Cosmos

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COSMOS Há talvez dois traços que definem o trabalho de Pelechian ao nível da montagem — e os seus primeiros filmes são exclusivamente filmes de montagem —: a densidade e o ritmo. A densidade toma, nos primeiros filmes, a forma da profusão — tornará a da depuração a partir de O Fim (Kiank) —: as imagens sucedem-se e chocam entre si como as palavras de uma diatribe. O ritmo é estritamente musical — a cada nota seu plano —: as imagens obedecem a uma linha melódica que já não se submete à matemática divina. Único herdeiro de Vertov, Pelechian introduz no discurso da montagem o recuo, o olhar retrospectivo, universalista, que coloca os ímpetos revolucionários no devido lugar — tal como em Os Habitantes (Bnakitchner) ele lembra que o planeta pertence a todos os seres vivos. A utilização de planos extraídos de Vertov e Eisenstein numa construção em que se inverte a perspectiva — primeiro, de frente; a seguir, de costas — sem que o sentido metafórico e propagandístico se anule — as grades são arrombadas — faz com que as imagens sejam simultaneamente mostradas — prioridade ao conteúdo, ao seu objecto — e questionadas — prioridade ao contexto, à sua colocação. O Início (Natchalo) inaugura a forma circular que Pelechian virá a manter em Os Habitantes e Nós (Menk). O filme começa com imagens, fixas, de cadáveres — pogroms e execuções. O regresso dessas imagens quando vimos sucessivamente o ímpeto revolucionário de 17, a congregação em volta de Lenine, a morte de Vladimir Illitch, a reforma agrária, a subida do nazismo, a industrialização, a guerra e a repressão generalizada, adquire pleno significado de regresso ao passado, de ciclo sem fim da repressão — e de falhanço da revolução. Dos acontecimentos históricos, Pelechian mostra apenas o movimento — da marcha revolucionária (durante a qual o ecrã se enche, pouco a pouco, de uma multidão a correr, e depois, à medida que o movimento da história se acelera, recorre a todos os meios de transporte para chegar mais depressa) aos desfiles bem ordenados, tão semelhantes em Berlim ou na Praça Vermelha... — movimentos humanos, movimentos de uma turba que avança, que se precipita, que acaba por fugir, de costas, quando dá de caras com as forças universais da ordem. O Início revisita o ímpeto revolucionário, sem ironia nem cinismo, conservando-lhe o seu valor de entusiasmo contagioso — de início um homem, depois dois, a seguir um grupo, por fim uma multidão que ocupa toda a paisagem — mas realçando as rupturas marcantes — a primeira surge com a morte de Lenine — e os retrocessos: ao passar das imagens de frente para as de costas, o ímpeto transforma-se em fuga, enquanto as forças da repressão formam um bloco, independentemente das nacionalidades e das ideologias. No início era o ímpeto revolucionário; a revolução fica sempre por recomeçar. Em escassos minutos, meio século de história é percorrido, sem outro discurso que não o das imagens e da música — a constante do cinema de Pelechian é a ausência do verbo — i. e. segundo uma lógica de composição em que o cinema atinge a essência poética profunda de qualquer linguagem. Toda a retórica da poesia é convocada: o motivo central — a corrida — que gradualmente se vai amplificando; a anáfora — os vários meios de transporte ou, mais tarde, as diversas formas de fanatismo, do Ku Klux Klan aos integrismos passando pelos cortejos militares e fascistas —; a repetição — o operário a levantar o martelo —; a parataxe — paragem numa imagem, barulho das bombas seguido de silêncio —; etc. Ao longo desta "história do ímpeto", ocorreram várias paragens: a morte de Lenine, a guerra; surgiram recuos e obstáculos — as forças policiais —; mas enquanto houver grades para arrombar, o ímpeto deve manter-se pois só ele garante a coesão, para além da fragilidade da multidão facilmente manipulada, da frágil humanidade. Esta estrutura poética, já bem desenhada em O Início, mantém-se em As Estações (Tarva Yeghanaknere). Mas as imagens registadas ao vivo substituíram os documentos dos arquivos cinematográficos e as situações filmadas ganham assim um alcance simbólico que a História sempre tende a restringir, em nome da cronologia dos factos — i. e. da ideologia. O ritmo é ainda dado pela música; as músicas sucedem-se combatendo-se, sendo o todo dominado por um amplo movimento sinfónico, várias vezes interrompido e retomado, que sugere uma harmonia capaz de


transcender os irrisórios esforços humanos, relativamente aos quais a natureza é, ao mesmo tempo obstáculo — indiferente — e lugar de vida — protectora. Harmonia ambígua, já que o lugar de vida oferecido aos homens — encostas montanhosas, torrentes — parece totalmente desadequado e exige esforços e riscos tão heroicos quanto burlescos — as medas de feno que deslizam pelos declives transformam-se em trenós, o transporte dos carneiros lembra os escorregões dos parques infantis e dos parques aquáticos... O lado burlesco não aparece logo: a descida dos rápidos pelo pastor e seu carneiro, com a qual o filme começa e acaba (e que volta como um leitmotiv) é, de início, assustadora. Tudo parece "encarneirado": a espuma da torrente, as nuvens do céu; tudo é rebanho para a natureza. A sequência seguinte mostra o rebanho a entrar para um túnel e a interromper o tráfico, o curso da História e do "progresso". Porque as necessidades do homem cabem quase inteiramente no "primitivismo" do pastoreio: o sustento (o leite), o vestuário (o couro) e a saúde (cena dos médicos). Por um lado, o homem ultrapassa os obstáculos naturais — os carneiros são passados de mão em mão, por cavaleiros que formam uma cadeia no leito da torrente. Por outro, é obrigado a inserir-se no movimento e no ciclo da natureza: o rebanho humano tem os seus próprios ritos de reprodução — cena do casamento. O título do filme — As Estações — remete para a duplicidade da problemática: o homem deve, ao mesmo tempo, submeter-se a elas — época das ceifas — e ignorá-las — a descida da montanha acontece quaisquer que sejam as condições climatéricas, sol, neve ou chuva. As estações constituem o ciclo natural por excelência — juntamente com o ciclo curto do dia: depois da fogueira do acampamento nocturno, a manhã é consagrada aos preparativos de vestuário com vista à boda, e a dança continua, pela noite dentro, à luz das tochas — e, contra esse ciclo, o homem nada pode. Filme sobre a situação contraditória do ser humano na natureza, As Estações apresentam-nos a imagem anti-sisifiana do homem condenado a descer eternamente a montanha. Em torno de uma imagem central — a corrida de O Início, o homem descendo as cascatas em As Estações —, cada filme de Pelechian é simultaneamente um poema e uma meditação filosófica. As imagens possuem uma força pasmosa, ao nível do seu conteúdo, mas valem sobretudo pelo seu sentido metafórico e universal. Nem documentário, nem ficção encenada, os filmes de Pelechian reabrem as vias do cinema-linguagem e do cinema-canto que Eisenstein e Vertov tinham começado a explorar e que o cinema-padrão deixou maninhas — invadidas pelas silvas tornaram-se "impraticáveis", esquecidas, lendárias. Pelechian, aliás, só realizou curtas-metragens, isto é obras votadas ao ostracismo das salas de espectáculo. Da mesma maneira que Pelechian nos convida a repensar os conceitos essenciais do homem, da terra, do movimento, da história, da natureza, etc., o espectador que descobre os seus filmes compreende que o cinema ainda está todo por inventar. Saguenail


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