Daniel schmid entrevista

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DANIEL SCHMID ENTREVISTA Regina Guimarães — No âmbito desta mostra de cinema são exibidos dois filmes teus. Será que nos podes apontar alguns traços distintos do cinema suíço? Para ti existe realmente um cinema suíço num quadro de identidade nacional? É um cinema relativamente desconhecido em Portugal, um pouco como acontece com o cinema português no estrangeiro. Daniel Schmid — Nestes tempos em que se fala em cinema ameaçado, para mim o cinema suíço é sobretudo um cinema de autor. Claro que o cinema de autor é uma actividade ameaçada em todos os sítios do mundo, principalmente nos países pequenos. Falo dum cinema independente, de filmes com uma assinatura. O cinema suíço existe porque há autores independentes que passam pela Suíça. A Suíça é ponto de partida para a obtenção de certas condições de produção, graças a certas instituições, nomeadamente a televisão suíça sem a qual já não seria possível realizar filmes. Não há identidade cultural na Suíça; aliás não há cultura na Suíça. Talvez o chocolate seja a cultura suíça. Há várias regiões e várias línguas: fala-se italiano, fala-se alemão (e a parte alemã vira-se sempre para a cultura alemã), fala-se francês (essa outra parte voltase para a França). O próprio Godard é... suíço. Eu, de certa maneira, represento uma região que antes de mim não estava representada. Uma zona onde se fala uma quarta língua, o romanche, uma espécie de latim vulgarizado. A minha língua facilita o entendimento de todas as línguas de origem latina. Por exemplo, não falo português mas percebo. A minha terra é uma região de montanhas, de traficantes, de contrabando. De algum modo, considero-me um contrabandista. Se tiver um passaporte, será dos Grisons, coisa que não existe. É o tal sítio onde há 40.000 pessoas que falam essa língua. E situo-me na tradição duma cultura regional. Há artistas oriundos da nossa região. O maior, neste século, ao nível de toda a Suíça, vem do nosso vale, é o escultor Giovanni Giacometti. Mas sempre trabalhou no estrangeiro, viveu em Paris. Pessoalmente assumo-me como autor de cinema. Acho que o cinema é uma linguagem internacional. Por exemplo, no Japão onde eu tenho um público, onde todos os meus filmes foram distribuídos, certas obras da minha autoria foram sucessos comerciais: HÉCATE e JENATSCH. Este último saiu com trinta cópias, coisa que nem de longe tenho na Suíça. Quando vou ao Japão, ninguém me pergunta pelo cinema suíço porque para os japoneses eu venho da Europa. E dentro da Europa a minha terra é os Grisons e faço parte do cinema de autor que se produz neste continente. O privilégio de poder continuar a realizar filmes — porque depois do primeiro é preciso fazer o segundo — devo-o à França porque a minha primeira fita, ESTA NOITE OU NUNCA (que quase passou desapercebida na Suíça) estreou em Paris. E foi graças ao eco da crítica francesa e do público em Paris que consegui continuar. É engraçado que na Alemanha, por exemplo, sou conotado com o cinema latino enquanto que em França sempre me relacionaram com o cinema alemão. A minha formação é a juventude passada nos Grisons, depois a frequência da Escola de Cinema de Berlim e por fim uma estada em Paris. Sobre o cinema suíço, diria apenas que temos acesso às mesmas portas do ponto de vista da produção. R. G. — Há pouco dizias que o cinema é uma linguagem universal... D. S. — Um filme regional, se for bom, funciona. Acho que os cineastas devem contar histórias que lhes pertencem. Doutro modo, andamos todos a fazer o DALLAS. As minhas origens são os Grisons, um sítio bem preciso. De certa forma, todos os autores falam da infância. E na origem de qualquer trabalho criativo está sempre um retorno à infância, à formação. Em todo o caso, nos meus filmes, constato que há constantemente um processo de flash-back, de procura da infância. Mas, por outro lado, a minha posição cultural não é fixa: sou um contrabandista entre o norte e o sul da Europa, entre a realidade e a ficção. Entre aspas no tocante à realidade porque não sei bem o que isso quer dizer. Nunca fiz diferença entre o documentário e a ficção. Saguenail — De um país pequeno como a Suíça — onde a priori a situação do autor será porventura mais difícil — conhecemos vários cineastas: o Tanner, o Soutter, Goretta, etc. Vários nomes ocorrem imediatamente em torno da mesma geração. Em Portugal, passa-se um pouco a mesma coisa: Botelho, Rocha, Monteiro, Oliveira (apesar de não serem todos da mesma geração).


Já em França o panorama é diferente. Onde está o pós-Nova Vaga? O Tavernier? No fim de contas, não será antes uma sorte pertencer a um país pequeno? D. S. — Anteontem participei numa discussão sobre cinema transmitido pela televisão suíça. Havia justamente o Goretta, o Soutter, etc. E falou-se do vazio ao nível da geração que veio depois de nós. Continuamos a jogar a carta daquilo a que se chamou o «Novo Cinema Suíço» mas a gente é a mesma. Somos nós e onde estão os novos? S. — De facto, a nível europeu, a tua geração caracterizou-se pelos muitos contactos que os cineastas estabeleciam entre si: o Fassbinder, o Bertolucci, etc. Contactos que tendiam a definir projectos de cinema de autor. Na nova geração as pessoas estão mais isoladas. R G. — Eu daria duas achegas. Primeira: o projecto global deixou de ser o cinema de autor. Segunda: rareia o discurso sobre o cinema, que foi factor de união (ou debate) na geração anterior. D S. — No outro dia, dizia-me o Bertolucci que os novos vanguardistas vêm de Hollywood. O David Lynch, por exemplo. Eles vêm precisamente do sistema onde se estrangularam os autores. É verdade o que vocês dizem. Há vinte anos, quando alguém queria fazer um filme, havia um dinamismo de grupo. Entre nós era a competição mas também o desafio, a provocação. Muitas zangas e disputas entre nós, mas para fora éramos muito solidários. Eu tenho uma cadeira na Academia de Viena e o meu trabalho de professor permite-me constatar que o isolamento dos jovens é grande, cada qual anda a «bricoler» no seu canto. Falta o sentimento de família que ligava as pessoas do cinema e que muito nos ajudou. Éramos uma família internacional e sentíamo-nos em casa. O Paulo Branco, por exemplo, é um indivíduo que sempre pertenceu a essa família. A vida separa os caminhos mas quando nos voltamos a encontrar achamos as mesmas referências, as mesmas cores, as mesmas cumplicidades. S. — Tenho a impressão de que o sistema de distribuição mudou e as possibilidades já não são as mesmas. Dantes em Paris era possível estrear um filme feito com poucos meios, dum realizador desconhecido. Agora não. D. S. — Recordo-me da estreia de ESTA NOITE OU NUNCA ou PALOMA. Foram filmes muito empurrados pela crítica que nesse tempo ainda existia. Havia homens como Marcorelles, como Bory, etc. E no princípio é tão importante ser ajudado. A crítica encorajou-me imenso. Agora a actividade crítica quase desapareceu. A estreia de JENATSCH foi totalmente diferente. Tenho uma distribuição, dinheiro como nunca tive, mas ao mesmo tempo tenho muito menos porque já não há fogo sagrado. Aparece um encarregado das relações com a imprensa que vem dizer que há uma entrevista na televisão, muito importante, a tal hora, com tal índice de audiência. E lá se vai para o estúdio onde estão os jornalistas que têm perguntas. Mas antes de fazerem as perguntas, dizem-nos: «Olhe, senhor Schmid, lamentamos imenso mas não tivemos tempo para ver o seu filme». A primeira vez que tal me aconteceu, fiquei revoltado. Mas acabei por aceitar porque percebi que é completamente absurdo. É quase surrealista porque depois fazem perguntas como se tivessem realmente visto o filme apesar de toda a informação que possuem vir duma página de pressbook. Estamos numa época em que toda a gente diz que a política e os jornais não têm importância nenhuma. É preciso é passar na televisão, num programa com grande índice de audiência. Então acaba por ser uma alienação terrível e nem sequer quer dizer que o filme venha a ter mais sucesso. Não tem de facto nada a ver. A tua entrevista decorre paralelamente à de outra pessoa que escreveu um livro de receitas e de um terceiro sujeito que subiu pela quinquagésima vez o monte Everest. O teu discurso torna-se anónimo, inofensivo porque pode ser trocado com o do parceiro. Tudo deixa de fazer sentido. R G. — Actualmente a crítica francesa fala de todos os filmes e diz de todos a mesma coisa aproximadamente. Nenhum sector da crítica tem estômago para defender radicalmente um filme ou atacar frontalmente outro. Portanto, o público cinéfilo deixou de ser sensível à intervenção da crítica. D. S. — Tenho amigos em Paris que chegam ao extremo de reagir negativamente. Quando o Libération diz muito bem dum filme, não vão vê-lo. É um jogo. Gostava de repetir que há uma falta terrível de fogo sagrado. Não sei se é só no cinema. E é certo que, em todos os domínios, a par do


isolamento, se assiste a uma aposta na pretensa «transparência» dos media. Há toneladas de emissões sobre o cinema na França e na Alemanha, mas não quer dizer que as pessoas vão ao cinema. Há centenas de festivais — todos os dias há um festival num ponto do globo — com milhares de visitantes (em Locarno é quase impossível arranjar lugares) mas o acontecimento é o festival e não os filmes que lá se mostram. Aliás os distribuidores já nem querem dar os filmes aos festivais porque dizem que o escasso público se esgota com a projecção nos festivais. Mas eu não vou desistir e vocês não vão desistir e nem sequer nos vamos queixar porque ninguém é obrigado a apaixonar-se pelo cinema. Não estamos propriamente num Goulag. Eu faço cinema porque não sei fazer mais nada. Infelizmente. Talvez pudesse conduzir um táxi em algumas cidades que conheço bem. S. — Falaste-nos em Giacometti. Os teus filmes, ao nível da inspiração, estão próximos do género fantástico e do domínio surrealista. É uma via muito pouco explorada, pelo menos seriamente. Como é que consegues impor essa estética à produção? Actualmente o surrealismo suscita desconfiança... D. S. — Absolutamente. R. G. — Não há quem censure essa tua escolha? D. S. — Talvez eu tenha um olho um tanto surrealista. E na minha vida houve muitos acontecimentos que posso classificar de surrealistas. Tenho problemas com aquilo a que se chama realidade porque não sei o que é. Realizadores como Buñuel marcaram-me e influenciaram-me muito mais do que cineastas como Godard. Quando o Bernardo (Bertolucci) me veio visitar lá na minha montanha, discuti isso com ele. O Bernardo diz que foi muito influenciado pelo Godard, no princípio, e que levou muito tempo a distanciar-se. Eu devo mais ao Buñuel e ao cinema expressionista alemão dos anos 20. Contudo é sempre difícil detectar na nossa própria obra todas as contribuições exteriores. Situá-las. Posso dizer aquilo que me tocou, aquilo que tentei «adivinhar». Aliás agora tenho menos teorias do que há dez ou vinte anos. Quando leio textos que escrevi e publiquei (ou até livros) verifico que fazia afirmações muito peremptórias que perderam o sentido. Enganei-me tantas vezes — e é bom a gente enganar-se — que cheguei a um ponto em que reduzi a teoria ao mínimo. Tenho problemas em teorizar à queima-roupa. Escrevo argumentos. É obrigatório escrever argumentos para poder passar pelas comissões burocráticas que avaliam os projectos de filmes e que defendem a sua própria existência exercendo o poder pela negativa. Uma das tácticas é deixar o «processo» arrastar-se muito tempo porque doutro modo ninguém acredita na existência e na importância dos burocratas. Depois de escrever o argumento, o meu trabalho é esquecê-lo. Quando começo a rodar, tenho de dar tudo por tudo para esquecer o argumento. A criação, quando é fixada (num papel, por exemplo), deixa de ter consistência. Nos filmes que fiz — e devo confessar que me custa às vezes vê-los —, as coisas que ainda me agradam são sempre coisas imprevistas, coisas que não estavam escritas no argumento, coisas que aconteceram pela graça de Deus e dos amigos e da minha disponibilidade, da minha abertura, da minha transparência. Mas não estava escrito, não passou pelas comissões, não teve a benção do aparelho burocrático-cultural. E nos tempos que correm, é cada vez mais difícil exercer esta liberdade, esta capacidade de desviar, esta vontade de saltar para o desconhecido. O aparelho burocrático, as estruturas da produção existem para vigiar. Há sempre o sujeito que aparece para lembrar a sequência 153 que é preciso voltar a rodar, porque no dia anterior não saiu bem, por causa da chuva, porque a câmara tinha um defeito, por causa do «flipanço» duma actriz que não sabia o texto, logo é necessário filmar a 153 antes de fazer a 240; e o tipo não nos larga a perna, arregala os olhos, não deixa espaço de manobra. E o realizador já nem sequer tem vontade de repetir a 153 porque é uma cena escrita há anos, que já passou por todas as comissões e que deixou de fazer sentido. O drama é que a produção se serve do que está escrito para ordenar e regulamentar o processo de criação. O quarto que estava no argumento é diferente daquele onde se está a rodar. A mãe entra no quarto e pergunta: «Meu filho, porque mataste o teu pai?». Acontece que a porta por onde devia acontecer a entrada de cena não existe. A actriz não consegue dizer o texto porque entende que não bate certo. O pai está vivo, logo a frase não tem pés nem cabeça, só que a produção ignora tudo menos o número 153. A situação de luta entre o realizador e a produção não é absurda, é grotesca. Portanto, é preferível trabalhar como


em Hollywood, com um argumento manco mas com um aparelho que funciona, a aturar a produção europeia que pretende imitar o sistema americano. Tenho colegas que fazem a concessão de rodar em inglês e os americanos desfazem-se a rir com o resultado porque. Em geral, é desastroso. Imitar o inimitável carecendo de estruturas comparáveis? Porque não fazer exactamente o contrário? Uma mulher-a-dias que andou a limpar um apartamento decide ir de porta em porta oferecer os seus serviços porque ficou provado que sabe fazer aquele trabalho. Imaginem que até acabou por receber um prémio nacional por ter conseguido limpar e dar lustro na perfeição. O júri estrangeiro ficou impressionado com a transparência dos vidros, o brilho da cera, a brancura da casa de banho. E não faltou quem dissesse: «Esta mulher-a-dias suíça limpa como ninguém!». O caso é que essa mulhera-dias terá certamente a possibilidade de ser contratada para limpar o 11º apartamento, enquanto o autor de filmes nem sempre pode continuar a trabalhar na sua área. A verdade é que o cineasta não está exactamente na mesma situação que a mulher-a-dias porque cada filme significa começar tudo do princípio. Vai ter de explicar à comissão que tem uma maneira muito própria de limpar, uma forma pessoal de dar brilho, etc., e, como se isso não bastasse, acaba por escrever 200 páginas sobre a sua arte de limpar apartamentos. Para no fim de contas limpar a casa (se arranjar contrato) dum modo completamente diferente. R. G. — Ocorre-me uma pergunta que remete aliás para um problema que toca de muito perto o cinema português. É a questão da língua original dos filmes. Existe um grande temor (que esconde um complexo de inferioridade) em relação à língua na qual os actores se exprimem. É ponto assente para muita gente ligada à produção que os filmes não têm mercado internacional se forem falados em português. A tentação é optar pelo francês ou pelo inglês, como se isso não tivesse repercussões na estética geral do produto. Achas que é uma escolha defensável ou deplorável? D. S. — Não é deplorável, é escandaloso. Um filme como UM ADEUS PORTUGUÊS do João Botelho — porque é que não foi mostrado na Suíça? Porque é que não teve uma distribuição normal em França? Esse tipo de filmes têm um público potencial considerável e há vinte anos atrás teriam sido tratados doutra forma. Infelizmente estamos numa época de estandardização; como tudo passa pelo nivelamento, tudo se torna igual. Talvez neste contexto eu continue a ser um privilegiado porque sou oriundo dum país do centro da Europa, um país de cruzamento onde se falam várias línguas. Claro que não temos um cinema do nosso vale para as 40.000 criaturas que falam romanche. São essas que melhor compreendem o meu último filme. A multicultura onde fui criado facilita não só as trocas mas uma expressão plurilingue. Eu realizei filmes em italiano, por exemplo. Não foi uma decisão forçada, não foi fruto duma estratégia. Foi uma escolha em função do tema, possível apenas porque me sinto à vontade nas três línguas nacionais. Se rodar em alemão, automaticamente terei mais hipóteses no mercado germânico. Se o filme for em francês, abrem-se mais portas em França. Agora, pessoalmente, acredito que, apesar de todas as dificuldades das minorias, devemos rejeitar a solução «eurofilme em inglês». É um falso caminho. É virar as costas aos verdadeiros problemas. R. G. — Não é por chauvinismo, mas as consequências nefastas parecem-me evidentes: cedências no tocante ao casting, degradação da relação entre o realizador e os actores... para só mencionar as mais óbvias. É um nivelamento do «afecto» dos filmes. D. S. — Estou a lembrar-me de um grande amigo meu, o Werner Shroeter, que não consegue filmar há sete anos. A única maneira que ele arranjou, este ano, para continuar foi um grande euro-projecto baseado num romance muito célebre. Então teve de contratar a lsabelle Huppert que recebe um milhão de francos suíços de cachet (cem milhões de escudos). É grotesco. Com esse dinheiro Werner Shroeter fazia dez filmes há quinze anos. E é obrigado a escolher essa actriz porque sem ela a França não entra na produção. Continuamos a viver com o mito das stars embora ele já não funcione. A Huppert e a Adjani não são a Betty Davis e a Greta Garbo. Elas não passam de pequenas lendas inventadas por uns funcionários da imprensa e alimentadas pelo meio muito fechado e doentio do cinema em Paris. É meia dúzia de bares, outros tantos restaurantes, um punhado de agentes e alguns funcionários da televisão e da Gaumont. Essa gente impõe a Adjani, a Huppert, o Depardieu, sempre os mesmos em França, há mais de dez anos, e só servem para criar tédio. Porque, se formos pelas receitas de bilheteira, se examinarmos a adesão do público,


constatamos que os filmes com sucesso nesta última década em França foram feitos, em regra geral, com desconhecidos. Mas mesmo assim há quem queira alimentar o mito. Tudo isto mostra que o sistema já não funciona. S. — Gostava de te fazer algumas perguntas mais relacionadas com os teus filmes. Nos teus filmes há sempre personagens que funcionam como intermediários que permitem passar dum nível para outro. Por exemplo, os músicos em ESTA NOITE OU NUNCA... Tenho a impressão de que cada vez mais tu vens atribuindo esse papel às mulheres. Em JENATSCH isso é particularmente evidente. De certa forma, as mulheres adquirem uma importância cada vez maior e o papel que lhes cabe é cada vez mais preciso. São intermediárias que permitem aceder a outra dimensão. D. S. — Tenho medo de teorizar sobre isso mas, para mim, o cinema é algures e sempre mulheres bonitas. Eu venho do matriarcado. O meu pai morreu quando eu era muito pequeno. Acho que a mulher tem mais transparência do que o homem. No écrã também. E pelo olho da câmara também. Aliás posso colocar o problema ao contrário. Acho que não há grandes actores, só há grandes actrizes. E um grande actor é sempre uma grande actriz ao mesmo tempo. A bissexualidade de Marlon Brando e de outros grandes actores é aparente. O cinema no feminino — em todo o caso o meu cinema — tem mais transparência. Claro que é uma opinião muito pessoal. Por outro lado, gosto muito de trabalhar com mulheres. Eu sei que isto não responde cabalmente à tua pergunta... Adorava fazer um filme como o Cukor — WOMEN. Um filme só com mulheres em que o homem só está como ausente. Está do outro lado da porta mas nunca o vemos. Está ao telefone. S. — Ontem era a mãe que estava ao telefone. Nunca a víamos. D. S. — Porque eu tinha uma mãe que era assim. E o co-argumentista com quem trabalhei, também. Enquanto andávamos a escrever o guião, sabíamos que, se o telefone tocasse, era a mãe dele. A minha já morreu. Estávamos enterrados na montanha, ninguém sabia onde parávamos, mas, mal tocava o telefone, era a mãe dele a dar sinal. Então, a dada altura, decidimos que isso tinha de aparecer no filme. S. — Em JENATSCH, pela primeira vez, propões uma chave convencional para o mistério: a possibilidade da reincarnação. D. S. — A palavra «reincarnação»... S. — Sim. Na cena do banho turco. D. S. — A palavra não é pronunciada. S. — Mas há uma teoria enunciada, digamos. Nos outros filmes não havia a chave. D. S. — O homem no banho turco diz: «Eu vivo no futuro e vocês estão no passado». Quer dizer que eles fazem parte duma vida anterior à da personagem. S. — Certo. Mas se quiseres, pela primeira vez propões uma chave racional ao espectador embora remeta para o domínio do fantástico. D. S. — Houve muita gente que me escreveu depois da saída do filme perguntando-me se acredito na reincarnação. Mas, de facto, não há nenhuma alusão directa ou comprometimento. É um jogo. Pessoalmente, não acredito na reincarnação. S. — Seja como for, é uma pista que, inesperadamente, forneces. Até agora, os saltos no tempo e no espaço eram dados como parte do mistério. D. S. — Mas vejamos a coisa por outro prisma. O protagonista é um homem pouco interessante, absolutamente mediano, que trabalha num jornal, que leva uma vida igual à de muitos jornalistas, pouco empenhado, um tanto mundano, com um pé na publicidade, talvez, ligado a revistas de moda, provavelmente. Um sujeito sem interesse a quem acontece uma coisa muito interessante. Uma única vez na vida. E aí é um pouco como em HÉCATE: personagens desinteressantes que se tornam interessantes porque lhes acontece algo de extraordinário. A pista, se é que a dou, é uma pista baralhada: será que aquela história lhe acontece realmente? Será que ele sonhou? Será que o fim do filme, quando o carteiro toca e traz o guizo, coincide com o princípio da história de um homem que tem um sonho no fim do qual aparece um carteiro com um objecto estranho? S. — Mas para mim o fim é justamente uma desdramatização. D. S. — Quando rodei o filme, não tinha fim. Inventei-o no último dia da rodagem.


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S. — Mas o efeito da esferovite a cair é um pouco como se as neves de antanho cobrissem o objecto estranho. Até JENATSCH os teus filmes apresentavam o regresso à normalidade e como uma experiência atroz. Esta hipótese de fim, a possibilidade de tudo se resumir a um pesadelo para esquecer, cobrir com esferovite, é mais suave. D. S. — Mas será que vai haver esquecimento? Será que não vai recomeçar tudo? S. — Não sei. A proposta é menos dramática. D. S. — O último olhar é um olhar de medo da Christine Boisson. A encomenda chega, é desembrulhada e o objecto faz aquele ruído inquietante ao cair. Fica o casal mas talvez ele enlouqueça. Eu sempre pensei que a história podia recomeçar. O fim foi inventado no último dia e eu não queria acabar com um assassínio. Era um desenlace demasiado definitivo. Trata-se duma criatura que faz uma investigação sobre uma pessoa que viveu há 300 anos e cuja vida nem sequer a fascina; mas, de repente, entra na história passada e a história do outro passa a ser a sua própria história; recusa essa experiência, mas a ficção vai tão longe que ele se torna o assassino, o que implica desaparecer no século XVII. Ora eu não queria esse fim, essa interpretação. Queria a ambiguidade de um regresso ao presente e, paralelamente, a possibilidade de tudo recomeçar. Como em LA PALOMA, deixar em aberto a hipótese de tudo ser fruto da imaginação sem contudo o afirmar peremptoriamente. S. — Só que a explicação pelo imaginário é de ordem mais lúdica do que dramática contrariamente ao que acontece em LA PALOMA. D. S. — Talvez. Não sei. O cinema permite que cada um veja o que quer ou o que pode. Se é isso que vês, aceito. Mas acredita que não sei. Veio intuitivamente. Aquele objecto que o espectador associa ao regresso do passado, que a mulher atira à água mas que aparece de novo — e isso prova que a intrusão do passado no presente nada tem a ver com o objecto — fascinava-me. Aquele objecto que cristaliza a atenção do espectador, muito embora logicamente nada tenha a ver com os acontecimentos, não podia ficar no fundo do rio em Zurique — tinha de voltar, absurdamente, pelo correio. Porquê? Não sei. Quando me pedem explicações racionais, fico embaraçado. Na altura pareceu-me uma solução. Talvez não ideal, mas possível porque não definitiva. Em geral, nos meus filmes, o fim é sempre o princípio. Volta-se ao ponto de partida. Os filmes são o tempo de um olhar. Fecho os olhos e vivo uma vida inteira, como uma pessoa que tem um acidente de automóvel e revive toda a sua vida em dois segundos. Voltar a abrir os olhos: tudo e nada aconteceu. S. — É uma questão de tom. Este filme é mais doce. D. S. — Talvez... Reparei que a vossa revista traz um artigo sobre San Sebastian. Estive no Festival de San Sebastian e vi a Betty Davis. Vi-a no último dia porque eu fazia parte do júri. Ela era velha e má. Ficou o tempo todo fechada no quarto e metade da equipa do Festival só tratava dela. Só saiu do quarto para a cerimónia final. Estávamos no mesmo andar. Ao que parece, de vez em quando dava uma fugida até ao corredor para ralhar com toda a gente. Formidável. Tivemos um episódio terrível de confronto entre duas estrelas. A Ingrid Caven e o Otar losseliani estavam no júri comigo. Havia também o Konchalovski. Havia uma outra estrela convidada, uma grande star do passado. Na época chamavam-lhe «a noiva da América Latina»: Libertad Lamarque. Foi expulsa da Argentina pela Eva Péron que tinha ciúmes dela. Era cançonetista de tango e actriz de melodramas. Foi a San Sebastian e também tinha mais de oitenta anos. Estávamos no lobby do hotel, no dia da cerimónia, à espera dos carros que nos iam transportar para o palácio do Festival. Chega a estrela latina. A Ingrid tinha rosas na mão. A Libertad sorri. E nós desfazemo-nos em elogios e homenagens. Ela continuava a sorrir, gentilmente, como uma senhora de idade. As flores eram-lhe destinadas. De repente, a porta do elevador abre-se e aparece a Betty Davis. Eu e a Ingrid voltámo-nos e virámos costas à estrela latina, interrompemos a conversa no meio dum cumprimento como dois groupies adolescentes, prontos a atirarmo-nos para o chão. Então a Ingrid teve um gesto terrível: atirou uma rosa ao chão na direcção da Betty Davis. Percebemos imediatamente a inconveniência do gesto porque a Betty Davis (que morreu uma semana depois) não podia curvar-se para apanhar a flor. A Betty Davis parou, viu a rosa, olhou para a rosa com muito ódio e pisou-a. No fundo não podia agir doutro modo. E a nossa homenagem só teria tido sentido se tivéssemos atirado dúzias de rosas. Portanto, ela marchou em frente e pisou a rosa com o tacão. Pronto, é uma história de estrelas.


R. G. — Mas tu dizes que já não há estrelas!?! D. S. — Há o conceito de estrelas. Mas o star-system acabou. A ideia ficou. Nesse sentido, como diz o Andy Wharol, hoje em dia toda a gente é estrela durante 15 segundos. Cada homem ou mulher é uma estrela, se for tratada como uma estrela. Toda a gente está pronta para desempenhar o papel. Na época das stars, os filmes não eram dos realizadores. Eram das stars. Nem título, nem autor, só o label da actriz: «Betty Davis picture». Isso acabou. S. — Porque que razão tem havido tantos cineastas atraídos por Portugal? Ruiz, Tanner, Shroeter, Fuller, tu... o acaso não existe... D. S. — E eu quero muito que a minha produção em Portugal vá para a frente. Quero rodar aqui a história da minha infância passada num velho hotel. O hotel ainda existe na Suíça — é o hotel da minha família — só que sofreu muitas transformações. Actualmente, está aberto todo o ano. É o Hotel Liberty, muito bonito, mas já não é o hotel da minha juventude. Aqui em Portugal ainda se encontra um cheiro à Europa antiga que desapareceu completamente no meu país. O meu filme conta uma história que se passou há quarenta e cinco anos. São cheiros, são cores que já não se encontram nos nossos países restaurados, asseptizados. Agora tudo é imitação. O falso Hotel Liberty é uma imitação do Hotel Liberty. Mas isto é apenas uma parte daquilo que me atrai em Portugal. Portugal é um país culto, onde é possível encontrar pessoas (como vocês). Em Espanha não encontrei nada disso. O que me toca e que também impressionou muitos dos meus amigos é a presença duma cultura que está em vias de extinção por todo o lado. Talvez o fenómeno se prenda com a situação do país, com a necessidade de fazer esforços, de lutar para existir. Come-se muito bem em Portugal. Isso tem a ver com um sentido da vida que nos fascina. Falo por mim mas sei que Werner Shroeter pensa o mesmo. O filme que ele fez em Portugal — O REI DAS ROSAS — não correu nada bem em termos de público. R. G. — Um filme muito belo e quase insuportável. Eu vi. D. S. — Mas ninguém viu o filme. Eu fui co-produtor. O filme fez-se ou teve de ser feito para a Magdalena Montezuma que morreu três dias depois do fim da rodagem. A realização do filme prolongou a vida dela. Deu-lhe mais seis meses, foi um milagre do ponto de vista médico. Ela tinha metástases por todo o lado, ninguém pensava que era possível ela sobreviver tanto tempo. Resistiu porque queria fazer o filme. S. — Quando pela primeira vez vi filmes teus, senti que havia uma forte relação com a obra de Shroeter. Uma certa maneira de jogar com os tempos de pausa. Por exemplo no BEIJO DA TOSCA. D. S. — Conhecemo-nos muito antes de fazermos filmes e éramos ambos fãs incondicionais da Maria Callas numa época em que toda a gente ouvia os Rolling Stones e o Beatles e em que toda a gente fazia cinema esquerdista. Nós éramos totalmente contrários a tudo isso. Não era uma questão de oposição. Não fazíamos cinema de direita, mas ninguém se interessava pelo nosso projecto de cinema. O ritmo, a estilização, a maquilhagem eram aspectos que desejávamos explorar. Essas preocupações estéticas só se generalizaram mais tarde. E desde o princípio sempre achei — e continuo a achar — que é o cineasta alemão mais importante dos últimos trinta anos, o que de todos mais marcou as últimas gerações de criadores. Influenciou o Fassbinder, por exemplo, mas não só. Alguns talvez nem tenham consciência do peso de Shroeter. Penso que ele foi muito mais importante do que Rainer. Rainer era uma personalidade impressionante. Morreu há quase dez anos e sinto mais a falta da personagem dele do que dos filmes. A personagem era absolutamente extraordinária, totalmente «out of the line». Com a morte dele sentimos que o tédio é maior. Era uma pessoa eléctrica. Entrava em qualquer lado e havia electricidade no ar. Por esse lado humano também influenciou muita gente. A mim disse-me: «Tu nunca hás-de fazer filmes. Para ti na vida tudo tem de ser fácil. Não sabes o que fazer um filme significa». Eu tinha na altura 25 anos e disse para comigo: «Vais ver!». A atitude dele provocou-me. Portanto devo-lhe muito e estou-lhe grato por me ter dito que eu não era capaz no momento certo. R. G. — Onde vejo uma grande diferença é ao nível do humor dos filmes. D. S. — Eu sinto-me mais latino.


S. — Quando falei em parentesco não insinuei identidade. Nenhum dos teus filmes poderia ter sido realizado por Shroeter e reciprocamente. D. S. — É muito importante que fales dele porque nos tempos que correm poucos dele se lembram. Não lhe deram o lugar que merece. No cinema alemão é considerado um marginal. Mas sem ele não havia nem Fassbinder, nem Syberberg, nem muitos outros. S. — Quando era muito novo, parti para África e viajei durante vários anos. No dia em que regressei a França, cheguei a Paris e mal pus os pés na cidade vi anunciada a projecção de A MORTE DE MARIA MALIBRAN de Werner Shroeter. Saí do cinema banhado em lágrimas. É muito raro em mim uma reacção desse tipo. D. S. — Foi um filme em que fui assistente, motorista, tudo e mais alguma coisa. Ele estava na câmara e na encenação e eu tratava do resto. Éramos uma equipa de duas ou três pessoas. S. — Isso é uma coisa que já não existe. Se te propuseres a pessoas que conheces e/ou estimas como assistente, os cineastas recusam por tu também seres realizador e portanto incapaz de te cingires ao trabalho de assistente. O assistente tem que corresponder a uma imagem fantasmática de «pau mandado». Tenho a impressão que nem sempre foi assim. O desejo de partilhar uma experiência dirigida por outrem parece-me normal, legítimo, necessário. D. S. — Aliás, nós vivíamos juntos. Partilhávamos um apartamento em Munique. Havia eu, o Werner Shroeter, a Ingrid Caven, a Magdalena Montezuma e o Fassbinder que saltava dum lado para o outro. O Fassbinder era muito ciumento. Ainda estava casado com a Ingrid mas já tinha começado o processo de separação. Vivemos juntos no apartamento, filmámos no apartamento. Comemos, dormimos, fizemos de tudo juntos. E a Candy Darling que representava no filme também morava connosco. O centro de produção era a nossa cozinha. Não havia burocracia e dispensávamos perfeitamente a organização. Como eu tinha um carro, fazia de motorista. S. — A emoção do filme também vem daí, tenho a certeza. D. S. — É um filme muito belo. R. G. — Hoje em dia a pretensa eficácia passa à frente de tudo. Os resultados é que nem sempre são eficazes, tantas vezes, despojados de cor, de força e até de unidade. S. — Vi o teu filme com um grupo de cinéfilos portuenses. Para quem não conhece o teu cinema e é confrontado com JENATSCH, a aproximação com Shroeter não é evidente. Talvez te tenham comparado com Del Monte ou por aí. Pelas razões que atrás apontei. Mas um filme também é o momento de o ver, o tempo da visão. D. S. — Foi o filme que mais sucesso teve na Alemanha, na Suíça e no Japão. Mas já me sinto muito longe dele. S. — É um filme menos perturbante. Os esquemas de viagem no tempo que aparecem na fita foram muito banalizados pela literatura. Penso concretamente em Cortazar. Passaram a esquemas de referência. R. G. — Falaste da busca em torno da infância e mencionaste a experiência da memória panorâmica ligando isso à prática do cineasta. Qual a relação entre o primeiro movimento — exploração da infância — e o segundo — balanço do vivido. Não terá a ver, ao contrário do que dizes acerca do fim dos filmes, com uma tentação de criar algo de definitivo? D. S. — Em inglês diz-se que «somos todos passageiros a bordo do Titanic». Estamos à beira do naufrágio. Há uma coisa que vem faltando cada vez mais. Por exemplo, estive no júri do Festival de Berlim, vi imensos filmes. É cada vez mais raro sair duma projecção e ter a impressão (independentemente de gostar ou não gostar do filme) de que o sujeito que fez o filme teve de o fazer. Estou ou não estou de acordo mas deu-me aquela impressão forte — isso acontece cada vez menos comigo. E penso que é uma coisa importante, urgente num mundo em que tudo é substituível, em que toda a gente conta tudo, em que se perdeu a noção da relação. Ver filmes em que sintamos a relação essencial, vital, urgente, imagens que são questão de vida ou de morte, faz imensa falta. É o que existe num filme como A MORTE DE MARIA MALIBRAN e talvez ESTA NOITE OU NUNCA porque foi um filme que na época realizei para não me suicidar. Escrevi o projecto e fiquei três anos à espera. A expectativa deu comigo em doido. Ainda andava na universidade e, de repente, decidi: depois de amanhã começo a rodar, sem dinheiro, sem


argumento... só preciso do décor (era um espaço ligado à minha família), de duas semanas e de alguns amigos. E os amigos que eu chamei trouxeram outros amigos. Vieram por acaso, nem sequer escolhi os actores. Havia o Renato Berta que eu não conhecia. Tinham-me indicado o nome de um cameraman em Genebra. Telefono para o número dele, alguém responde do outro lado e começo a ouvir a voz da Maria Callas. Disse para comigo: é ele. S. — E filmaste sempre com ele? D. S. — Sempre. O acaso não existe. S. — E com o Luc Yersin? D. S. — Com o Luc também. Embora às vezes tenhamos zangas terríveis... Insultamo-nos, rompemos, mas quando eu volto a rodar, ele não falta. Eles largam tudo. O Berta largou o Godard à última da hora. Telefono-lhe para lhe dizer que quero filmar daí a duas semanas. Ele responde-me que já está comprometido. Eu digo-lhe que a decisão é dele. Ele acaba por me telefonar para marcar encontro para o dia seguinte. R. G. — A propósito de filmes necessários e filmes não necessários. Também acho que se deve defender o estatuto e a liberdade do autor. Mas certos autores, na medida em que se tornam muito carismáticos e conhecidos, desatam a fazer filmes em função de uma obra anterior, de uma imagem de marca. Fiquei extremamente decepcionada com o último filme de Godard — cineasta que muito admiro — NOVA VAGA. Já me tinha acontecido um pouco a mesma coisa com o DETECTIVE. Tive a sensação de que o Godard fazia Godard. Paradoxal essa postura por parte de alguém que sempre procurou uma atitude provocatória. Agora ele parece concretizar apenas o que dele se espera. Penso que esse risco não vale só para o Godard. A hiperconsciência da autoria também pode bloquear a criatividade. S. — Isso é secundário. O verdadeiro risco é que hoje em dia toda a gente é autor. O Brecht dizia: «Talvez seja preciso abandonar o conceito para poder conservar a coisa». O que é terrível é que actualmente para os próprios produtores não há sinais de identificação para os autores. D. S. — É verdade. S. — E quando o autor é autor de mais não arranja produtor. R. G. — Pois. O cinema de autor é uma etiqueta que classifica produtos que entram num sistema de objectos classificáveis. S. — Há uma norma «autor». Talvez seja preciso arranjar outra: o «cinema de doente». R. G. — A máquina burocrática está a matar a espontaneidade do cinema. O autor tem medo e defende a reputação, defende o nome. Fecharam-no numa categoria demasiado «artista». D. S. — O cinema vem da feira. É preciso não esquecer. Era vizinho do bordel. S. — E quando nasceu, vivia com poucos meios. Tuta e meia. Hoje em dia o filme mais modesto custa uma fortuna. Em Portugal, chegou-se a uma aberração chamada «filme-padrão». Todos os filmes custam a mesma coisa. Orçamento único. Pessoalmente, gosto de exigir um certo investimento às pessoas que trabalham comigo. Nem tudo se traduz em dinheiro. R. G. — O filme só é sério se custar muito dinheiro. D. S. — Eu constatei que quanto mais dinheiro tinha, menos meios tinha ao meu dispor. É engraçado. O grande luxo era dantes, quando não tinha «cheta». O tempo era um luxo. Arranjava meios técnicos que custavam dez vezes mais do que os que consegui para JENATSCH. No futuro imediato, vou tentar perverter este sistema. S. — Voltando a JENATSCH, à questão da timidez do filme. A dada altura, não só Jenatsch mata o irmão da castelã, como o jornalista assiste a uma cena em que Jenatsch «fode» a castelã. E no entanto o jornalista não parece sentir ciúme. Os motivos do seu acto, enquanto assassino de Jenatsch, parecem mais condicionados por um destino a cumprir. D. S. — Pois. Não é um tratamento psicológico. Ele age assim porque entrou num papel que é o papel do assassino. S. — Mas enquanto jornalista também parece divorciado daquilo que está a viver. Tem um ar muito perturbado, tem dificuldade em fazer os gestos mais naturais mas só vemos os sinais de perturbação e não sabemos a natureza da perturbação: ignoramos se ele se sente atraído ou não.


A frieza da personagem torna o filme tímido. Porque se o jornalista tivesse ciúmes de uma criatura morta trezentos anos antes, passava para o outro lado, para o lado da loucura. D. S. — É mais como uma metáfora. Ou se quiseres como teatro «Nô» no Japão. É uma lei. Entra numa teia e nada pode contra ela. Não é psicológico. Não tem nada a ver com ciúme. Não é por ele ser louco. S. — Ontem uma espectadora dizia que a personagem não era convincente porque nada daquilo podia acontecer a um ser tão insignificante. Não é isso que me impressiona. D. S. — Tem mesmo de ser insignificante. S. — Não foi isso que me incomodou. Foi mais a insignificância das reacções dele a acontecimentos tão extraordinários. Só temos sinais convencionais — as dores de cabeça, a fuga... — não ficamos convencidos de que ele está a viver aquilo. Vou dizendo à medida que refresco a memória... D. S. — Eu já esqueci tudo. Entrevista conduzida por REGINA GUIMARÃES e SAGUENAIL


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