curto-circuito três monólogos para um só actor de Regina Guimarães e Saguenail
Outro Um espaço bastante despojado que poderia ser a ruína de um monumento que já ninguém visita. Num recanto, um enorme cone construído com banais garrafas de água, semi-cheias de um líquido da cor do mijo. Oswaldo, um sem-abrigo (ou talvez um adepto da vida ao ar livre) pernoita neste lugar. Quando ele surge, vindo do escuro, queda-se uns instantes em contemplação do estranho objecto escultórico, antes de se aproximar, a passos hesitantes, do público. . OSWALDO Ninguém diga que da água turva não beberá. Beberá. Beberá sim, nem que seja às escondidas. Porque a sede de beber a água turva é uma sede diferente. Só na água turva pode uma pessoa ver a sua imagem reflectida. Já estão a imaginar a cena toda, não estão? A pessoa aproxima-se, curva-se um bocadinho, depois (para) depois… (para e escuta) um bocado mais… Não. Não estão a imaginar nada. Caraças, porquê tanta pressa em cortar a conversa? Eu estava na disposição de vos dar um copo da minha. Água turva, entenda-se. Pura água turva. Mas também se arranja uma garrafa de água limpinha. Na rua, tudo se arranja. Tudo se… (gesto mágico) desencanta como dizia a minha tia. Ora, ora… nem tia, nem prima. Prima é cena que nunca tive. Não me acham com cara de ter uma porra duma tia e de andar debaixo das saias a cheirar o pito da prima, pois não? (Pausa. Funga e aclara a voz.) Mas a rua tenho. A rua é minha. É a minha casa, comida e roupa suja. (Vira-se de costas, afasta-se.) Porque os cabrões da câmara, mal vêem um cristão a roncar num sanitário público, é logo trancas à porta. Qualquer gajo que se preze gosta de passar água pela cara que deus lhe deu e de mijar em paz e sossego.