico. Depois das misturas fez-se a transferência de magnético para óptico e ficou péssimo. Então pedi para me fazerem uma transferência de sons não misturados e ficou bom. Portanto não havia razão nenhuma para os problemas que surgiram com o som misturado. Aliás, hoje em dia, não há razão nenhuma para termos uma diferença de 100% entre o som magnético e o som óptico. Dantes, efectivamente, a perda era considerável... Num filme do René Levert, o realizador foi obrigado a assustar o laboratório francês, ameaçando ir a um laboratório inglês. Então o laboratório francês fez um «esforço» e acabaram por obter um som natural. S. — Com os laboratórios, as relações são cada vez mais difíceis... A. B. — Mais uma vez, trata-se unicamente duma questão de dinheiro... A gente chega ao laboratório com 3000 metros de som óptico no máximo dos máximos. A imagem pode ir até 30.000 metros enquanto nós só lhes trazemos o comprimento do filme em óptico. E, ainda por cima, somos uns chatos porque reclamamos contra o pó, contra a tiragem, etc. Ora, o simples facto de terem uma máquina a funcionar só para o som já lhes custa imenso, já os chateia profundamente. Tudo quanto não seja altamente rentável chateia-os: o 16 mm, o preto e branco... Para o preto e branco têm uma máquina que só trabalha uma vez por se mana. Quando são filmes a preto e branco esperas uma semana pelos rushes!! S. — A montadora do negativo nunca vê a cópia de trabalho. O tipo que faz a transferência óptica também não vê as imagens... A. B. — Pois, só ouve, e ver só vê as agulhas. Baixa o som se estiver alto e sobe se estiver baixo em detrimento da acção. Isto já não tem nada a ver com cinema, já ninguém se preocupa com o filme. S. — Ou seja, o problema é que o laboratório já não participa na confecção do filme. O laboratório limita-se à prestação de serviços indiferenciada e indiferentemente. A. B. — É como quando vais a uma garagem porque tens uma vela que não funciona e os tipos dizem-te que precisas de mudar o motor. Se lhes deres ouvidos, mais vale deixares lá o carro e comprar outro. R. G. — Eu acho isso tudo particularmente escandaloso porque são indústrias que vendem um produto muito caro. Um produto que é suposto ser fabricado por sistemas de alta tecnologia. Eles não vendem batatas, portanto a qualidade é exigível. S. — De facto, é o único elo verdadeiramente industrial da actividade cinematográfica... A. B. — E, ao nível da película, passa-se rigorosamente o mesmo. Se fores à Kodak dizer que te venderam uma película com defeito, eles não te indemnizam, dão-te uma película virgem. S. — Já me aconteceu. A. B. — Eles têm a lata de dizer que é isso que está estipulado... por escrito. No tempo da Metro, fui lá protestar porque tinha crateras, buracos na pista de som, e o homem ficou a olhar para mim com cara de parvo e disse-me que a malta do cinema era um bando de chatos que só sabe protestar. Quando se vendem placas para as radiografias, os médicos sabem distinguir o defeito da placa duma mancha nos pulmões — às vezes enganam-se — por isso não protestam... Quem compra um rolo de fotografias que saem mal na revelação acredita piamente nas explicações que eles dão: «Você enganou-se e pôs um filtro!» E a modalidade que consiste em vender a película com a revelação incluída é um negócio que dá milhões... a especialidade deles é pôr o nosso dinheiro a trabalhar... às vezes devolvem-te a película com três anos de atraso... aí é usura pura e simples. S. — A tua pessoa e o teu trabalho estão associados à ideia de velocidade porque tu tentas colar o mais possível ao tempo do filme. Acho que isso gera, aliás, alguns mal-entendidos... A. B. — Não são mal-entendidos. Há pouco falávamos de imponderáveis. As misturas têm sempre uma data de imponderáveis. Podem misturar-se 30 metros numa hora porque devia ter havido dobragem e não houve (teria aliás custado mais barato...). Pode gastar-se muito tempo quando não
nos ocorre uma ideia para transformar um defeito em qualidade. Por vezes somos obrigados a fazer «renda» e misturar palavra por palavra ou quase. Às vezes não é possível filtrar porque, se o fizermos, o som geral altera-se e toca a recomeçar tudo desde o princípio para filtrar o que estava antes... Mas, de repente, fazes três sequências sem dares por ela, enquanto o diabo esfrega um olho. No filme do Chris Marker LE FOND DE L'AIR EST ROUGE, o realizador disse-me que havia cinco horas de filme portanto tinha reservado cinco semanas para as misturas. Uma hora por semana. Eu achei que era pouco e arriscado; ele achava que dava à justa. Uma semana depois telefona-me a dizer que o filme já só tinha quatro horas e que, por conseguinte, só haveria quatro semanas para as misturas. Começámos tal dia no mês de Julho. Lembro-me porque calhava nos feriados do 14 de Julho que normalmente dão direito a «ponte». O dia 13 era uma quarta-feira, logo paragem de quinta a domingo. Os miúdos da cabine — miúdos não é pejorativo — vieram-me pedir a «ponte». Eu respondi que tinha de perguntar ao realizador e o Chris disse-me que eu estava louco, nem pensar. Tive de transmitir aos miúdos que não era possível. Lançámo-nos nas misturas com um horário das 9h30 às 18h30. Parámos às sete e o Chris virou-se para mim e atirou-me: «Podes ir dizer à equipa que fazemos a "ponte" do 14 de Julho». E eu: «Porquê, Chris?». E ele: «Não te apercebeste de nada? Já misturámos 45 minutos. Portanto agora sou eu que estou atrasado!». Misturámos 45 minutos sem darmos por isso e garanto-te que o Chris não deixou passar nenhum defeito. S. — O que é que esperas de um realizador quando ele está a ouvir? Dizias que o Chris não deixa passar nada e achas que é positivo... A. B. — Claro. Espero que o realizador me corrija quando o trabalho não está bom para ele. Não é por eu fazer propostas de mistura que as minhas propostas devem ser aceites. Eu quero que ele me chame a atenção quando a mistura não bate certo para ele. Acontece-me refazer integralmente a primeira bobine. Não ensaio. Não gosto de repetir. Devo ter lido «O elogio da preguiça» vezes de mais. Não gosto de perder tempo a ensaiar. Quando não está bom, volta tudo para trás. Repetir vezes sem conta não me convém, nem convém ao filme, porque se no «ensaio» sair uma coisa excelente perde-se para sempre porque não se estava a gravar. Portanto prefiro gravar logo e recomeçar caso seja necessário. E quando o som é feito por um amigo e não por mim, chegado à última bobine, volto a ouvir a primeira. Porque sei que apanhei a carruagem em movimento e posso não ter acertado nas primeiras notas, logo faço questão de verificar se o trabalho feito na primeira bobine corresponde realmente ao espírito e ao sentido geral do filme. A questão da velocidade não tem pés nem cabeça... há tanta coisa que pode acontecer durante as misturas. S. — Percebo perfeitamente a tua posição. Quando digo a um operador que vou rodar 1 para 3, o operador acha escasso. Quando, no fim duma tomada, digo que não quero repetir, o operador zangase porque acha arriscado. Mas eu sei que se vai perder tempo e película porque senti que a tomada estava boa... Portanto compreendo-te e partilho a tua posição, só que não se enquadra nos usos e costumes do cinema. A. B. — Pois é, não se enquadra. Agora não só se repetem as tomadas boas como inclusivamente se voltam a fazer terceira vez. «É para os seguros!» dizem os tipos da imagem. S. — Às vezes, justificam-se dizendo que pode haver um problema de laboratório. Só que... não mudam de «magasin». A. B. — Estupidez, porque se o problema é temer um grão de pó, um risco, deve mudar-se de «magasin». S. — Acho que a ideia de colar ao tempo ainda não entrou na prática do cinema... Ora o cinema é tempo, é uma experiência do tempo. O tempo é elástico no cinema. A. B. — Até na vida é elástico. Mesmo quando olhamos para o relógio é elástico. S. — Mas o cinema é a revelação dessa elasticidade do tempo. A. B. — Pois... aliás o que é uma colagem entre um campo e um contracampo? É apenas tempo que passa. E cada espectador mede esse tempo de que se apropria. O tempo que separa duas frases de um diálogo... ENTREVISTA CONDUZIDA POR: SAGUENAIL E REGINA GUIMARÃES