Curto circuito

Page 1

curto-circuito três monólogos para um só actor de Regina Guimarães e Saguenail

Outro Um espaço bastante despojado que poderia ser a ruína de um monumento que já ninguém visita. Num recanto, um enorme cone construído com banais garrafas de água, semi-cheias de um líquido da cor do mijo. Oswaldo, um sem-abrigo (ou talvez um adepto da vida ao ar livre) pernoita neste lugar. Quando ele surge, vindo do escuro, queda-se uns instantes em contemplação do estranho objecto escultórico, antes de se aproximar, a passos hesitantes, do público. . OSWALDO Ninguém diga que da água turva não beberá. Beberá. Beberá sim, nem que seja às escondidas. Porque a sede de beber a água turva é uma sede diferente. Só na água turva pode uma pessoa ver a sua imagem reflectida. Já estão a imaginar a cena toda, não estão? A pessoa aproxima-se, curva-se um bocadinho, depois (para) depois… (para e escuta) um bocado mais… Não. Não estão a imaginar nada. Caraças, porquê tanta pressa em cortar a conversa? Eu estava na disposição de vos dar um copo da minha. Água turva, entenda-se. Pura água turva. Mas também se arranja uma garrafa de água limpinha. Na rua, tudo se arranja. Tudo se… (gesto mágico) desencanta como dizia a minha tia. Ora, ora… nem tia, nem prima. Prima é cena que nunca tive. Não me acham com cara de ter uma porra duma tia e de andar debaixo das saias a cheirar o pito da prima, pois não? (Pausa. Funga e aclara a voz.) Mas a rua tenho. A rua é minha. É a minha casa, comida e roupa suja. (Vira-se de costas, afasta-se.) Porque os cabrões da câmara, mal vêem um cristão a roncar num sanitário público, é logo trancas à porta. Qualquer gajo que se preze gosta de passar água pela cara que deus lhe deu e de mijar em paz e sossego.


Digo eu. Marinar é preciso. Mas a esses cabrões não lhes chega mandarem nas casas de banho nas que lá têm em casa, precisam de cagar leis sobre as cagadeiras do zé povo. Um destes dias, a bófia trata de nos cortar a piça, talvez mesmo a penca, e outras cenas que a gente traga ao dependuro. Porque a gente gasta o ar daqueles que trabalham enquanto as árvores onde o people se alivia até fabricam oxigénio. Bem rezava a tal da tia: no dia em que a merda valer dinheiro, os pobres nascem sem cu. O caso é que eu, mesmo com o cu a prémio, não trocava a rua por nada deste mundo. Ou quase nada. Força de expressão. Não pode não haver nada, só pode não haver. Então, o nada que vem por acrescento já é qualquer coisa. Um bodo aos pobres. E ninguém diga que do nada não beberá. Ele há gajos que sacrificam tudo para andarem disfarçados de homens. Gajos tão anónimos que não se confundem com a rua. Nem as pedras da calçada os enxergam, passam como sombras, sombras de si e para si próprios sombras, só consigo falam o que têm a calar e deixam de existir sem precisarem de dobrar a esquina. Há um por aí à solta, neste quarteirão, que me dá nervoso miudinho deixa fora de mim. Se alguém me perguntasse como é que eu sou, eu respondia de caras que sou tudo o que o sujeito não é. E não é graças à minha mãezinha que assim sou… O gajo só traz o carro uma vez por mês. Para o deixar na garagem do Simões Vladimir. Depois volta a levá-lo ao fim da tarde. Muito devagarinho. Os peões até se assustam. É como se fosse buscar o filho ao infantário. É como se conduzisse um carro funerário que levasse o condutor à sua eterna morada, ao lugar sem regresso – não há que partir para lá chegar. Por que raio é que um carro que nunca anda há-de ir à revisão uma vez por mês? Contado, ninguém acredita.


Mas é desse calibre a criatura de Cristo. Condiz com o carro. Digo eu. Anda tão limpinho que parece que saiu do túnel de lavagem, até as dobras das calças e do casaco rebrilham. O tipo passa pelas pessoas e não é que a gente se sinta transparente. É pior: a gente sente que ele é transparente. Um fantasma. Já andei a tirar umas informações sobre ele no tasco onde o gajo toma café ao balcão. Demora menos de um minuto e pede sempre com cheiro e em chávena fria. Um nojo. Mas o boss diz que não sabe nada sobre o quim, a não ser que ele trabalha na mesma empresa há uns vinte anos uma eternidade , diz «faça a fineza» e não «faz favor» e é contabilista. Por isso é que anda com (funga e escarra para um lenço de duvidosa brancura) anda sempre com a pasta de cobrador debaixo do braço. Digo eu. Foda-se, será que o escritório da empresa não tem?.. Armários, placards, estantes, gavetas, dossiers, sítios onde cabem vidas, e embora deprimidas, comprimidas para ocuparem um espaço mínimo, já não se queixam de caberem no papel. Eu cá sempre achei que em rua de putas não se limpa o cano da espingarda. Se tivesse de andar com uma pastinha como o gajo, só saía de casa para comprar aspirina e bananas. (Ri ruidosamente.) A rua é de todos, é um lugar público. Digo eu. Um gajo com trombas de zombie não devia andar por aí a meter medos aos chavalitos. Mesmo um tipo que não tenha onde cair morto preocupa-se com o aspecto. Não precisa de ter bom aspecto, mas um aspecto tem de ter. Se não tiver aspecto próprio, copia por alguém. Se não quer ter mau aspecto, faz-se à vida e rouba a alma do vizinho. Digo eu. Estão a ver aquelas fotografias que dantes havia na barbearia aqui do bairro em cima, com o focinho do avô do Cruz Sevilha, que foi quem fundou a casa? O homem da pastinha é aquilo chapado, mas anda por aqui e anda por aqui agora, não ficou lá quietinho no tempo da república das bananas. Até que um dia alguém lá terá convencido o Cruz


a tirar as putas fotos e os focinhos da família foram de vela. O Cruz fez grandes obras, obras de cima a baixo, pôs tudo em pantanas, pôs tudo diferente. Realmente o parente ou lá quem era o raio que me parta mais velho metia medo ao susto e susto ao medo. Quando um cliente se descaía e dava consigo a olhar para uma fotografia, sentia a navalha na garganta, e a cabeça a ser arrancada ao tronco por obra e graça do olhar que da pessoa saca apenas o retrato. Até que um dia o Sevilha teve de fazer obras na barbearia. Só que uma casa, deita-se abaixo o que há para deitar, refrescam-se as paredes, arranjam-se uns calendários porquinhos, uns cartazes porcalhões, enquanto uma pessoa… não se pode dizer a um gajo que não conhece de lado nenhum a não ser da rua, e só quando atravessa esta rua, que feche para obras e deite abaixo a fachada. Foda-se, eu que aqui vêem já deitei abaixo a minha fachada várias vezes na vida e mais não sou avô de ninguém (ri ruidosamente) que eu saiba… que eu saiba… No fundo, no fundo, o homem da pastinha deve ser uma espécie de Hitler sem Alemanha. Então vinga-se nos números. A maneira como ele olha para o chão, não tira os olhos do chão, o gajo, diz tudo. Se tirasse os olhos do chão, perdia-se pelo caminho. O alma penada deve ter um grande fardo na consciência para se dedicar assim a ver se apanha as meninas do olho nos buracos da calçada. Enfim, cada um sabe a cama que fez aos outros, mesmo que esses outros sejam só moradas e números. Digo eu. O Hitler, nos filmes vê-se perfeitamente que o Hitler olhava acima da cabeça das pessoas.


Só é diferente por ser ao contrário, de resto… E não julguem que esta do ditador maior que a vida me veio por acaso, só para cagar umas deixas fora do penico. O alemão do bigodinho semítico, com essa de olhar acima de, de pôr os olhos a flutuar acima da linha onde o sol se põe, conseguia transformar as multidões em vala comum. O contabilista faz idem aspas. Aspas, aspas, aspas. Mas às avessas. O gajo só põe o pé onde já pôs o olho, estão a ver… (Mima.) E onde o gajo pôs, primeiro o olho depois o pé, cheira a cadáver por baixo. Cadáver não, cadáveres. Montes deles, bateladas de defuntos amontoados e desfeitos em pó. Farinha de morte amassada por chuvas e cozida pelo sol a pino. Às camadas como os bolos complicados melhores de ver que de comer. É duro de roer esse pó das estradas feitas de mortos que se cruzam e se confundem. Se um gajo começa a pensar que para estar vivo respira, desata logo sentir-se afrontado e a ter falta de ar. Já experimentaram? Já experimentaram pensar no dever de respirar e na impossibilidade de deixar de sob pena de? Com os mortos é igual: sei que aí aqui estão, que aí estão por toda a parte, aos nossos pés… que piso a poeira dos focinhos deles, dos pescocinhos deles, dos colhões e das conas de todos os desaparecidos em combate e fora dele. Mas não gosto que me lembrem isso. E é precisamente isso que o contabilista me lembra cada vez que põe primeiro o olho e depois o pé, primeiro o olho e depois o pé. (Imita várias vezes o caminhar cabisbaixo do suposto contabilista.) Eu até sou um filho da puta muito positivo. E não sou eu que o digo. Ou melhor: não sou apenas eu. Acredito que viemos por acaso e por acaso nos vamos. Não somos responsáveis nem por uma coisa, nem por outra. O que é um descanso do caraças. Hoje guia-se um Mercedes,


amanhã está-se a cobrar uma esmola ao dono de um Opel em segunda mão. Que mal tem? Nenhum. É um bem, uma benesse. A única, por assim dizer. Se, para além da merda que fazemos, tivéssemos de sentir-nos nos sentíssemos responsáveis por estarmos na merda, não aguentávamos uma semana neste vale de lágrimas. (Ri à gargalhada. Coça o queixo. Vasculha num bolso.) Pois. Bem, não pensem que vou fazer um número de magia. (Saca subitamente a mão do bolso.) Nã… mão nua. Mão vazia. Mas, se a realidade fosse bem real – ouçam o que vos digo – se ela fosse como a gente sabe que ela é, eu tirava deste bolso uns vinte bilhetes de identidade e algumas cartas de condução. De leves e pesados. É a grande diferença entre mim… entre mim e esse meu inimigo íntimo. Eu nem me importava de dizer que o tipo se parece comigo, que somos feitos da mesma massa, irmãos em deus e amantes noutra vida, se ele mostrasse alguma boa vontade. Se o tipo desse e entender que quer mudar, que não querer ser como é, que sente que alguma coisa não bate certo, que as contas nunca batem certas, que tocou à porta do corpo errado… se o tipo transpirasse, simplesmente… ainda era como o outro. Seria mais um desgraçado digno de toda a compaixão, embora a compaixão não seja actualmente a minha especialidade. Devo confessar que. Mas esta teimosia em ser igual a todos os como ele, em ser igual todos os dias e, pior do que tudo, igual a si mesmo… dá cabo põe-me fora de mim. Fico com os nervos em franja fora de mim só de constatar que aquele zé ninguém com cara de todo o mundo nem morre porque não muda, nem vive porque não muda. Lá no escritório deve ser um empata-fodas de primeira. Imagino que só em páginas de letra miudinha o gajo gasta canetas e livros como desgasta as pedras da calçada a olhar para elas.


E um contabilista, em princípio digo eu, deve ser um sabidolas capaz de safar o patrão das embrulhadas em que se meteu. Porque as contas estão mais que feitas e as favas mais que contadas num negócio como o do patrão do gajo. Só se fazem contas para esconder as contas de cabeça. Trau-trau: mais umas despesas de deslocação para aqui. Olé-olá: mais umas contas livres de impostos e uns desvios de capital para acolá. Tiroliroli: menos umas prendinhas do senhor abade e mais umas para pai natal acoli. Porque com papas e bolos se enganam os clientes tolos. Quem lhe paga não anda certamente a jogar a feijões. Digo eu. Agora se o gajo se põe a contá-los, não tarda nada, da maneira que as coisas estão, temos o patrão de cuecas… no caso do contabilista lhe emprestar uns trocos para ir à loja de miudezas ao Chiadinho. Olhar para o zé ninguém é como é como presenciar não um crime mas a sua demorada preparação. Então, já que o apanho todos os dias em flagrante delito de crime contra a condição humana, resta-me… cortar-lhe as vazas, cair-lhe em cima para ver se ele cai em si. Pregar-lhe uma partida antes que as coisas cheguem onde não podem. Não se trata de lhe limpar-lhe o sebo, não chega nem de lhe chegar-lhe a roupa ao pêlo, não basta Trata-se de lhe mostrar que lhe vi o jogo por cima do ombro. e logo que lhe posso fazer a vida negra tão certo como haver noites e haver dias e ser ainda assim necessário acertar os relógios de quem ousa querer escapar às leis do tempo, ou seja, condená-lo à vida. Agirei em legítima defesa não da minha pessoa mas da pessoa. Não do montante da aposta mas da regra do jogo. Sagrada, essa regra… E eu tenho maneira de lha fazer respeitar,


lutando com as mesmas armas – com as mesmas armas, digo eu – com que o gajo luta. Ou seja: tudo na mais estrita legalidade, sem sangue na calçada mas com muito sangue na guelra. Basta-me uma conversinha, dois dedos dela, com muito veneno e alguma lata… sendo que a lata é a minha profissão. O boss do gajo chega-me à tasca do bairro sempre em after hours, todo aceso o gajo, todo roto e já sem sono, com ar de quem anda conservado em álcool e água de colónia. É só eu apanhá-lo e dar-lhe parte da minha solidariedade, da minha solidariedade, digo eu, dar-lhe a entender que o negócio bem poderia ir para a frente ser outro se se livrasse do totó não fode nem sai de cima. O boss do totó não é burro, nem atado, e não faltam por aí contabilistas daqueles que fecham os olhos ao fisco, daqueles que dum peixe fazem vinte mil filetes, e ainda descontam as espinhas nas despesas de representação. Se o totó ficar sem job, se não tiver serventia para o fato, se não tiver papeladas dentro da pastinha, aí ele fica para morrer, pior que para morrer, digo eu. A única coisa que o totó não previu foi este tipo de acidente de percurso, esta pedra no sapato, este grãozinho na engrenagem curto-circuito porque acha que a vida – que só a deus pertence, digo eu – que tinha a vida toda traçada. A gente lhe fará ver que se enganou redondamente ou quadradamente ou triangularmente, neste caso, já que o caso envolve o conspirador, o executante e a vítima. (Anda lentamente em círculo à volta dos espectadores como se lhes fosse cobrar alguma coisa. Depois estaca subitamente, saca um saco de plástico de um dos bolsos e, enquanto vai proferindo as palavras do parágrafo seguinte, vai enchendo o saco com moedinhas castanhas e amarelas tiradas do outro bolso. Como se fossem munições de uma guerra que se preparasse para travar.) Eu sei o que estão a pensar.


Estão pensar que eu nem sempre pensei o que penso quando penso e que, para mais, com esta minha lábia, não devo ter nascido na rua como os cães vadios. Mas, cada vez que pensam, estão a dar-me razão. Nunca parei de mudar. Quase que mudo ao ritmo das estações todas as noites. É uma forma de anonimato bastante diferente da que o contabilista pratica. Digo eu. Há uma grande diferença entre desistir e resistir. Ainda assim, não nos devemos deixar enganar pelas palavras. Acontece resistir desistindo e acontece desistir resistindo. O ponto de partida talvez seja mais importante do que o ponto de chegada. Ou não. Um gajo não tem forçosamente de nascer na rua para ter a escola toda. Para além dos autodidactas, convém não esquecer a propensão natural. A propensão natural é meio caminho andado para mudar de caminho. Não andam longe da verdade os que pensam que eu não sou quem se pensa sou mas a verdade a verdade é o que a gente sabe e o que a gente sabe da verdade vou ali e já volto. Isto de não ser tem muito que se lhe diga, digo eu, e é muito útil para as merdas que me dão o sustento casa, comida e roupa nem sempre lavada, ele é conforme os dias e os apetites. Se me pega uma fúria de encher os bolsos e o papo, o que mais há são maneiras de sair da merda sem magoar ninguém, pelo menos sem aleijar muito. A mentira é uma segunda natureza e não me digam que dessa água nunca beberam. Somos criados a aprender a mentir e quem nos cria no banho da mentira está a pensar no nosso futuro. (Percorre o espaço, cambaleando ligeiramente. Desencanta uma garrafa de água de litro e meio. Bebe uma boas goladas e depois cospe uma quantidade de líquido para o chão.) Purificação. Pureza em acção. Mudar é purificar-se por dentro e procurar que a coisa se veja por fora. O ser humano não tem direito à erosão, donde daí a higiene que nos ensinam de pequeninos. Extirpar a fina camada de sujidade não satisfaz porém o desejo de ser lambido, moldado, desbastado. O bom deus descansou ao sétimo dia.


E desde então, escultor preguiçoso, preguiçoso, duma figa, o cabrão não voltou a despertar. Digo eu. Não queriam vocês que o gajo, perante a obra inacabada, ainda desse o braço a torcer… Para compensar milénios de ócio, fez com que o homem inventasse a pia baptismal, o tanque, a fonte, o lavatório, o bidé e a piscina. Nem quero imaginar o quartinho do contabilista. No sótão de uma rua escura e bafienta. O homem dobra as roupas todas antes de se deitar e pousa o casaco direitinho nas costas da cadeira. O homem cheira a homem adiado e o quarto tem um fedor de nunca haver Primavera ou Verão. O homem vive só ou com a mãe que dorme entrevada na mesma cama. Chiiii… não exageremos. O homem nunca partilhou nada com ninguém, digo eu que já tive de viver numa cela de seis metros quadrados com mais três carcerolas. Se alguém se desse ao luxo de arrumar ou dobrar fosse o que fosse, os outros aproveitavam logo para ganhar o espaço desocupado. Eis um bom exemplo da regra número um da convivência entre os homens e também a razão pela qual o deus do ócio recomendou aos do paraíso perdido que crescessem e se multiplicassem. Não estou a falar de filhos, estou a falar de conquista de território e não haja dúvidas de que foi ouvido, entendido e obedecido. Só aquele gajo – que não é filho de deus certamente – se porta desta maneira em tudo o que faz. Existe como se pedisse desculpa de ter vindo ao mundo e caminha caminha como se marchasse sobre a precisa pista sobre a pista certa que alguém, algum dia, quis deixar intacta. Ora, se existe alguma diferença entre o homem e as outras criaturas ela está na maneira de ser ou não ser livre. De utilizar ou não essa possibilidade. (Pausa inesperada. Um clarão de maldade ilumina-lhe os olhos.)


Permitam-me que realize diante de vossos olhos uma experiência que não tem nada de mágico – eu não acredito sequer no que os meus olhos enxergam – mas resulta sempre. (Saca do bolso um toco de vela e uma grande caixa de fósforos. Acende a vela, procura um recanto abrigado, acocora-se, deixa correr um pouco de estearina e cola o toco aceso ao chão.) Se ela se apagar, todos os meus maus pensamentos se realizarão. Se ela não se apagar, largo a minha presa ou ela me há-de largar o que vem dar ao mesmo. Nunca falha. Não pode falhar. E se for preciso ajudar a que não falhe cá estou eu para isso. Cá se fazem, cá se pagam, digo eu. E como lembrava o outro, já não me lembro quem, a justiça está ao alcance de qualquer pensamento e de qualquer braço. Ele não se toma por quem não é mas eu lhe farei ver que ser não é assim tão líquido. Eu lho farei sentir na pele a pele é a única coisa que nos sobra da nudez do paraíso da mudez do paraíso da inteligência muda, nua e crua que era a nossa antes da condenação a ser. Se o mundo acabasse – o caralho seja mudo cego e surdo sete vezes a seguir –, se o mundo acabasse e o contabilista fosse o último à face da terra, ainda assim acho que ele não utilizaria a única possibilidade real a única possibilidade que o real oferece aos seres reais: a possibilidade de ser livre. Continuaria igual a si mesmo, intoleravelmente igual. Igual a igual. Igual a igual a igual. Um desperdício. Uma insolência. Um pecado mais do que mortal.


Oswaldo retira-se para trĂĄs de uma coluna. Prepara-se para urinar. Escuro. RuĂ­do de mijo a correr.


Este Um espaço bastante despojado que poderia ser um escritório de import-export. Uma secretária high-tech. Um sofá articulado e rotativo de grandes dimensões. Uma das paredes está tapada por um amontoado de caixotes de cartão canelado, sem outros dizeres que não uns grandes carimbos dourados que representam caralhos das Caldas. Emílio, vestido com indumentária de tecnocrata, gravata desapertada como após um dia de trabalho intenso, dormita sobre o tampo da secretária. De súbito desperta, passa a mão pelo cabelo, agarra numa garrafa de whisky pousada a seu lado, ergue-se e, com a mão livre empurra a cadeira para se abeirar do público. Durante todo o seu monólogo vai bebendo whisky às goladas generosas, pelo gargalo da garrafa. EMÍLIO Raios me partam, o gajo arruma-me tudo. Tudo. (Aclarando a voz.) Aquela besta quadrada – e nenhum quadrado é tão quadrado como a besta de que vos falo – aquela besta deixa-me tudo tão arrumado que não se encontra nada neste escritório. Caramba… que mal fiz eu a deus para aturar uma criatura assim a personagem? (Atira-se pesadamente para um sofá couro e cromados de executivo e dá várias voltas…) Tem... sofre de miopia cerebral, Digamos. Não acerta uma. Se diz que é um nico, é um naco. Se diz que é um naco, é um nico. Peço-lhe que trate da soma, trata das parcelas. Peço-lhe que me trate de contas, ele quer que eu lhe conte a história toda do ovo no cu da galinha, e da galinha quando era franga e da franga quando era pita e da pita quando era gema. (Quase gritando.) Eu quero a minha desarrumação, bolas!!! É por causa dele que ninguém me apanha aqui. Chego aqui e não me sinto em casa. Chego aqui, dou de caras com ele e vou porta fora. Chego aqui e apetece-me mandar o negócio às urtigas e pôr o escritório à venda juntamente com o contabilista, funcionário vitalício e fantasma privativo deste lugar. Com esta mania de deixar tudo arrumado – deve ser para os ladrões não tropeçarem na confusão, sei lá… –


com esta loucura de deixar tudo arrumado, de ter tudo debaixo do olho, sob controlo, digamos, sob vigilância apertada, ele faz-me seu escravo. O tipo quer fazer-me seu escravo… Mas eu leio no jogo dele como num livro aberto. (Dá mais umas voltas no sofá e suspira como se buscasse inspiração.) Não falo no ar, falo só do que conheço. Acreditem. Olhem, uma vez uma desavergonhada fez-me o mesmo. O mesmo ou, digamos, o equivalente. Na hora de eu lhe saltar para a espinha, não é que a rameira começa a dobrar a cuequinha e o soutien e a arrumar a minha roupinha na cadeira do quarto, género primeiro o dever depois o prazer, digamos. No bar, a garina, que podia ser minha neta, era toda toda solário e salero. Entra-me em casa, fica logo uma matrona. Foder com a minha neta, ainda vá, não sou de pau, agora violar a minha mãe, tenho-me na conta de ser um homem de princípios e de fins! (Ergue-se a custo, endireita-se como que para reafirmar a sua dignidade de macho com princípios e fins. Começa andar à volta do cadeirão, com as mãos pousadas no topo do espaldar.) Aquele gajo… aquele homem é a peneira que me tapa o sol. Toda a minha vida me hei-de arrepender de ter herdado o traste com a mobília e outro que não eu já o teria obrigado a ir-se embora pelo pezinho dele sem barafustar. Mas eu tenho princípios e fins. Por um lado o sujeito já estava na casa bem antes de eu comprar este negócio, de o comprar, digamos, de ter enfiado nesta espelunca a massa que ganhei, hoje não se faz nada por menos, e uma pessoa precisa de uma fachada pintada de fresco para esconder da vista,


para esconder do coração, o papel que ganha noutras vidas. Por outro lado, ele faz-me falta, digamos que me faz falta. Já não há quem trabalhe como um moiro ao preço da chuva. Horas extras, fins de semana e noitadas quando ele acha que é preciso e mesmo sem eu o obrigar a isso: ele é o sentido do dever feito gente e eu dou-me mal com os deveres… E até faço gala nisso. Só que isso levanta alguns problemas: ideias e boas ideias nunca me faltaram. Mas a florzinha das ideias, sem o duro torrão da organização nunca chega a desabrochar. Imagine-se o Hitler, a braços com a ideia da «solução final» e sem a logística da máquina nazi por detrás e por baixo. Os colaboradores Os carrascos, os clínicos, os comboios, os campos, as câmara de gás, os crematórios, tudo isso gerido com gastos mínimos e mesmo que, digamos, pago, literalmente pago, pelos anti-suínos a quem limparam o sebo. É obra. Digamos que é obra. Não basta anunciar que se vai exterminar aqueles ou aqueloutros. Digamos que a escolha recaiu sobre os judeus porém o mais importante é digamos o carácter experimental e a larga escala da iniciativa. Se pretendêssemos, por exemplo, limpar os bonzinhos da fita da face da terra


– o que seria um bem para todos, para todos os outros, digamos – não precisávamos só de águias, precisaríamos de abutrezinhos como o meu manga de alpaca. Nem quero pensar o que seria descarregar o gado à porta de uma câmara de gás e faltar o gás, digamos. Ou nessa semana avariaram-se os fornos todos. Porra, havia de ser uma grande seca e as grandes secas comprometem as grandes colheitas. O que está errado no meu contabilista não é fazer o que tem a fazer é mais fazê-lo e fazer-mo sentir. «O Dr. Emílio esqueceu-se da facturinha da lingerie e da atençãozinha, daquela atençãozinha, na altura eu até lhe disse que avançava a liquidez, porque o nosso agente é bastante impaciente.» O cabrãozinho não se esquece de nada, nem descura, nem dá ponto sem nó. Não admira que eu não o suporte, sobretudo sobretudo quando me faz sentir que me suporta tudo. É pior do que estar casado. É pior do que estar casado com uma mulher que é dona da massa e que nos deixa tomar conta do graveto só porque se deu o nó e se dorme na mesma cama. Hoje em dia, já não há muitas dessa espécie e a ave rara tinha de me calhar a mim que nunca quis ser fiel a ninguém mais de duas noites seguidas, sendo que a segunda já é bónus. Estão aqui muitos homens não sei se algum se denuncia… A verdade é que não há castigo maior do que ser bem casado com uma mulher às direitas. É como partilhar a almofada com o peso da consciência, digamos, e partilhar a sanita, a banheira, o lavatório, o bidé com um anjo caído do céu.


Que estorvo, meu deus, haver gente boa e mulheres decentes. O sexo fraco é uma praga quando fraqueja a esse ponto e os escravos são a praga mais grave quando se colam aos senhores como sombras fazendo com que a sombra cresça ao longo do dia e de dia para dia. (Bebe uma golada de whisky, esboçando um gesto de oferecer a garrafa a um espectador mais próximo.) Como é que se explica a uma pessoa que não quero que ela me salve quero apenas que ela me safe, e uma coisa é, digamos, incompatível com a outra. Eu já aceitei há muito tempo ser condenado noutra vida. Só pretendo escapar à justiça nesta, porque a outra nunca confiando. Só pretendo passar entre as malhas da rede, esquecendo que existe rede, se possível, rasgando a rede, se necessário. E pago o que for preciso para ignorar a rede e arrecadar o peixe. Para multiplicar o peixe. Os milagres são comigo a contagem é com ele. Mas, quem olha para o cardume, não pode contar pelos dedos sob pena de ser mordido pelos graúdos e de ser penalizado porque a rede arrasta peixe abaixo do calibre autorizado. Há que contar por alto, de cabeça. Há que contar de cabeça erguida porque o negócio, digamos, não tem alma, nem segredo. Alguém que faça o seu com todo o descaramento, olhando sempre acima da maralha e da média, nunca será incomodado pelos pequenos deslizes que possa cometer. E de deslize em deslize se ganha lance para os grandes voos planados picados. O prazer de vender prazer


e de saber que quem morde o isco delicioso disso morre a prazo é uma coisa que o manga de alpaca não pode entender. Toda a gente sabe que o peixe é escorregadio e desliza da mão de quem vende para a mão de quem compra, da mão de quem compra para a mão de quem amanha. E quem come sempre calará. Estão a ver o filme? (Bebe mais um trago e vai colocar a garrafa aos pés dum espectador, desafiando-o com o olhar a beber do mesmo gargalo.) É difícil confiar num sujeito que faz das tripas coração e nos olha como se fosse o próprio peixe já no prato e nos oferece a barriga aberta à faca. Como é que um homem que trabalhou a vida inteira com dinheiro pode agir como se o dinheiro cheirasse mal e esse fedor fosse o seu mistério? Conheci-o velho e não o vejo envelhecer. Sempre o mesmo aprumo, o mesmo brio, o mesmo zelo. O mesmo fato em vários exemplares com o mesmo corte que já ninguém usa, com a pasta de baixo do braço como já ninguém se atreve a andar. Uma criança de sete anos, até mais nova, já tem noção do que é ser do seu tempo: mochila, estojo, sapatilhas, boné… Quem terá parido esta aberração com quem tenho de me cruzar todos os dias, a ponto de evitar passar pelo escritório às horas de expediente? Macacos me mordam os pés penso eu cada vez que da soleira da porta passo para a escuridão da escada e me presto a entrar nesta arena onde não se enfrenta nem sol, nem touro, apenas um tigre de papel, um tigre tão magrinho que não se lhe distinguem as riscas – deus nos proteja dos demasiado magros dos que embrulham os ossos numa bandeira e se destapam para os exibir com toda a honestidade e toda a distinta lata de. O homem de negócios, que é o que sou, digamos, nas horas vagas,


deve remar contra a corrente e contra a inércia e talvez tenha de reconhecer no atrito o seu maior aliado. Porque só se vende vento, só vento e quietude se podem vender, por vezes dois em um, tempestade e bonança num só produto, usar e deitar fora, usar e abusar, entregue à cobrança, encantado ou reembolsado e o encanto não é coisa que se quebre, assim por dá cá aquela palha. Enquanto ele se abisma em vigilância dos meus gestos, mostrando que tem mais olhos que barriga – e que olhos! – que tem mais fome de ver do que tomates – e que fome sem nome terá ele? – eu obrigo-me a agir conforme o humor dos clientes, conforme o exigem as situações que eu próprio crio. É isso que ele não tolera e é por isso que cegamente me obedece. Basta a submissão dele para eu saber que não tenho razão quando quero tê-la do meu lado, à viva força, e que aquilo a que chamo ossos do ofício são desejos de carne travestidos, apetites pobres mas capazes de justificar jantaradas e as indigestões que vêm a seguir. Dá-me ganas de lhe atirar à cara que à mesa de quem janta perde o lugar quem cedo se levanta. Inútil… Inútil: há mais demónios no meu coração do que a razão dele consegue conceber. A razão dele. A imaginação dele, digamos, cabe num quadradinho dum papel quadriculado e ainda fica um espaço livre para a perninha do um, para a barriga do dois, para o par de mamas do três, para o par de cornos do quatro… Com uma quadrícula assim é difícil enquadrar o pensamento. do ser com quem se lida. E o ser com que se está passa a ser aquele de quem se foge. Digamos que sim. Digamos que não.


Digamos. Mas é como se nada disséssemos. O silêncio mais frio é o silêncio do peixe embora se pense que pela boca ele morre e que aprendeu a nadar com o papá. O meu contabilista é um órfão, uma mente sem pai que não reconhece nem patrão, nem ascendente. O diabo nos livre dos demasiado rectos, dos demasiado quadrados, dos que, depois de milénios de obscurantismo e de uns poucos centos de anos de luz nas trevas ainda conseguem tornar quadrada esta terra já tida como redonda. Porém, eu que sou de falas e de muitas falas, um homem dado a muitas falas e que sabe tirar energia tanto da escuta como dos ouvidos de mercador, eu, digamos eu, lhe mostrarei quem é o dono disto, quem é o dono do mundo dele e quem é o cão. (Emílio aproxima-se de um espectador, de garrafa de whisky na mão, alça a perna e, colocando a dita no lugar do pénis, despeja o conteúdo da garrafa, muito devagarinho, aos pés do assento.) He! He! Hei! Enganei-te Enganei-te Uma pinga de leite E um fio de azeite. Não leve a mal… Foi só descarregar em si ou digamos à sua beira a seu lado a seus pés uma raiva que não é contra si mas que digamos também já não me pertence totalmente porque tende a a atingir o seu objecto, tornando-se


digamos pública e quase universal. Eu não acredito que o senhor não tenha um inimigo um inimigo privado declarado íntimo – o que só aparentemente é contraditório – a quem lhe apeteça dar, digamos, dar uma lição de vida. Há uns tempos há pouco tempo mas já há algum tempo que ando com esta ideia atravessada nos miolos. Já nem sei como me veio a mim que sou um sujeito digamos cordial pacífico de bom trato. As minhas guerras são outras. Não são guerras de números como imagina o meu manga de alpaca. São guerras de nota preta, de nota preta e de noites em claro. E de beijos. De beijos gratuitos, se possível. Não o sendo, de beijos a pagar sem regatear. Portanto estão a ver, digamos, que eu e o meu contabilista somos feitos para não nos entendermos e assim sendo não vale a pena eu continuar eu continuar a cruzar-me com ele. É tão simples, tão elementar e simples como pô-lo no olho da rua. Dar-lhe um pontapé no cu que seja digamos uma verdadeira bofetada de luva branca. Uma coisa que doa… uma coisa que magoa sem deixar marca. Nem sangue no nariz, nem sangue na calçada.


Com uma indemnização, uma indemnização, digamos, honesta que é uma palavra de que ele tanto gosta. Prevejo – é um bocado louco o que vou dizer, mas prevejo – que venha a ser que venha a pro-por-cio-nar-nos digamos (é uma questão de pro-por-ção) ah ah a proporcionar-nos o primeiro momento de sintonia. Porque eu agirei conforme os métodos dele de cortesia de legalidade de decência. Embora aja contra ele, agirei segundo ele. Não é lindo de morrer? Uma indemnização honesta é quanto bastará para me ver livre daquela besta besta mais besta não há. (O álcool começa a surtir o seu efeito de uma maneira mais visível. Emílio parece procurar e não encontrar assento. Ou talvez se arrependa de ter vontade de se sentar.) As coisas, ao descerem, ganham velocidade. Esta é uma verdade física e fascinante e um grande consolo para quem vê o seu inimigo na iminência de cair de resvalar pela escada escura abaixo e de só parar na rua porque não há estrada directa para o inferno onde só há boas intenções. Por outro lado, se estivéssemos à espera que nos nascessem digamos que nos nascessem amigos para termos inimigos à nossa altura, pelo menos, digamos um que nos contradiga, que contracene connosco, bem podíamos ir de lanterna em pleno dia como o outro cujo nome me escapa mas a história, digamos, a história não a esqueço.


(Apesar de completamente bêbedo, ou talvez por causa disso, adopta um tom doutoral e, depois de vacilar, senta-se no chão, procurando a melhor posição para as pernas, coisa que lhe ou nos parece difícil.) O maior mal dos nossos tempos é nem estarmos sós nem bem nem mal acompanhados, Coube-nos um novo castigo e não sabemos ou fazemos conta de que não sabemos donde ele nos vem e quem o aplica. Esse fazer de conta é, digamos, digamos que é o nosso pobre teatro. E quando finalmente nos calha um antagonista um antagonista do nosso calibre embora não forçosamente da nossa estirpe, por vezes levamos eternidades a admiti-lo no nosso jogo. Porque olhos nos olhos corpo a corpo corpo contra corpo olhos contra olhos é coisa que não aprendemos. Eu fujo dele ou digamos quase fujo dele fujo do contabilista. E ele de quem foge? E a mando de quem? Ao perder a oportunidade de me confrontar com ele definitivamente perco também a de me confrontar com uma parte de mim, isso é certo, digamos certo. Mas cada actor tem os seus limites, os seus limites e a sua história de amor se é que se pode chamar de amor a uma história que só a si mesmo diz digamos


respeito. Felizmente conheço um truque que me vai e nos vai, digamos, ajudar a passar a noite É um truque que faço desde criança e deposito grande confiança no facto de ele ser simples, feito à vista e totalmente desprovido de magia. Tenho um relógio madrugador nos miolos, que retarda o curso dos astros e atrasa o romper da aurora. Com este truque multiplico a duração do escuro pelas voltas que o pensamento dá. Vão ver. É tão fácil e inocente que é impossível não acreditar nisto que vão ver. (Ergue-se de supetão, tomado por uma derradeira réstia de energia, vai vasculhar na gaveta da secretária, onde desencanta um toco de vela e uma caixa de fósforos. Depois, procura a garrafa de whisky vazia, volta para o lugar onde estivera sentado, acende a vela, deixa correr um pouco de estearina no gargalo da garrafa e cola o toco a arder no buraco.) Agora, preciso de ter em mãos um objecto que lhe seja muito muito querido. (Reflecte um curto instante.) A agenda das minhas despesas correntes, claro está. Não sou eu que a preencho. O tipo é que insiste em ser polícia da minha vida e reclama facturas de tudo quanto faço, para organizar a sua contabilidade, supostamente. (Levanta-se de novo e vai buscar uma agenda pousada no tampo da secretária. Volta a sentar-se frente à vela e ao publico, desta vez à chinês, com irrepreensível aprumo, como se se preparasse para a rigorosa execução dum ritual.) Vou ler. Se ela se apagar, digamos, se a vela se apagar durante a leitura, Hermes e o Espírito Santo me darão força e coragem para me livrar deste meu fardo, para o largar como se larga uma camisa quando foi usada e mal usada.


Vou ler. Digamos que passo a ler. Isto pode demorar ou não. É só uma questão de concentração. Três de Janeiro. Almoço na esplanada do Hotel do Elevador: 78,50 euros. Gravata: 155 euros. (que exagero, de facto…) Táxi: 9 euros Whisky e charutos: 82 euros. Bilhetes para o teatro: 45 euros Orquídeas: 27 euros. Táxi: 11 euros. Quatro de Janeiro. Barbearia: 17,50 euros. Esmola mensal arrumador: 20 euros Aluguer de automóvel sem condutor: 45 euros. Tickets de estacionamento: 13 euros. Jantar no Hotel da Torre: 89 euros (em boa companhia, se bem me lembro…). Dormida para duas pessoas + garrafa de champanhe: 269 euros. Cinco de Janeiro. Cota ginásio: 60 120 euros. Contribuição para associação de caridade (dedutível): 100 euros. Almoço no Associação Industrial: 34 euros. Garrafa de whisky: 28 euros (fui razoável…) Multa por estacionamento: 50 euros (não paga) (era o que mais faltava…!) Jantar no snack do Hotel Império: 23 euros. Seis de Janeiro. Vaso de orquídeas entregue a domicílio: 35 euros (tenho pouca imaginação para flores…) Écharpe de seda: 67 euros. Aula de dicção: 55 euros. Almoço no restaurante vegetariano: 26 euros (acto de contrição, lindo menino…) Táxi: 8,90 euros Táxi: 9,30 euros Lanche na esplanada do Fritz Magestic: 29 euros. Táxi: 9,70 euros. Libações nocturnas (que linguagem florida.. Calor da Noite): 397 euros. Táxi: 19 euros. Sete de Janeiro. (A vela apaga-se.) Vêem? Nem foi preciso uma semana de trabalho completa. Caraças, eu nunca me engano. Não me engano nunca. Eterna gratidão a Hermes, deus dos ladrões. Eterna gratidão ao Espírito Santo, patrono dos violadores. O patrão ganhou confiança no patrão.


Até que enfim…! O patrão ganhou terreno. O patrão é mais forte do que eu em mim. Mais forte do que eu ser uma pessoa e ele uma outra. E ele uma outra. Eu uma ele duas. E agora três dois zero. (Agarra no casaco e sai porta fora, derrubando voluntariamente a garrafa com o pé.)


Alguém Uma sala de teatro cujo palco se encontra totalmente despojado. Os espectadores já entraram e tomaram os seus lugares. O operador de sala fecha a porta. Ouvem-se passos pesados vindos do lobby. Artur tenta forçar a sua entrada na sala, levantando a voz a quem tenta guardar a porta cerrada. ARTUR Deixe-me passar! Deixe-me entrar! Barulho? Quem está a fazer barulho? Olhe que eu sou frequentador da casa e do teatro há mais anos do que você anda neste mundo. Não me lixe! Estou a ver uma frincha de luz. A luz ainda não baixou. É só má vontade sua. Não puxe por mim… Não puxe por mim!!! Olhe que eu parto-lhe a casa E parto-lhe a cara. Artur, completamente vestido de preto, consegue forçar a entrada na sala. Mal empurra o batente da porta, faz-se black out total na sala. Olhem que eu parto esta merda toda. Dizer-me que estou a fazer uma cena gaga a mim que sou espectador, que sou quase espectador profissional? Será que ninguém dá formação a estes pingentes? Tanta cagança, tanta cagança, farda com camisinha a condizer com a cor da fachada, sapatinho escuro como se fôssemos todos a um enterro e nem uma lição de cortesia! Não estamos aqui para comprar nem vender batatas… Entretanto, Artur desceu o corredor lateral e começa a deambular pela sala, a partir da primeira fila e em direcção à fila superior, por vezes incomodando os espectadores já instalados para encontrar o seu suposto lugar. Puta que pariu o teatro!!! O teatro casa. O teatro gente lá dentro!


O teatro máquina. O teatro fantasma e o fantasma do teatro! É que tudo isto é de uma falta de saber viver, duma falta de profissionalismo, duma falta de tacto, duma falta de chá. Começa pela cabeça de cartaz e acaba nas trombas dos funcionários da casa, que nos olham como se fossem generais e nós magalas. Ó céus, o mal que uma simples farda pode fazer e ainda há quem Pensar que vim disparado para aqui só para ver só para verificar só para me certificar de que me enganei de que me enganei mesmo e de que aquela criatura incapaz não está em cartaz. Não pode ser. Não pode estar. Há algures um engano ou uma brincadeira de mau gosto porque esta malta acha que paga para trabalhar mas, de facto, anda a brincar com o dinheiro público, com o dinheiro dos contribuintes vocês e eu para começar. (Artur incomodou toda a gente até furar rumo à última fila. Sobe descaradamente para uma cadeira e, em equilíbrio instável, fala com se tivesse preparado uma prelecção.) Diz-se que o teatro é o lugar onde se vai para ver e é isso que faço, isso que estou a fazer. Ver para crer. Não que me baste mas por ora Actor? Aquilo? Aquele bicho? Aquele lixo de gente? Diz-se que o actor se despe para se mostrar em parte uma parte de si uma parte de uma parte e por aí


Mas eu – de que eu falo? deste que aqui veio com o outro de permeio ou daquele que duvida que o outro aqui esteja? – mas eu Diz-se que quem desdenha quer comprar. Eu compro. O bilhete. Peçam-me para vir. Não me peçam para ficar. E desde já vos aconselho a dar à sola porque o gajo que está anunciado é tão actor como eu sou arrumador e nem para moço de recados eu o queria. O mínimo que me compete é denunciar a fraude que isto é. Diz-se que o teatro é como pão para a boca mas o suposto actor que vai entrar em cena nem boca teria para pedir uma esmola quanto mais para desbobinar um texto. Se acaso trouxer pão é pão de forma só miolo mole e côdea nicles, cortado à fatias regulares, formatado e informe. Qualquer parecença com o pão será pura coincidência. (Artur retoma a sua deambulação pela sala, desta vez em «slow motion», roçando uns, galgando outros.) Diz-se que o teatro é a poesia em carne e osso mas o suposto artista em cena principal e único nem tem a dureza do osso nem a verdade do ofício. É inconsistente até ao tutano. Em lugar de falar peida-se. Em lugar de olhar, caga-se por dentro. Não peca, é viciado em virtude. A menos que achemos que é teatro fazer bicha na repartição das finanças para entregar papeladas ao fisco tudo arrumado numa pasta A4 e pedir desculpa por qualquer coisinha com aqueles olhos king size que já terão visto o fim do mundo mas julgaram que era fogo de artifício


portanto aplaudiram, abrindo e fechando as pestanas. Estão a ver o número? De trazer por casa. Actor, se o for, é de trazer por casa. A somar pó e a subtrair sabão, isso talvez. Porém, diz-se que o teatro deve ser sujidade, deve ser pele encardida, poeira de caminhos e milénios, fedor de mortos no armário dos corpos, deve ser mancha e nódoa impossível. Então para isso não contem com ele porque ele é mineral como uma garrafa de água e já foi reciclado antes de ser bebido para bom entendedor basta um gole para chamar o vómito. Diz-se que o teatro deve ser sala de anatomia clandestina daí o nome que se dá a esses locais onde se procura a causa mortis sem que a vida possa voltar atrás porque o que interessa é perceber como a vida fez o seu serviço que está feito e bem ou mal feito está feito antes que a faca rasgue e ponha as vísceras cá para fora. Ora nesta hora nem feito nem por fazer e até gabo a paciência de estardes á espera de um sujeito que não existe que nem para bode expiatório serviria quanto mais para bode do deus das libações e das libertações de há muito prometidas. Este cortejo não anda, não desanda, está parado, paralisado é o teatro da paralisia e esse não faz sentido tendo em conta.


Tendo em conta TUDO. Diz-se que o teatro deve visar entre os olhos certeiro em direcção ao alvo certo. Mas bem vistas as coisas talvez mais valesse voltar à terceira pessoa, à pessoa de antes do teatro, sempre terceira e heróica na sua nomeada como no seu anonimato crasso. Ou mesmo voltar ainda mais atrás, ao actor colectivo, feito de suor e transes indizíveis que não atravessaram a noite dos tempos porque ela é opaca, a vaca. Diz-se que o actor deve mudar como quem muda de camisa. Mas este que se propõe pisar as tábuas só muda de camisa para não mudar. Um pobre pateta e um pobre de espírito, um homem feliz como se diz. Infalivelmente feliz isto é sem pontaria. Se quisesse acertar entre os olhos do espectador, daria um tiro no pé e sairia a coxear, pedindo perdão pela interrupção. Se ele é actor, eu que actor sou – não de vocação mas de prática, não no palco, mas na vida – posso declarar sem peias que tenho em mim o Téspis e a Sarah Bernhard, ele de saias ela de calças. Pois não é em cena que se pisa o risco é na rua que se pisa a cena. O resto é conversa por acabar. O homem que aguardamos, guarda-livros e polícia na alma, ainda deve estar a estudar a cábula, quando representar deveria ser


um estado constante, uma disponibilidade de escuta e resposta, não de quem fala para quem cala cala cala, mas de quem transforma a palavra roubada em palavra dada. A representação não é excepção, é regra, sinal evidente de que o diabo nos pesa e nos carrega. Ele, esse anjo de fato e gravata, nem em legítima defesa saberia improvisar e diz-se que perdeu o papel que há muitos anos lhe cabia. Ora, o teatro não pode ser terceira via, talvez apenas se ofereça como beco sem saída com grandes vistas, vistas desarmadas para traseiras infinitas. Enquanto ele faz contas nos bastidores, procurando o erro no sítio errado, o público agita-se nos assentos: cada cu se sente mais pesado, cada perna mais comprida que a irmã. E da sonolência reinante, tão propícia a ser arrebatado, não sabe ele tirar proveito. Puta que pariu, dez vezes puta que pariu esse copista de números alheios, esse escriba sem epopeia, armado em herói da noite e tão feliz por se fazer esperar como algures num altar a noiva que vai ser abandonada. Diz-se que o maior palco jamais pisado foi a parada nacional socialista com seus efeitos corais em perfeita afinação. Mas a tropa fandanga dos soldadinhos alucinados


precisava de um soldado mor, precisava de um actor. Esse actor foi Adolfo. Adolfo, o inspirador fácil de parodiar, impossível de reproduzir com fidelidade e com fiabilidade. Diz-se que o actor é perigoso. Ou melhor: ouvi dizê-lo a um jovem dramaturgo da nossa praça, com nome de flor e cabeça de apóstolo, premiada, porém não posta a prémio. Diz ou disse ele que o público nunca sabe se o actor não se atreve a disparar a sua arma de brincar que afinal tinha balas muito a sério. Não sei se não será o contrário. E até o contrário do contrário. Se o actor não é aquele que sabe que sabe de um saber do tamanho da sua grande manha que do público pode levantar-se um cano de caçadeira um punho e um punhal. E o actor vive nessa esperança tensa: todas as suas células se alimentam daquilo que ali está, não estando, daquilo em que não ousa acreditar. Daquilo que mora no escuro. Daquilo que o olha no escuro. Assim sendo, senhoras e senhores, provado que está que o outro não é, que o outro não tem tomates para aparecer e crescer, para vos enfrentar, para me enfrentar, sugiro que saqueis das vossas armas, de fogo ou de palavra, brancas ou de alarme e que com elas especulemos, olhando-nos mutuamente como espelhos, para que o ritual, ao menos o ritual, se cumpra, em lugar comum


e por atacado. E se não tiverdes nem pistola nem faca nem lata, exorto-vos a sair ordeira ou desordeiramente desta sala onde vos venderam gato por lebre, onde vos venderam vento, porque palavras o vento as leva e todos os ouvidos são de mercador. Vejo que não tugis, nem mugis. O bom senso impede-vos de ver, neste templo do ver e ser visto, o que o outro mostra teimando em esconder-se. Pressinto que julgais que isto faz parte, isto faz parte daquilo, tudo faz parte do tudo. Sois como o outro que serrava ou esticava os pés dos hóspedes para que eles coubessem na cama. Diz-se que o teatro é sala de tortura mas do torcionário não há nada a dizer apenas da cama e ainda assim o mais importante será determinar para que lado dorme a cabeça e de que lado desperta, quando o corpo amputado sonha voltar a sentir o chão porque justamente não poderá mais pisar o que pisou. Diz-se que deus fez o homem à sua imagem e semelhança. O actor, acreditai, é uma espécie de rascunho de Adão com Eva dentro do peito indistinta de si. Adão, encostado à arvore do saber, como se fora tão-só um ramo malandro, ignorante de que lhe vão arrancar a sua costela mais querida.


Desse modo se apresenta, tem-te não caias, agarra-te ao que vês, máscara de céu e coturno de terra, esvaído mas travado em sua queda pela raiz que se afunda e pela ternura tronco a tronco braço entrelaçado em galho e do sexo que dizer a não ser que é o terceiro braço? Actor Adão grudado à lama e à voz colado a vós e contudo tão volúvel todo ele membro ora tenso ora dançante como o ser humano mutante antes de antes de ser Porém, posto que não escolhestes o escândalo da desobediência o bom senso da impertinência o bom gosto do desmando a evasão em bando a fuga amotinada a subida de tom, porque sois demasiado bem educados – ou porventura o contrário, sim, o contrário certamente – resta-me propor-vos que imiteis o faz-tudo de serviço neste pão alheio neste circo alheio e no coração subterrâneo desta casa estranha onde, mal deixa de haver dinheiro, logo deixa de haver palhaços. Viemos ao engano para assistir a uma fraude. Mas o escroque não veio dar o braço a torcer. Aconteceu o que não acontece a isso já não escaparemos. Se o intrujão não pintou se não fez o seu papel, não é razão para não cumprirmos o nosso,


o papel ao nosso alcance de espectadores permanentes impenitentes. Porque o verdadeiro actor, aquele que sendo erro da criação o é e será a toda a prova, esteve connosco e entre nós, fomos bombardeados com estilhaços de verdade. Sim, fiquemos no nosso lugar, façamos por ficar. Fiquemos por aqui, onde estamos. Recusemo-nos a sair. Podemos ser os filhos pródigos de um deus pai desnaturado por natureza. Podemos regressar e não arredar pé desta lareira fria. Recusemos o toque da saída a hora de ir dormir a obrigação de voltar ao lar a saída de emergência para o sítio do costume. Esta casa pode ainda ser nossa se dela fizermos antro e não refúgio. Se dela fizermos túmulo adiado e não ávido recreio. Esperemos sem esperança, nem receio. Daqui não sairemos. Ninguém nos tira ISTO !!! DAQUI NÃO SAIREMOS !!! DAQUI NINGUÉM NOS TIRA !!! (A deambulação conduziu de novo Artur à primeira fila. Vai encostar-se ao palco, tira do bolso um toco de vela e uma grande caixa de fósforos. Risca um fósforo, acende o toco deixa correr um pouco de estearina e cola a vela mesmo à frente do palco. Depois, arruma a caixa no bolso e vai sentar-se num lugar que até aí ficou vazio.) Vamos esperá-lo. Vamos esperá-lo o tempo que for preciso. Vamos forçá-lo a dar a cara, a bolsa e a vida. Vamos esperar que ele se denuncie e que se lixe e que se dane. Vamos obrigá-lo a vir, a mostrar o que não vale. Os olhos mentem, como já se viu. As palavras enganam, quando postas na boca errada. Os ouvidos fazem cera desde que as sereias cantam. Mas o fogo nunca mente.


A chama chama a verdade. Resulta sempre. Não falha. Enquanto arde, arde. Arde de verdade. Quando se apaga… Artur suspende a palavra como se vigiasse a chama. O público imita-o e observa a chama até esta se apagar. FIM


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.