DAS TRIPAS CINEMA Cassavetes era um actor. Em certo sentido, pode dizer-se que todos os seus filmes são filmes de actor. Mas por isto não deve entender-se o mesmo que para os filmes de L. Olivier ou O. Welles, para quem a imagem cinematográfica é, antes de tudo, um enquadramento dentro do qual o «desempenho» pode ganhar um novo relevo, e ainda menos o que caracteriza P. Granier-Deferre (em França) ou Levinson, Babenco e Nichols (em Hollywood), em cujas obras a performance dos actores não logra dissimular totalmente a indigência formal e intelectual. Cassavetes centra os seus filmes sobre os actores e, a partir desta opção, inventa uma nova estética. O actor vive tanto o filme quanto o filme vive dele. Porque o actor é uma pessoa e é essa pessoa que Cassavetes incessantemente encurrala — o termo não é demasiado forte, pois o cineasta aperta o enquadramento de modo a aproximar-se o mais possível dos rostos, exigindo verdadeiras proezas do seu operador com a teleobjectiva. A ficção, enquanto convenção, explode e cede o lugar à descoberta da intimidade que o rosto transporta. Os actores não são para o cineasta somente actores, mas íntimos, amigos — Peter Falk —, mulher — Gena Rowlands — ou ego — Cassavetes representa em vários filmes seus, de MARIDOS a OS AMANTES. O estatuto de proximidade dos actores permite-lhe tocar a pessoa — já não «personagem» mas entidade complexa que o rosto camufla — e, a fim de captar esta complexidade, Cassavetes recorre à ficção obrigando os seus actores íntimos a saírem da pessoa, a traírem-se na personagem. Uma manipulação da intimidade desta ordem — Cassavetes não hesita em pôr a mulher a o papel da sua própria irmã, com toda a carga de incesto que a ligação conjugal real não deixa de acarretar (OS AMANTES) — não pode efectuar-se a frio e a embriaguez (MARIDOS, MORTE DUM BOOKMAKER CHINÊS, OS AMANTES) ou a loucura (UMA MULHER SOB INFLUENCIA, OS AMANTES) catalisam o aflorar de sentimentos e emoções secretos à tona do rosto. Cassavetes cria uma utilização inédita do cinema para registar os movimentos íntimos, quer dizer intraduzíveis, nem simbólicos — i.e., redutíveis a uma imagem — nem codificados — i. e., submetidos à ficção e votados a ilustrá-la. A ficção já não é um fim em si, mas um meio de estimular o inconsciente a manifestar-se fisicamente. A câmara de Cassavetes consegue apanhar movimentos visíveis do humano, do vivo, que escapam às palavras. Se os rostos ocupam o centro das imagens captadas por Cassavetes, estão contudo longe de constituírem o objecto único dos filmes — a este nível, distingue-se em especial de Dwoskin —: a pessoa que o cineasta cerca nunca é independente dum meio — Nova Iorque durante muito tempo, depois Los Angeles. Neste domínio também, o realizador escolhe os lugares íntimos — aqueles que o cinema habitualmente põe de lado —, filmando uma população cuja «insignificância» é apenas aparente, ruas, praças, bares, aproximando-se ao longo da sua obra dos espaços privados onde ele próprio se põe a nu — a casa que constitui o cenário principal de OS AMANTES é a sua própria residência. Assim, trabalhando à margem da «máquina» de produção, desloca o cinema do estúdio para casa, do impessoal para o íntimo. Cinema marginal, «familiar», mas realizado por um cabotino que com destreza manipula as convenções do cinema e com desprezo as contorna — i.e., não procura imitá-las ou competir com elas, antes lhes contrapõe constantemente uma verdade (pois a intimidade penetrada exprime uma verdade que lhe é própria) que ultrapassa a ficção: cf. «Glória» que desarma os assassinos no seu encalço. Cinema íntimo, nos antípodas do intimismo europeu visto que os actores são obrigados a inventar perante a câmara personagens que violam a sua privacidade e os impedem de se refugiarem atrás da máscara do ego necessariamente mais ou menos autobiográfico. Cassavetes reúne para os seus filmes actores excepcionais que vão até ao limite da ficção de si mesmos. À cabeça, Gena Rowlands forçada a inventar sentimentos num contexto em que o amor nunca pode ser confessado. Pois o amor transbordante está no centro de todos os filmes e traduz-se antes de tudo, pela impossibilidade da separação — cf. MINNIE E MOSKOWITZ —; todas as partidas não passam de veleidades — cf. MARIDOS—; o drama de GLÓRIA prende-se com a necessidade de renunciar a um passado para enfrentar o desconhecido. O amor modifica toda a realidade envolvente e revela a sua insuspeitada agressividade — os vizinhos e os transeuntes em MINNIE E MOSKOWITZ, os mafiosos em GLÓRIA e até os animais em OS AMANTES. A força à
qual as personagens tentam em vão, contra si mesmos, escapar é o único cordão que liga todos os filmes de Cassavetes — reflectindo a ligação do cineasta ao cinema, simultaneamente actor tido como «intratável» e realizador que produz os próprios filmes, com os amigos, graças aos «cachets» obtidos como actor... A inovação estética nos filmes de Cassavetes é o produto destas opções — a encenação cria o seu próprio objecto —: câmara extremamente fluida, colada aos actores; planos-sequência em que as falhas da improvisação, em vez de escamoteadas, desencadeiam a aparição da pessoa sob o actor, da verdade sob a dramatização; montagem descontínua em que os planos de câmara ao ombro podem alternar com enquadramentos impecáveis nos quais a ficção retoma o seu papel motor. Sem atacar directamente a retórica esclerosada — sempre devedora, sem contudo assumi-lo cabalmente, de outras formas de narração e de espectáculo, teatro e romance em particular — do cinema padrão, mantendo inclusive as suas componentes — ficção, actores, etc. — Cassavetes é um dos raros realizadores, com Godard, Rivette, Vigo, a ter-nos mostrado o que o cinema é capaz de exprimir quando o íntimo, o amor, passa do coração — convencional — à pele. Se torna visível. S.