DESCENTRALIZAÇÃO Há festa na aldeia. Durante um mês, a Cinemateca assenta arraiais no Porto, trazendo um programa de raridades, filmes nacionais recentemente restaurados e esperadas estreias de filmes estrangeiros. O recheio do programa satisfaz todos os gostos, desde a apetência dos amadores de curiosidades estéticas, à excitação da gente «in» que quer estar a par de tudo, passando naturalmente pelos cinéfilos sedentos de obras de qualidade dificilmente acessíveis a quem vive longe da capital. Acresce que a organização do evento obedece aos habituais critérios de programação do museu do cinema, gerando a agradável impressão de que a iniciativa não foi parida a pensar na «província» e bem pelo contrário se inscreve no curso normal da vida da Cinemateca. Os momentos fortes das comemorações estão inequivocamente centrados nas obras de Manoel de Oliveira e Paulo Rocha, cineastas que «A Grande Ilusão» sempre teve em alto conceito e a quem tem vindo a dedicar uma atenção crítica especial. Não podemos pois deixar de nos regozijar com essa sagaz escolha. Posto isto, a curta estada no Porto da Cinemateca, com um vago perfume a descentralização, mais não faz do que voltar a pôr o dedo numa velha ferida — a inexistência duma Cinemateca no Norte — e, porque excepcional, não chega a preencher a lacuna que «A Grande Ilusão» inúmeras vezes denunciou. A afluência ou a escassez de público durante as Comemorações do Centenário nunca poderão ser consideradas como indicadores da viabilidade duma instituição deste tipo no espaço portuense. O grau de adesão decorrerá porventura de uma resposta à quantidade e qualidade dos estímulos da publicidade e da informação bem como de uma eventual sedução da novidade que se prende com o carácter pontual do acontecimento. Uma iniciativa como esta não conseguirá contrabalançar a longa travessia do deserto, com a quase totalidade das salas da cidade rendida à estratégia de ocupação do cinema americano e, a título de «festa anual do cinema», o indigente Fantasporto. Aliás, o real sucesso dum certame como o Fantasporto apenas evidencia o quanto há a fazer em matéria de formação de públicos. A circunstância da festa não deve ofuscar-nos. Fornece-nos sim uma ocasião ideal para reflectirmos sobre o que é uma Cinemateca e por que é que a Cinemateca do Porto é necessária. I. O Museu Retomando a reflexão de Walter Benjamim, André Malraux explicava que o livro e a reprodução fotográfica são de facto instrumentos privilegiados da cultura. O seu conceito de «museu imaginário» correspondia precisamente ao museu pessoal que cada um pode elaborar, museu esse constituído apenas por imagens. Nesta perspectiva, o museu verdadeiro passa a ser tão-só um local de depósito dos originais. O «museu imaginário» de Malraux permite reunir obras que nenhum museu real conseguiria juntar, contudo não possibilita o contacto directo, unicamente o contacto mediatizado. Ora, em relação a esse virtual «museu imaginário», o museu de cinema é potencialmente o único museu real, a saber o único que, nos quatro cantos do mundo, pode oferecer acesso directo a todas as obras, visto que na 7ª arte a noção de original não faz sentido. O cinema é a única arte que está por natureza vocacionada para um museu não exclusivamente patrimonial, para um museu de exposição. O cinema é uma forma de expressão muito jovem. Em todas as outras artes, houve recriações, reinterpretações, diálogos através dos séculos. Ora, o cinema vive unicamente disso. Mal ultrapassou a fase de mera captação do real, criou um universo próprio, em que cada filme não só se alimenta do contributo de muitas disciplinas, como remete para outros filmes. Daí que o museu do cinema não possa ser um museu com carácter de arquivo. Aquilo que parece pontual nas outras áreas de expressão artística é sistemático na sétima. Nas restantes áreas de expressão artística, existe sempre a consciência da ruptura. A única ruptura assinalável na História do Cinema é talvez a passagem do mundo para o sonoro (e ainda assim a questão não será de todo pacífica). Quando um movimento como a Nova Vaga parece romper com a narrativa clássica, constatamos que mesmo o