Cultura daninha Não sou sociólogo. A minha intervenção, no âmbito deste encontro de especialistas, apresenta-se como o testemunho de alguém para quem a leitura de Pierre Bourdieu revestiu particular importância. Tentarei pois evocar de que forma essa leitura se repercurtiu no meu trabalho mental, profissional e criativo. Interessei-me pela obra de Bourdieu ao mesmo título que me interessei pelos trabalhos de Freud e Lévi-Strauss (embora a minha leitura do primeiro tenha porventura sido mais tardia do que a dos segundos). Debruçando-se sobre áreas indubitavelmente distintas, estes três autores possuem em comum o facto de terem produzido obras de investigação que põem em causa a ordem estabelecida das coisas. Bourdieu fala em «science du caché». Haverá ciência que não seja do oculto? O trabalho da ciência consiste em desvendar o que não é perceptível – isso não quer, todavia, dizer que os cientistas sejam obreiros exclusivos dessa tarefa eminentemente poética. Bourdieu encarava a ciência como uma luta. Uma luta que visa derrubar crenças, fazendo emergir aspectos do seu objecto que, não sendo totalmente abrangentes ou universais, se revelam ainda assim determinantes para o entendimento do «estar no mundo». Nesse sentido, Bourdieu pertence à mesma categoria de cientistas-pensadores que Freud ou Lévi-Strauss. Lévi-Strauss ensinou a olhar inteligentemente os rituais da sociedade contemporânea, estabelecendo paralelos com os rituais equivalentes de populações ditas primitivas. Freud pressentiu e demonstrou a existência de pulsões irracionais debaixo das nossas motivações conscientes. Na verdade, os cientistas que me tocam são aqueles que me permitem pôr-me em causa, o que, no caso de Bourdieu, também significou pôr-me em estado de choque. O primeiro choque advindo da obra de Bourdieu aconteceu-me com a leitura de La Distinction. Percorri a obra atentamente e, no fim, dei comigo a observar os esquemas propostos. Julguei-os redutores e duvidosos, autorizando ao meu ego a tranquilizadora sensação de que aquelas simplificações não me incluíam. (É preciso que se note que, ao abordar a questão do gosto e da distinção pelo gosto, o sociólogo aborda um ponto particularmente delicado da imagem que cada pessoa concebe de si mesma – o gosto é supostamente algo subjectivo, indiscutível e constitutivo de uma identidade diferenciada). A seguir, dediquei-me a ler umas notas acerca da transversalidade e do eclectismo; deparei com um exemplo que referenciava o gosto por músicos díspares, todos eles meus favoritos entre os demais. Ao citado exemplo, Bourdieu fazia corresponder o quadro de gostos de um sujeito cujo capital simbólico fosse superior ao capital financeiro e cuja construção pessoal tivesse sido atravessada por crises. Uma curta introspecção bastou para eu reconhecer que os meus pais, professores do ensino secundário, se caracterizavam efectivamente por um capital simbólico superior às suas posses, e por identificar duas crises óbvias no meu percurso pessoal de construção: o divórcio dos meus pais e Maio de 68. De repente, ali estava eu, sem apelo nem agravo, programado, exposto e escarrapachado em La Distinction, contra todas as minhas expectativas (e as expectativas são fruto das convicções...). O choque obrigou-me a assumir que Bourdieu podia não ser completo na sua análise mas tinha forçosamente alguma razão – tivera a oportunidade de testar a validade e a subtileza do modelo bourdieusiano na minha própria pessoa. O segundo choque (talvez fosse mais rigoroso chamar-lhe «iluminação») data da época em que comecei a minha carreira de professor primário. No quadro de um activismo, de cariz pedagógico e político, em prol da aplicação de métodos mais activos, a leitura de La Reproduction permitiu-me compreender a função social da escola e determinar, com acrescida justeza, o que está em jogo na prática pedagógica. Falo da França do final dos anos 70, de um país cuja instituição escolar levava, na altura, 30% dos alunos, acolhidos na sua máquina trituradora, a uma situação de total insucesso. Bourdieu ajudou-me a perceber que não se tratava de uma falha do sistema, mas sim, cinicamente, de algo programado pelo próprio sistema. Bourdieu iluminou o meu ponto de vista sobre a natureza marcadamente ideológica de um sistema que encontrou na escola o seu agente privilegiado de reprodução. Claro que já as leituras de Marx e Barthes me tinham alertado para os mecanismos de naturalização e desistoricização do discurso dominante na sociedade burguesa, bem como para a lógica do bom